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Litigância abusiva reversa e tutela da evidência

O que é litigância abusiva reversa? A tutela da evidência pode servir como mecanismo processual de combate a essa litigância?

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Atualizado às 09:37

No julgamento dos recursos repetitivos que culminaram na tese 1.198 do STJ sobre litigância abusiva, o ministro Herman Benjamin destacou a necessidade de atenção da comunidade jurídica para a chamada "litigância predatória reversa".

Segundo o ministro,

"Grandes litigantes, empresas normalmente, que se recusam a cumprir decisões judiciais, súmulas, repetitivos, texto expresso de lei. Quando são chamados, não mandam representante - ou então, mandam sem poderes para transigir, nos casos dos órgãos administrativos, que fazem a mediação."

A respeito do tema, Bruno Fuga escreveu um instigante texto. Segundo ele, algumas publicações confundem litigância repetitiva, litigância ilícita e litigância abusiva, mas quase todas esquecem da litigância abusiva reversa. Ao final, conclui:

"(...) para os grandes litigantes - possivelmente os maiores causadores de impacto ao Judiciário -, que haja estudo, prevenção e sanção efetiva, tanto na esfera administrativa quanto judicial."

Não se pode tomar regra pela exceção, mas a realidade mostra que - alguns - empresários e gestores públicos fazem um cálculo perverso: em variadas situações, é mais vantajoso descumprir a lei e jogar o problema no colo do Judiciário, porque nem todos demandam e porque é possível adotar estratégias protelatórias e descumprir ou criar embaraços ao cumprimento das decisões judiciais.

O ex-consultor geral da República e ex-ministro da Justiça, Saulo Ramos, em sua autobiografia "Código da Vida", relata que durante a discussão dos planos cruzados, quando os juristas advertiam que determinada medida era inconstitucional ou ilegal, os funcionários do Ministério da Fazenda respondiam, para o seu espanto, com a seguinte estatística:

"Contra atos da Fazenda Nacional apenas ingressam em juízo 30% dos prejudicados. A maioria, portanto, não reclama. Pode haver alteração para mais ou para menos, dependendo de dois fatores principais: 1) se a imprensa der destaque à ilegalidade, o que não acontece sempre, porque os jornalistas, em determinadas questões, passam batido; 2) se as quantias envolvidas não forem individualmente expressivas. E os que entram com ações contra a União levam cerca de dez anos para receber, o que adia o problema para governos posteriores."

Mas quando se pode falar realmente em litigância abusiva reversa? A grande litigância passiva é litigância abusiva reversa?

Penso que a litigância abusiva reversa se manifesta nas seguintes situações, entre outras:

  1. Dar causa ao ajuizamento de demandas em massa ou repetitivas a respeito de temas já pacificados de forma vinculante;
  2. Contestar ou recorrer sistematicamente nas demandas em massa ou repetitivas contra entendimentos já pacificados de forma vinculante;
  3. Descumprir sistematicamente decisões judiciais eficazes e lastreadas em entendimentos já pacificados de forma vinculante.

Evidentemente, a alegação fundamentada de distinção ou de superação, afasta o abuso.

É preciso ter cuidado, porém, para não confundir grande litigância com litigância abusiva: a mera recorrência não configura por si só o abuso, assim como litígios isolados podem ser abusivos.

Grandes prestadores de serviço, privados ou públicos, não são vilões apenas por serem grandes litigantes ou litigantes habituais. Como estabelecem relações com milhares ou milhões de pessoas, é absolutamente normal que sejam demandados milhares ou milhões de vezes, inclusive de forma repetida, sem que isso caracterize necessariamente litigância abusiva reversa.

Um bom exemplo do equívoco da generalização: dados do CNJ revelam que a Caixa Econômica Federal é a maior litigante passiva do país. Contudo, estatísticas do STJ e STF mostram que em cerca de 95% dos recursos nos quais figura, a instituição atua como recorrida - indicativo de que volume processual não equivale necessariamente a litigância abusiva reversa.

Vale lembrar que, no Brasil, o acesso à Justiça é extremamente facilitado, a população ultrapassa duzentos milhões de pessoas, e a Constituição e alguns diplomas legais, que conferem muitos direitos (CDC, CC, CPC etc.), são historicamente recentes.

O CNJ criou o Painel de Informações para o Enfrentamento da Litigância Predatória (Abusiva), que se junta aos NUMOPEDEs - Núcleos de Monitoramento de Perfil de Demandas e aos Centros de Inteligência dos Tribunais, para monitorá-la.

É preciso que essa rede se volte também à litigância abusiva reversa, não só para preveni-la, como também para reprimi-la.

De qualquer forma, existem diversos mecanismos processuais internos, que podem ser usados para combater a litigância abusiva reversa, como: a aplicação de multas (arts. 77, 81 e 537 do CPC), a adoção de medidas executivas atípicas (inciso IV do art. 139, art. 297 e art. 536 do CPC), para além daquelas mais óbvias (por exemplo, a apreensão de valores diretamente da conta da operadora de plano de saúde, com a liberação imediata ao autor, para custear o tratamento, como técnica executiva sub-rogatória, quando a astreinte se mostrar ineficaz); e o arresto executivo online, não apenas de ativos financeiros, mas de outros bens, independentemente do exaurimento das tentativas de citação do executado (aplicação analógica do art. 858 do CPC).

Um mecanismo raramente lembrado é a tutela da evidência do inciso I do art. 311 do CPC, que pode ser requerida em qualquer tempo - inclusive na fase recursal - para coibir condutas protelatórias ou abusivas, independentemente da presença de periculum in mora.

A conduta ensejadora da tutela da evidência não precisa ser necessariamente interna. É possível requerê-la, por exemplo, porque o réu deu causa ao ajuizamento de demandas em massa ou repetitivas a respeito de temas já pacificados de forma vinculante, ou persiste em contestar ou em recorrer nessas demandas, sem alegação fundamentada de distinção ou de superação.

A tutela de evidência ainda tem a vantagem de remover o efeito suspensivo legal da apelação, caso seja confirmada pela sentença, deferida na sentença ou concedida pelo relator ao apelado (inciso V do § 1º do art. 1.012 e do inciso II do art. 932 do CPC).

Chegou a hora de tirar a tutela da evidência do papel e aplicá-la aos casos individuais de abuso ou de manifesto propósito protelatório, bem como às situações de constatada litigância abusiva reversa, sem prejuízo de outras sanções de qualquer natureza. O preço, como diria o ministro Marco Aurélio Mello, é módico: respeitar as regras estabelecidas - no caso, os arts. 9° e 10 e o § 1º do art. 489 do CPC.

Rodrigo da Cunha Lima Freire

VIP Rodrigo da Cunha Lima Freire

Mestre e Doutor em Direito Processual Civil pela PUC-SP, Professor de Direito Processual Civil da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Advogado e Parecerista. youtube e Instagram @ProfRodrigoDaCunha

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