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Black Mirror e a IA: Distopia, Direito e o desafio de regular o futuro

Em abril, foi lançada a 7ª temporada da tão aclamada produção britânica "Black Mirror". A série remota com a discussão sobre os impactos da Inteligência Artificial no cotidiano.

segunda-feira, 12 de maio de 2025

Atualizado às 13:53

Desde sua estreia em 2011, a série britânica Black Mirror vem funcionando como um espelho sombrio da sociedade contemporânea, projetando em suas narrativas distópicas os medos mais profundos sobre a tecnologia que criamos. 

Em sua recém-lançada 7ª temporada, disponibilizada pela Netflix em abril de 2025, a produção retoma com vigor a discussão sobre os impactos da IA - Inteligência Artificial no cotidiano. Os episódios exploram temas como clones digitais, deepfakes e decisões judiciais automatizadas por algoritmos - tópicos que até pouco tempo atrás pareciam ficção, mas que hoje batem à porta do Direito com urgência.

A inteligência artificial já chegou ao setor jurídico

A ficção, nesse caso, não está tão distante da realidade. Um relatório da McKinsey & Company, divulgado em 2023, apontou que 40% das empresas da América do Sul já estão testando ou adotando IA generativa, especialmente em setores como o jurídico, os recursos humanos e o atendimento ao cliente.

No universo da advocacia, softwares que automatizam a triagem de processos, realizam análises preditivas e até mesmo redigem petições com apoio de IA tornaram-se parte do cotidiano, promovendo ganhos de eficiência, mas também trazendo à tona velhas e novas inquietações sobre ética, responsabilidade e privacidade.

Deepfakes e a manipulação digital: Uma ameaça concreta

Black Mirror capta exatamente essa tensão. O 1º episódio da 6ª temporada da série, intitulado "Joan is Awful (Joan é péssima, em tradução livre)" aborda o drama de uma advogada que descobre ter sua imagem e voz clonadas digitalmente por uma big tech, que utiliza o deepfake para vender serviços jurídicos automatizados sem seu consentimento. 

Já na temporada atual, a trama acompanha um estúdio que utiliza IA para regravar um filme antigo, usando imagem e voz dos atores originais. 

A ficção dialoga com dados alarmantes do mundo real: segundo estudo da University College London (2023), 78% dos deepfakes analisados nas redes sociais tinham como objetivo manipular a opinião pública ou fraudar consumidores.

A manipulação digital não é mais apenas uma ameaça teórica; é uma realidade que desafia as bases do Direito contemporâneo, especialmente no que diz respeito à proteção de dados e à responsabilidade civil.

O avanço regulatório: Europa e Brasil em movimento

O desafio é global. A União Europeia, por exemplo, aprovou o AI Act, um marco regulatório que estabelece uma classificação de risco para sistemas de IA, proibindo práticas consideradas inaceitáveis, como a manipulação subliminar e o uso de IA para vigilância em massa.

No Brasil, o PL 2338/23, atualmente em tramitação no Senado, visa regular o uso da inteligência artificial, inspirando-se no modelo europeu, mas ainda carece de uma maturação mais profunda que leve em conta a especificidade da nossa realidade social e jurídica.

O pano de fundo dessa discussão é a necessidade de um novo paradigma jurídico para lidar com os desafios da tecnologia exponencial. Autores como Daniel Pink e Frederic Laloux já alertavam para a urgência de modelos mais orgânicos e menos hierárquicos de gestão e regulação, capazes de responder à velocidade com que a IA evolui.

No âmbito do Direito, a proposta não pode ser diferente: precisamos superar as lentes do passado, baseadas em estruturas normativas que pressupunham relações humanas diretas, para construir uma regulação que dialogue com sistemas automatizados, algoritmos opacos e processos decisórios mediados por máquinas.

Os eixos centrais do novo Direito da IA

Do ponto de vista jurídico, alguns eixos centrais já despontam como prioritários neste debate:

  • Proteção de dados pessoais: consolidada no Brasil pela LGPD (lei 13.709/18), mas que precisa ser atualizada diante das novas formas de coleta e processamento de dados via IA;
  • Responsabilidade civil por danos automatizados: Um terreno nebuloso que desafia a doutrina tradicional, ainda centrada na figura do agente humano;
  • Regulação da tecnologia: Para evitar abusos e garantir que a IA opere dentro dos limites éticos e legais aceitáveis.

A série Black Mirror, com sua narrativa provocadora, funciona como um alerta poderoso. Se por um lado a IA oferece potencial para revolucionar setores inteiros da sociedade, por outro ela carrega riscos que podem aprofundar desigualdades, violar direitos fundamentais e corroer a confiança pública nas instituições.

A tarefa do Direito, portanto, é dupla: deve atuar como guardião dos direitos individuais diante dos excessos tecnológicos e, ao mesmo tempo, como promotor de um ambiente regulatório que permita à inovação florescer de forma ética e sustentável.

O futuro já chegou: É hora de agir

Os operadores do Direito não podem mais se dar ao luxo de ignorar a IA considerando-o um tema "do futuro". Ela já está entre nós, moldando práticas judiciais, relações contratuais, dinâmicas de trabalho e até mesmo a forma como compreendemos a própria noção de autoria e identidade.

A judicialização crescente de casos envolvendo deepfakes, algoritmos discriminatórios e manipulação de informações exige uma atuação proativa, tanto no campo legislativo quanto na prática forense.

No horizonte, o desafio que se impõe é o de construir uma regulação que não seja nem excessivamente restritiva, a ponto de sufocar a inovação, nem permissiva demais, a ponto de permitir abusos. Como lembra Jurgen Habermas, a chave está no diálogo racional e inclusivo, que envolva todos os setores da sociedade na construção de um consenso democrático sobre os limites e possibilidades da IA.

A advocacia brasileira, portanto, está diante de uma encruzilhada histórica. Pode escolher o caminho da resistência passiva, aguardando que a maré tecnológica a engula, ou pode assumir um papel de protagonismo na definição dos contornos éticos e jurídicos da inteligência artificial.

A cultura pop, ao trazer essas questões à tona de forma acessível e impactante, como faz em Black Mirror, desempenha um papel essencial nessa sensibilização. Cabe agora à comunidade jurídica transformar esse alerta em ação concreta, atualizando suas práticas, suas leis e sua visão de mundo para dar conta dos desafios do século XXI.

E quem diria que uma série de ficção científica seria a faísca que reacende a chama do debate jurídico mais urgente do nosso tempo?

Eduardo Koetz

VIP Eduardo Koetz

Eduardo Koetz é advogado, sócio-fundador da Koetz Advocacia e CEO do software jurídico ADVBOX . Especialista em tecnologia e gestão, ele também se destaca como palestrante em eventos jurídicos.

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