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Advogado público sem OAB?

O STF balança as estruturas da advocacia pública: OAB obrigatória? Entenda o embate jurídico que define o futuro da inscrição e da identidade dos advogados do Estado.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Atualizado às 11:20

O STF tornou-se, mais uma vez, o epicentro de um debate que reverbera por toda a comunidade jurídica brasileira: a obrigatoriedade, ou não, da inscrição de advogados públicos na OAB - Ordem dos Advogados do Brasil. Longe de ser uma mera formalidade, essa questão mergulha nas profundezas da natureza da advocacia exercida em nome do Estado, tocando em pontos nevrálgicos como autonomia funcional, regime disciplinar, prerrogativas e a própria identidade desses profissionais. 

Este artigo se propõe a desvendar as camadas dessa intrincada discussão, navegando pelas correntes legislativas, pela recente e ainda inconclusa decisão do STF, e pelas multifacetadas visões da doutrina, incluindo a perspectiva do renomado jurista José Afonso da Silva. Prepare-se para uma análise que busca não apenas informar, mas provocar a reflexão sobre os contornos da advocacia pública no Brasil contemporâneo, culminando em uma proposta de distinção baseada no regime de dedicação e na atuação em prol das prerrogativas.

Estatuto da advocacia vs. regimes próprios

A controvérsia encontra seu ponto de partida na interpretação do art. 3º da lei 8.906/1994, o Estatuto da Advocacia e da OAB. Este dispositivo estabelece que o exercício da atividade de advocacia no território brasileiro e a denominação de advogado são privativos dos inscritos na Ordem. Seu parágrafo primeiro vai além, mencionando expressamente que os integrantes da AGU - Advocacia-Geral da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das procuradorias e consultorias jurídicas dos entes federativos e suas entidades "exercem atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta lei, além do regime próprio a que se subordinem".

Entretanto, essa aparente clareza é tensionada pelas leis orgânicas e estatutos específicos das carreiras da advocacia pública. A LC 73/1993 (lei orgânica da AGU), por exemplo, não impõe a inscrição na OAB como requisito para o exercício das funções de seus membros e, crucialmente, veda o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais. 

Surge, assim, um questionamento fundamental: o vínculo estatutário do advogado público, com suas prerrogativas e deveres definidos em lei específica, seria suficiente para habilitá-lo, ou a sujeição à OAB seria um complemento indispensável e constitucionalmente exigido, especialmente quando o regime de dedicação exclusiva impede a advocacia privada?

O julgamento decisivo do RE 609.517

O debate ganhou contornos definitivos (embora ainda pendentes de conclusão) com o julgamento do recurso extraordinário 609.517, com repercussão geral reconhecida. Até o momento, a maioria dos ministros se inclinou pela inconstitucionalidade da exigência de inscrição para advogados públicos submetidos a regime de dedicação exclusiva.

O voto condutor do ministro Cristiano Zanin argumentou que a capacidade postulatória dos advogados públicos emana diretamente da Constituição (arts. 131 e 132) e de sua nomeação e posse no cargo, não dependendo de registro na OAB, especialmente para aqueles impedidos de advogar privadamente. Zanin traçou um paralelo com a decisão anterior do STF que afastou a exigência para defensores públicos, ressaltando que os advogados públicos se submetem a um regime jurídico próprio e que a obrigatoriedade de inscrição poderia gerar conflitos, dada a vedação ao exercício da advocacia privada por muitos desses profissionais. A inscrição, contudo, poderia ser voluntária.

Os ministros Flávio Dino, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes seguiram o relator, consolidando uma maioria pela inexigibilidade em tais casos. Seus votos, em geral, reforçam a distinção entre o regime da advocacia privada e as funções estatais exercidas pelos advogados públicos, submetidos a controle e regime disciplinar próprios. 

A lógica subjacente parece apontar para uma diferenciação: se o advogado público pode também exercer a advocacia privada, a inscrição na OAB se justificaria; se há dedicação exclusiva, o vínculo estatal e seu regime próprio seriam suficientes.

A divergência, inaugurada pelo ministro Edson Fachin e acompanhada pelos ministros André Mendonça e Nunes Marques, defendeu a obrigatoriedade da inscrição de forma mais ampla, sustentando a unidade da advocacia e a essencialidade da fiscalização pela OAB. 

O ministro Luiz Fux, por sua vez, indicou que a inscrição poderia ser válida em certos casos, uma posição que, em certa medida, dialoga com a necessidade de analisar o regime de cada carreira.

O julgamento, interrompido por pedido de vista do ministro Dias Toffoli, deixa a definição final em aberto, mas a tendência majoritária sinaliza para uma solução que pode acolher a distinção baseada na permissão ou vedação da advocacia privada.

Um mosaico de interpretações e a relevância do regime de dedicação

A academia jurídica reflete a complexidade do tema. As posições de Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, como ministros do STF, manifestam-se em seus votos, tendendo a valorizar o regime jurídico específico dos advogados públicos e a origem constitucional de suas funções, o que implicitamente apoia a desnecessidade de inscrição para aqueles com dedicação exclusiva.

José Afonso da Silva, em suas obras e pareceres, oferece nuances importantes. Embora a OAB tenha invocado seus argumentos em contextos como o da Defensoria Pública para sustentar a necessidade de inscrição, a análise mais aprofundada de seu pensamento constitucional, especialmente no que tange a servidores com capacidade postulatória específica e regime próprio (como membros do Ministério Público), sugere que a natureza da função e o regime de dedicação são cruciais. Se o servidor está vinculado exclusivamente ao Estado e suas funções são definidas por lei específica, a submissão a um órgão de classe externo pode ser questionada.

Os dois lados da moeda e a proposta de distinção

Os argumentos pela obrigatoriedade, defendidos pela OAB, centram-se na unidade da advocacia, na necessidade de fiscalização ético-disciplinar pela Ordem como garantia social, na defesa de prerrogativas de forma unificada e no potencial reforço da independência técnica do advogado público. Estes argumentos ganham especial força quando o advogado público também pode atuar na esfera privada, pois, nesse caso, sua atividade se assemelha mais diretamente à dos advogados liberais, justificando a inscrição e a sujeição às normas da OAB.

Por outro lado, os argumentos pela não obrigatoriedade, especialmente para carreiras com dedicação exclusiva, ressaltam o regime jurídico próprio a que estão submetidos, com sistemas de correição e prerrogativas asseguradas em lei. A capacidade postulatória, nesses casos, decorre ex lege da nomeação, e a vedação à advocacia privada torna a inscrição na OAB, que tradicionalmente abrange o exercício liberal, uma formalidade de questionável utilidade e, por vezes, contraditória. A autonomia técnica, nesses cenários, deve ser garantida pela própria estrutura estatal e pelas leis da carreira.

Por uma solução diferenciada e a defesa compartimentada das prerrogativas

A questão da obrigatoriedade da inscrição de advogados públicos na OAB clama por uma solução que reconheça as diferentes realidades e regimes jurídicos dessas carreiras essenciais ao Estado. A tendência que se desenha no STF, e que encontra respaldo em uma análise ponderada da doutrina e da legislação, aponta para uma distinção fundamental: a obrigatoriedade da inscrição na OAB deve se impor àqueles advogados públicos cujas carreiras permitem o exercício concomitante da advocacia privada. Nestes casos, a atuação profissional transcende o vínculo estritamente estatal, justificando a sujeição às normas e à fiscalização da Ordem, que zela pelo exercício da advocacia em sua totalidade.

Contudo, para os advogados públicos que atuam em regime de dedicação exclusiva ou cujas leis de carreira proíbem expressamente a advocacia privada, a inscrição na OAB não se mostra obrigatória. Seu vínculo funcional com o Estado, regido por estatutos próprios que já preveem mecanismos de controle, disciplina e garantia de prerrogativas, é suficiente para o exercício de suas atribuições. A capacidade postulatória, aqui, deriva diretamente da lei e da nomeação, e a submissão a um regime disciplinar externo, quando já existe um interno robusto, pode gerar redundâncias e conflitos desnecessários.

No que tange à defesa das prerrogativas, a solução deve seguir a mesma lógica. A OAB, naturalmente, atuará na defesa das prerrogativas dos advogados públicos que estiverem inscritos em seus quadros, pois estes, ao poderem também advogar privadamente, compartilham das mesmas necessidades de proteção que os advogados liberais. Para os advogados públicos não inscritos (aqueles em regime de exclusividade), a defesa de suas prerrogativas funcionais, inerentes ao cargo e essenciais para a defesa do interesse público, caberá primordialmente ao órgão ou ente ao qual estão vinculados, que possui o dever institucional de garantir as condições para o pleno exercício de suas atribuições.

O desfecho do julgamento no STF será um marco. Independentemente do resultado final, o debate já impulsiona uma reflexão mais ampla sobre o papel, as garantias e as responsabilidades do advogado que atua em nome do interesse público. 

A solução aqui proposta busca conciliar a unidade da advocacia com as especificidades da função pública, reconhecendo que a subordinação administrativa não deve anular a independência técnica, e que a OAB e os órgãos estatais podem, cada um em sua esfera de competência, contribuir para o fortalecimento da advocacia, seja ela pública ou privada, em benefício da Justiça e do Estado Democrático de Direito.

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BRASIL. Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8906.htm. Acesso em: 8 maio 2025.

BRASIL. Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993. Institui a Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp73.htm. Acesso em: 8 maio 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Recurso Extraordinário 1.279.765/RO. Relator: Min. Cristiano Zanin. Julgamento em andamento. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/. Acesso em: 8 maio 2025.

CONSULTOR JURÍDICO. Cinco ministros votam contra exigência de inscrição de advogados públicos na OAB. 8 de maio de 2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-mai-08/cinco-ministros-votam-contra-exigencia-de-inscricao-de-advogados-publicos-na-oab/. Acesso em: 8 maio 2025.

SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual ao Parecer do Professor José Afonso da Silva. Anadep, 2011. Disponível em: https://www.anadep.org.br/wtksite/downloads/COMENTARIO_CONTEXTUAL_AO_PARECER_DO_PROF.JOSE_AFONSO_DA_SILVA-Versao_para_publicacao-_PDF.pdf. Acesso em: 8 maio 2025.

Tadeu José de Sá Nascimento Júnior

Tadeu José de Sá Nascimento Júnior

Advogado especialista em Direito Processual pela PUC/MG e em atuação nos Tribunais Superiores pela EBATS - Escola Brasileira de Atuação nos Tribunais Superiores.

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