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O notariado e a desjudicialização do cumprimento de testamentos

Uma defesa da legalidade notarial como eixo de uma nova racionalidade sucessória.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Atualizado em 26 de maio de 2025 09:23

A desjudicialização dos procedimentos sucessórios tem avançado de forma gradual e segura desde a edição do provimento CNJ 35/07, que consolidou a possibilidade de inventários e partilhas consensuais em cartório. Tal avanço foi recentemente consolidado pela resolução CNJ 571/24, que expandiu a atuação notarial para cenários sucessórios, inclusive quando há testamento. No entanto, resiste um ponto: mesmo nos casos em que não há conflito, dúvida ou impugnação, os testamentos cerrados e particulares continuam sujeitos à chancela judicial obrigatória - e, no caso do testamento público, ainda se exige o registro judicial prévio para sua integração ao inventário extrajudicial.

Foi nesse contexto que o IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família apresentou ao CNJ o pedido de providências 0002841-21.2025.2.00.0000, propondo dois ajustes pontuais: (i) a possibilidade de abertura e cumprimento extrajudicial dos testamentos cerrado e particular, sempre que inexistente litígio; e (ii) a dispensa de registro judicial para testamentos públicos juridicamente regulares e incontroversos. A proposta não busca desconstituir garantias, mas racionalizar a distribuição de competências no âmbito da jurisdição voluntária, conferindo ao notário - profissional dotado de fé pública, formação jurídica e sujeito à fiscalização - o exercício do controle de legalidade em atos consensuais.

Este trabalho tem por objetivo reforçar a plena compatibilidade jurídica da proposta com o ordenamento brasileiro vigente, bem como sua adequação institucional sob a ótica da eficiência, da especialização e da racionalização procedimental. Para isso, parte-se da análise crítica do modelo atual, que impõe ao Judiciário uma função meramente confirmatória, para então destacar o papel técnico do notário como instância legítima de legalização formal. Em seguida, explora-se o tratamento conferido ao tema nos países do notariado latino, revelando uma convergência funcional que reforça a pertinência da solução defendida. Ao final, sustenta-se que a medida proposta pelo IBDFAM não representa uma ruptura institucional, mas sim a natural evolução de um sistema comprometido com a pacificação social e com a justiça eficiente.

Para que se compreenda a relevância da proposta formulada pelo IBDFAM, é necessário examinar o modelo atualmente vigente para o processamento dos testamentos, cujas exigências processuais muitas vezes extrapolam sua finalidade jurídica. Mesmo nos casos em que não há litígio ou incerteza quanto à vontade do testador, a legislação ainda impõe a obrigatoriedade de tramitação judicial, reproduzindo um modelo que já não dialoga com os princípios contemporâneos de eficiência e racionalidade procedimental.

1. "É preciso desonerar o juiz dessa atividade, que nada tem de jurisdicional"

A frase de Maria Berenice Dias1 sintetiza com precisão a disfunção que marca o atual regime de abertura e cumprimento de testamentos no Brasil: submete-se ao controle judicial um ato que, em essência, não demanda decisão jurisdicional. Em vez de resolver litígios ou recompor vontades frustradas, o juiz, nesses casos, apenas chancela formalmente um documento cuja validade raramente suscita dúvidas materiais. Essa prática revela um descompasso entre os meios institucionais mobilizados e a efetiva necessidade de controle, além de impor um custo desnecessário à estrutura do Judiciário e à pacificação das relações familiares.

A exigência de judicialização irrestrita sustenta-se em um paradigma tradicional, segundo o qual a intervenção judicial seria condição de validade, mesmo em contextos consensuais. No entanto, esse modelo vem sendo cada vez mais questionado pela doutrina contemporânea, que reconhece o caráter predominantemente administrativo da jurisdição voluntária. Eduardo Arruda Alvim2, por exemplo, define-a como uma forma atípica de atuação estatal, na qual o juiz atua como gestor de interesses privados, suprimindo o espaço que caberia à função administrativa em sua forma originária. Humberto Theodoro Júnior3 aponta que a jurisdição voluntária é voltada à constituição de efeitos jurídicos sem lide ou contraditório pleno, restringindo-se à verificação de formalidades. Já Nelson Nery Jr.4 afirma que, nesses casos, o juiz apenas "homologa, aprova ou autoriza", sem qualquer função decisória em sentido técnico.

A proposta do IBDFAM se insere nesse debate ao sugerir a transferência dessa atribuição - meramente formal - ao notariado, cujos profissionais já exercem controle de legalidade com fé pública e sujeição à fiscalização estatal. A medida não suprime garantias, tampouco impede eventual judicialização futura. Pelo contrário, reordena competências de modo racional, preservando o contraditório quando necessário, sem penalizar os casos incontroversos com uma etapa jurisdicional desnecessária. É nesse ponto que o notário, enquanto jurista público e instância de prudência legal qualificada, se apresenta como agente técnico apto à conformação e verificação dos testamentos, especialmente nos casos em que não há controvérsia ou resistência entre os herdeiros.

2. O lugar institucional do notário na sucessão: Da forma à função

A valorização crescente da consensualidade no direito das sucessões impõe o redesenho das estruturas que conferem validade jurídica a atos não litigiosos. Como observa o ministro Luiz Fux, o ideal democrático repousa na autocomposição, sendo o acesso à jurisdição uma solução de exceção, reservada a hipóteses em que o exercício espontâneo do direito não é viável5. Nesse sentido, quando inexiste resistência entre as partes, a intervenção judicial para controle meramente formal de testamentos representa não uma salvaguarda, mas uma distorção da lógica institucional. O testamento, como expressão legítima da autonomia privada, não pode ficar refém de um filtro que apenas repete - sem qualificação adicional - a verificação já realizada por profissional dotado de fé pública.

A atuação notarial, em contraste com a função meramente confirmatória exercida pelo juiz nos procedimentos de jurisdição voluntária, assume contornos de atividade de legalização ativa. O notário não se limita a formalizar vontades: exerce controle técnico sobre a conformidade jurídica dos atos. Ao lavrar um testamento ou proceder à sua abertura e verificação formal, o notário atua com base em dois tipos de controle de legalidade: o positivo - que atribui eficácia jurídica ao ato válido - e o negativo - que recusa atos contrários ao sistema, como destacado por Mercília Gonçalves6. Ricardo Dip vai além, ao definir a qualificação notarial como um processo da razão prática, que exige o domínio técnico e prudencial do direito, articulando tradição, norma e realidade social com independência e responsabilidade7. O notário não exerce discricionariedade arbitrária: opera dentro de um regime de legalidade qualificada, que conjuga ciência, equidade e fidelidade à estrutura normativa.

Essa estrutura funcional não apenas legitima, como torna necessária a transferência do controle de legalidade formal ao notariado, nos termos propostos pelo IBDFAM. O exercício dessa função por profissional dotado de fé pública e formação jurídica especializada não enfraquece as garantias processuais - ao contrário, as aprimora, pela racionalização das etapas e pela eliminação de formalismos redundantes.

Esse arranjo encontra respaldo na própria tradição do notariado latino. Desde o século VI já se exigia dos notários o scire leges - o saber jurídico como requisito de validade dos atos8. Essa exigência reflete uma vocação de prudência e responsabilidade que distingue o notariado como jurista público. Como assinala Dip, a fé pública nasce da convergência entre forma regular, aptidão técnica e fidelidade comunitária9. O que se propõe, portanto, não é um salto institucional disruptivo, mas o reencontro com a coerência institucional: ao notário, cabe a legitimação jurídica plena dos negócios particulares, sob os critérios de forma e substância; ao juiz, a resolução dos dissensos que exijam substituição legítima da vontade. À sociedade, o benefício de um Direito mais funcional, mais justo e menos oneroso.

Essa racionalização institucional, ancorada na legalidade qualificada do notariado, não é exclusividade brasileira. Experiências consolidadas em países do notariado latino demonstram que a atribuição da abertura e verificação de testamentos à esfera extrajudicial já é prática sedimentada em contextos jurídicos equivalentes, reforçando a legitimidade da proposta brasileira e permitindo um olhar comparativo orientado por paralelismos funcionais.

3. Lições do notariado comparado: Experiências convergentes de desjudicialização testamentária

A análise de sistemas estrangeiros estruturalmente semelhantes ao brasileiro - especialmente os países integrantes do notariado latino - oferece um reforço empírico e normativo à tese defendida neste artigo: a desnecessidade de chancela judicial para atos testamentários incontroversos. A seguir, apresentam-se quatro experiências paradigmáticas que demonstram a viabilidade técnica e a segurança jurídica da desjudicialização sucessória.

Na França, o notário abre o testamento particular por ata notarial, com base no art. 1007 do Code Civil, sendo o registro centralizado pelo Décret 76-424/1976. A Espanha segue lógica semelhante: os arts. 61 e 62 da Ley del Notariado e a Ley 15/15 conferem ao notário poderes para abertura e verificação formal de testamentos cerrados e hológrafos, inclusive com perícia, se necessário. Em Portugal, o Código do Notariado e o decreto-lei 42.933/1959 atribuem ao notário a aprovação e abertura de testamentos cerrados, com registro e certificação extrajudicial na Conservatória dos Registos Centrais. Em todos esses modelos, a via judicial só é acionada quando há conflito ou impugnação.

A Itália apresenta variação interna entre testamentos públicos, secretos (segreti) e particulares (olografi), mas o princípio se mantém: o notário lavra, recebe ou abre os testamentos, conforme o Codice Civile (arts. 603-623) e os registra no Registro Generale dei Testamenti, instituído pela Legge 307/1981. A submissão ao juízo só ocorre em caso de dúvida fundada quanto à autenticidade. Essas experiências confirmam que a segurança jurídica não se funda na chancela judicial universal, mas na presença de fé pública, controle técnico de legalidade e possibilidade de intervenção judicial apenas quando necessário. Ao seguir a mesma lógica, a proposta do IBDFAM não rompe com a tradição jurídica - ao contrário, alinha o sistema brasileiro às melhores práticas funcionais do direito comparado.

As experiências estrangeiras analisadas revelam que a judicialização obrigatória do processamento testamentário não é uma exigência inerente à segurança jurídica, mas sim uma opção institucional historicamente superada. Em todos os modelos examinados, a intervenção judicial é reservada às situações de controvérsia, enquanto os casos incontroversos seguem diretamente pela via notarial. Essa lógica de redistribuição funcional, ancorada na especialização técnica do notariado, reforça a plausibilidade jurídica e institucional da proposta apresentada pelo IBDFAM ao CNJ, situando o Brasil em linha com as melhores práticas do direito comparado.

Conclusão

A análise desenvolvida neste artigo demonstra que a obrigatoriedade de intervenção judicial na abertura e cumprimento de testamentos incontroversos configura um descompasso entre finalidade institucional e estrutura procedimental. A exigência de chancela judicial, mesmo quando não há conflito, não acrescenta garantia jurídica efetiva, mas apenas reproduz uma herança histórica que já não se justifica à luz dos princípios da racionalidade, da eficiência e da especialização.

A proposta do IBDFAM - ao permitir que o notário processe os testamentos cerrados e particulares por ata notarial, e ao dispensar o registro judicial dos testamentos públicos juridicamente regulares - não enfraquece o sistema de controle. Ao contrário, reorganiza competências de forma funcional, resguardando à jurisdição sua vocação resolutiva e assegurando à via notarial o protagonismo na conformação legal dos atos consensuais. A possibilidade de impugnação judicial permanece íntegra, mas deixa de ser o caminho obrigatório para os casos em que não há litígio ou dúvida relevante.

A experiência de países como França, Espanha, Itália e Portugal - onde o notário exerce com legitimidade o processamento formal dos testamentos - confirma que a segurança jurídica pode ser plenamente assegurada pela fé pública, pelo controle técnico e pela responsabilidade institucional. A proposta brasileira, nesse sentido, não representa uma ruptura disruptiva, mas um realinhamento com a lógica da jurisdição voluntária moderna, em que o acesso à justiça se organiza conforme a complexidade do caso e a necessidade de intervenção estatal.

Ao reposicionar o notariado como agente central da legalidade sucessória nos casos incontroversos, o sistema jurídico brasileiro dá um passo relevante rumo à maturidade institucional. Juiz e notário passam a exercer suas funções em complementaridade, cada qual no espaço que lhes é próprio. O resultado é um Direito mais proporcional, mais eficaz e mais fiel à finalidade da justiça.

__________________

1 DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. 5ª Ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil. 2018. p. 541.

2 ALVIM, Eduardo Arruda; GRANADO, Daniel Willian; FERREIRA, Eduardo Aranha. Direito Processual Civil. 6º Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 1765-1766.

3 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, Procedimentos Especiais, Vol. II. 50ª Ed., Rio de Janeiro: Forense. 2016. p. 447-448.

4 NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 3ª Ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 1587

5 FUX, Luiz. Curso de Direito Processual Civil. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p.255

6 GONÇALVES, Mercília Pereira. O notário e a atividade notarial: certeza e segurança jurídica. Tese de Mestrado. Braga: Universidade do Minho, 2021, p. 46-47.

7 DIP, Ricardo. Do princípio notarial da legalidade (Tema VIII, Quinta Parte). ns. 119, 121, 122 e 124.

8 Id. n. 119.

9 Idem.

Lucas dos Santos Pavione

VIP Lucas dos Santos Pavione

Oficial Titular do 3TN - Terceiro Cartório de Notas da Cidade de São Paulo Mestre em Direito Ex-Procurador Federal Contato: [email protected] https://www.linkedin.com/in/lucaspavione/

Augusto Jorge S. Elias

VIP Augusto Jorge S. Elias

Escrevente, Mestre em Direito pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento, Ensino e Pesquisa (2023).

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