O sistema prisional brasileiro falhou: Prende muito, ressocializa pouco ou nada
O sistema prisional brasileiro prende demais, mas recupera quase ninguém. Quem está atrás das grades? Quem lucra com esse fracasso? Descubra neste artigo o retrato de uma falência anunciada.
terça-feira, 27 de maio de 2025
Atualizado às 10:22
O sistema prisional brasileiro é, há décadas, alvo de críticas severas e legítimas. A promessa constitucional de que a pena privativa de liberdade deve visar à ressocialização do condenado jamais se concretizou de forma plena. Pelo contrário, o que se verifica é uma máquina punitiva que encarcera muito, prende errado e falha miseravelmente na tarefa de reintegrar o indivíduo ao convívio social. No Brasil, prende-se demais e prende-se mal.
De acordo com o Infopen - Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, o Brasil possui uma das maiores populações carcerárias do mundo, superando 850 mil pessoas privadas de liberdade. Contudo, não são apenas os números que chocam, mas o perfil social majoritário daqueles que lotam as celas: pessoas negras, pobres, com baixa escolaridade, oriundas de favelas, periferias e comunidades afastadas dos grandes centros urbanos. Este retrato revela, sem rodeios, o caráter seletivo do sistema penal brasileiro, que escolhe quem será punido e quem terá as garantias constitucionais efetivamente respeitadas.
O sistema não distingue adequadamente aqueles que representam uma real ameaça social daqueles que cometem crimes sem violência ou grave ameaça, muitas vezes por circunstâncias ligadas à própria condição de vulnerabilidade. Resultado: cadeias abarrotadas, políticas penais ineficazes e uma sociedade cada vez mais violenta.
A seletividade penal, tão criticada pela criminologia crítica, é facilmente constatada no cenário brasileiro. Segundo dados do Depen - Departamento Penitenciário Nacional, mais de 40% da população carcerária é composta por presos provisórios, ou seja, indivíduos que ainda não foram definitivamente condenados. Muitos destes sequer deveriam estar atrás das grades, mas sim respondendo a processos em liberdade, conforme preceitua a Constituição da República e o CPP.
Além disso, boa parte das prisões ocorre por delitos patrimoniais de pequeno vulto ou tráfico de drogas em sua modalidade mais básica, frequentemente confundida com uso pessoal, o que expõe a incapacidade estatal de distinguir o criminoso perigoso do marginalizado empurrado para o crime pela ausência de políticas públicas efetivas.
Assim, antes mesmo de se falar em ressocialização, é preciso reconhecer que muitos dos indivíduos encarcerados sequer foram, em algum momento de suas vidas, socializados. Como ressocializar alguém que nunca foi inserido, de fato, nos sistemas mínimos de proteção social, educacional e econômica?
Essa pergunta é o ponto fulcral do problema. O sistema prisional brasileiro não apenas não ressocializa, mas falha até mesmo em garantir condições mínimas de dignidade aos presos. Superlotação, insalubridade, ausência de assistência médica, educacional e psicológica são a regra, e não a exceção, nas unidades prisionais espalhadas pelo país.
A LEP - lei de execução penal, em vigor desde 1984, prevê um modelo ressocializador de cumprimento de pena, baseado no trabalho, na educação e na assistência à saúde. Entretanto, mais de 40 anos após a promulgação da norma, pouco ou nada se avançou. De cada dez presos no Brasil, apenas dois têm acesso a algum tipo de trabalho e menos ainda a atividades educacionais. O restante permanece ocioso, sujeito à violência institucional e ao domínio das facções criminosas que se organizam dentro dos presídios.
Esse ambiente propício à degradação humana impede qualquer tentativa séria de recuperação do indivíduo, promovendo, ao contrário, sua degradação ainda maior. O que deveria ser um espaço de reeducação, acaba se tornando uma escola do crime, onde o preso, ao invés de se ressocializar, se adapta às lógicas violentas que regem o ambiente carcerário.
Ademais, ao deixar a prisão, o egresso enfrenta um mercado de trabalho que não o acolhe, um estigma social que o excluí e uma ausência quase absoluta de políticas públicas de apoio à sua reintegração. Assim, o ciclo da reincidência penal se perpetua, alimentado por um sistema que não oferece alternativas concretas ao retorno à criminalidade.
Nesse cenário desolador, impõe-se um questionamento essencial: que políticas públicas podem, efetivamente, cumprir o papel de ressocializar aqueles que nunca foram socializados?
Em primeiro lugar, é indispensável um investimento massivo em políticas de prevenção, que atacam as causas estruturais da criminalidade: desigualdade social, pobreza, falta de acesso à educação e saúde, ausência de oportunidades no mercado formal de trabalho. A experiência internacional demonstra que países que investem mais em políticas sociais do que em políticas puramente repressivas tendem a ter índices menores de criminalidade.
Em segundo lugar, é preciso revisar profundamente a política de drogas no Brasil. A atual legislação, embora tenha previsto a distinção entre usuário e traficante, na prática é aplicada de forma extremamente rigorosa aos mais pobres, perpetuando o encarceramento em massa de jovens negros das periferias, enquanto grandes traficantes seguem, muitas vezes, livres ou com penas brandas.
Ademais, programas efetivos de remição de pena por meio do trabalho e da educação precisam deixar de ser letra morta. A educação é, sem dúvida, uma das principais ferramentas de ressocialização. Estudos mostram que presos que têm acesso à educação e à qualificação profissional durante o cumprimento da pena apresentam índices significativamente menores de reincidência.
Outro aspecto fundamental é o fortalecimento das políticas de apoio ao egresso, como casas de acolhimento, programas de inserção no mercado de trabalho e acompanhamento psicossocial. Ressocializar não é apenas tarefa do sistema prisional, mas de toda a sociedade, que precisa estar preparada para receber de volta aqueles que cumpriram sua pena.
No entanto, tudo isso esbarra na falta de vontade política. O sistema penal brasileiro é utilizado historicamente como instrumento de controle social, voltado para a contenção das classes mais vulneráveis, e não como ferramenta de justiça e ressocialização. O investimento em prisões é priorizado, enquanto as escolas e hospitais seguem carentes de recursos.
Enquanto a política criminal brasileira continuar pautada pelo populismo penal, que privilegia o encarceramento como resposta única à criminalidade, a falência do sistema prisional persistirá. Não se pode esperar resultados diferentes mantendo as mesmas práticas.
A realidade que se impõe é que o sistema prisional brasileiro, como está hoje estruturado, não recupera ninguém. Pelo contrário, destrói vidas, fomenta a violência e amplia as desigualdades sociais. Prende-se muito, prende-se errado e, sobretudo, prende-se mal.
É urgente, portanto, um debate sério e comprometido com a transformação desse modelo falido. Mais do que buscar a ressocialização do preso, é preciso garantir a socialização plena de todos os cidadãos desde a infância, assegurando-lhes acesso a direitos fundamentais e dignidade.
Somente assim o sistema penal poderá deixar de ser o espaço de exclusão e violência que é hoje, para se transformar, finalmente, em um instrumento de justiça e promoção social.


