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O operador incompetente: Polícia militar não pode cumprir mandado de busca e apreensão domiciliar em crime comum

Novas leis reafirmam limites constitucionais entre polícias e podem tornar inválidas provas obtidas fora da competência legal de cada instituição.

terça-feira, 27 de maio de 2025

Atualizado em 28 de maio de 2025 13:50

As regras de estrutura constitucional das instituições policiais e das habilitações recebidas pelo poder constituinte originário não permitem invasões na esfera alheia. O artigo discute os efeitos das leis 14.735 e 14.751, ambas sancionadas e publicadas no ano de 2023, as quais instituíram, respectivamente, a lei orgânica nacional das polícias civis e lei orgânica nacional das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares dos Estados, do Distrito Federal e dos territórios, prevendo, em nível infraconstitucional, a separação das funções institucionais da polícia civil e da polícia militar, reservando a esta a função de polícia judiciária militar exclusivamente nos crimes militares. Por força das nominadas leis, a polícia militar não possui competência para cumprir mandados de busca e apreensão em crimes comuns, considerando o discrimen taxativo de competências institucionais, tornando ilícitas as buscas e apreensões executadas pela polícia militar em crimes comuns.

Duas inovações legislativas, sancionadas pela Presidência da República em 2023, respectivamente, as leis 14.735 de 23 de novembro de 2023 e 14.751 de 12 de dezembro de 2023, que instituíram a lei orgânica nacional das polícias civis e lei orgânica nacional das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, explicitaram a taxatividade das funções institucionais das Polícias Civis e Polícias Militares, separando, no campo da segurança pública, as funções de polícia judiciária civil e de apuração de infrações penais, materializadas em inquérito policial ou em outro procedimento de investigação, que é de competência da polícia civil, e a preservação da ordem pública, a polícia ostensiva e a polícia judiciária militar dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, conferindo-as à polícia militar.

As referidas leis orgânicas estão em conformidade com o art. 144, §§ 4º e 5º da Constituição Federal, que endereça às polícias civis as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares, reservando à polícia militar a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública e aos corpos de bombeiros militares a execução de atividades de defesa civil.

O processo de contaminação constitucional (Lênio Luiz Streck. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 7ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, 254) das nominadas leis orgânicas é, portanto, coerente com o conteúdo material da Constituição.

O objetivo de tornar, em nível infraconstitucional, nítida a separação das funções da polícia militar e da polícia civil chega muito tarde no contexto de retomada da normalidade constitucional e do governo civil, tratando-se de leis sancionadas trinta e cinco anos após a Constituição de 1988, mas que refletem o constante pêndulo entre rupturas e continuidades na política de segurança (Sérgio Adorno. Consolidação democrática e políticas de segurança pública no Brasil: rupturas e continuidades. "In": Democracia e instituições políticas brasileiras no final do século XX.  Recife: Bagaço, 1998).

Este movimento de ampliação do raio de intervenção da polícia militar já tinha sido observado em um importante artigo de Cláudio C. Beato Filho (Políticas públicas de segurança e a questão policial. São Paulo em perspectiva, vol. 13, 1999, p. 13-27), que apontou que as propostas de controle da criminalidade, deambulando entre a reforma social ou a dissuasão individual, trouxeram a preponderância das ideias de que o problema do crime é fundamentalmente uma questão de polícia e de legislação mais repressivas (Cláudio Beato, ob. cit. p. 25).

Obviamente, a desordem urbana, a violência e a luta contra o narcotráfico são as pautas que justificam e naturalizam a ampliação do raio de intervenção da polícia militar, muito embora o raciocínio devesse ser outro, pois, em uma sociedade democrática, a estrutura da segurança pública deveria ser de natureza civil e preocupada mais com os interesses da cidadania (José Maria Pereira da Nóbrega Júnior. A militarização da segurança pública: um entrave para a democracia brasileira. Revista de Sociologia e Política, vol. 18, n. 35, fev. 2010, p. 119). 

A despeito de não ser possível imaginar uma sociedade democrática sem segurança pública, a polícia militar, no Brasil, é uma instituição expansiva e que vem invadindo a esfera reservada às polícias civis, realizando, com o endosso do Poder Judiciário e de doutrinadores (Nestor Távora; Rosmar Rodrigues Alencar. Curso de direito processual penal. 3ª ed. Salvador: JusPodivm, 2009, p. 394; Denilson Feitoza. Direito processual penal. Teoria, crítica e práxis. 7ª ed. Niterói: Editora Impetus, 2010, p. 803), funções de polícia judiciária civil, tais como interceptações telefônicas e outras medidas cautelares, a exemplo do cumprimento de mandados de busca e apreensão domiciliar em crimes comuns.

Não há como deixar de reconhecer que a política de segurança pública se reflete nas decisões do Poder Judiciário. O eficientismo penal, política que adota os conceitos de guerra interna, de inimigo interno que ameaça e perturba a ordem estabelecida, gesta a metáfora da guerra que admite a dilatação e expansão das forças policiais para combate no palco social e neutralizar o risco, com a aceitação subliminar de que os conflitos exigem intervenção policial e o uso de uma força militar para manutenção da ordem.

Originária do contexto político-social da segurança pública e cunhada por sociólogos, a lógica dos "excessos inevitáveis" (João Ricardo W. Dornelles. Conflito e segurança (entre pombos e falcões). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 182) serve para justificar, em outros campos, o eficientismo penal e o discurso da lei e da ordem.

Assim é que, no campo judiciário, as ameaças à ordem urbana produzem o arrefecimento das separações constitucionais entre as funções policiais, para legitimar invasões consentidas de espaços institucionais, refletindo-se como reação ao risco contra a ordem social existente.

No combate às drogas, qualquer corpo que o faça é bem-vindo e tem o aval para poder agir. Este é o caso da polícia militar, que é recebida pelo judiciário, no espaço que não lhe cabe, vale dizer, na repressão criminal, com notável deferência.

A 1ª Turma do STF, ao julgar o HC 91.481-MG, relator ministro Marco Aurélio, decidiu, em 19/08/2008, que a circunstância de haver atuado a polícia militar não contamina o flagrante e a busca e apreensão realizadas, ante o disposto no art. 144 da Constituição Federal.  Segundo o voto do ministro relator, a atuação verificada é passível de ser classificada como polícia ostensiva e de preservação da ordem pública.

A corporação militar pode, inclusive, requerer a expedição de mandado de busca e apreensão, não havendo usurpação das funções da polícia civil, por ser classificada como atividade de polícia ostensiva e de preservação da ordem pública (2ª turma do STF, RE 404.593-ES, relator ministro Cézar Peluso, j. 18/08/2009).

No ano de 2022, a 2ª turma do STF apreciou um recurso extraordinário no qual se discutiu a possibilidade de realização de interceptações telefônicas pela polícia militar, com autorização judicial, tendo os ministros admitido a legalidade da investigação (Ag.Reg. no RE com Agravo 1.406.623-SP, relator ministro Ricardo Lewandowski).

Estas decisões, a pretexto de inserirem as ações militares na polícia ostensiva e na preservação da ordem pública, legitimam a expansão da polícia militar para a seara da repressão das infrações penais, chancelando algumas violações constitucionais que, por repetidas e validadas judicialmente, acabam por normalizar na comunidade jurídica e nas forças de segurança uma situação de anomia institucional, possuindo como mote a segurança pública.

É como se a divisão das funções entre as diversas instituições pudesse ser relativizada em nome da segurança pública, caso a polícia militar seja a instituição agente.

Veja-se como o discurso pode se tornar ambíguo, quando se cria situações imaginárias que, colocando em xeque a autorização para invasões institucionais, passam a não se amoldar no bagageiro jurisprudencial.

Se a polícia civil requeresse a expedição de mandado de busca e apreensão para obter prova da materialidade de um crime federal, fatalmente seria objetada e o pedido seria indeferido, pois a polícia civil não tem competência para investigar crime praticado em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas (art. 144, § 1º, I da Constituição Federal).

Se a polícia federal fizesse um pedido de mandado de busca e apreensão na justiça estadual, para obter a materialidade de um crime comum, a ela seria oposta a competência da polícia civil (art. 144, § 4º da Constituição Federal).

A situação seria ainda mais crítica se a guarda municipal fosse a uma vara criminal estadual e ali protocolizasse um pedido de busca e apreensão para obtenção da materialidade de um crime de violação de direito autoral (art. 184 do Código Penal), contra um suspeito que estivesse comercializando CDs piratas em vias públicas.

Agora, imagine-se que a polícia militar fosse à vara federal e solicitasse a expedição de mandado de busca e apreensão para materializar um crime de tráfico transnacional de drogas (art. 70 da lei 11.343/06): haveria indeferimento liminar, considerando a incompetência da polícia militar para ações de polícia ostensiva e preservação da ordem pública de crimes caracterizados pela transnacionalidade.

Os casos podem ser multiplicados.

Suponha-se que a polícia penal tenha informações de que um crime de tráfico de drogas esteja sendo cometido fora do estabelecimento penal e, a despeito do que prevê o art. 144, § 5º-A da Constituição Federal, requeira na vara criminal da justiça estadual a expedição de mandado de busca e apreensão.

Neste caso a medida cautelar seria fatalmente indeferida, haja vista que a polícia penal não possui competência para intervir fora dos estabelecimentos penais.

Caso a polícia militar estadual tenha notícia de um crime praticado por integrante das forças armadas, fatalmente não lhe seria concedido mandado de busca e apreensão, haja vista que o caso sugerido seria de competência da Justiça Militar da União (art. 124 da Constituição Federal), sendo vedada à polícia militar do estado a execução de ações de preservação da ordem pública e repressão de crime militar cometido por integrante das forças armadas.

Pois bem, as hipóteses retromencionadas sugerem que as polícias civis e militares, não obstante integrarem operacionalmente o SUSP - sistema Único de Segurança Pública, instituído pela lei 13.675/18 (art. 9º, IV e V), não podem executar ações afetas a outras instituições, sendo, aliás, princípio da política nacional de segurança pública e defesa social o respeito ao ordenamento jurídico (art. 4º, I da lei 13.675/18).

A discussão ganha novos contornos ao se refletir sobre a supressão à polícia militar da função de cumprimento de mandados de busca e apreensão em crimes comuns e a sua colocação privativa como polícia judiciária militar dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, a despeito de as leis 14.735/23 e 14.751/23 terem introduzido outras limitações funcionais à corporação, por separar, de um lado, a função de preservação da ordem pública e de outro por atribuir à polícia civil a competência privativa para o cumprimento de mandados de busca e apreensão nos crimes comuns.

Esta separação de funções, embora lapidarmente estabelecida, tanto pela Constituição, como pela legislação federal, recebe o impacto da práxis e da rotina dos juízes e tribunais, os quais legitimam a ação repressiva da polícia militar se o crime se insere na competência investigatória da polícia civil. Os casos de tráfico de drogas são paradigmáticos.

A justificação, sob o olhar externo dos operadores jurídicos, é a de que existe uma simbiose entre a polícia militar e a polícia civil, posto que, pertencendo ambas às estruturas da segurança pública dos estados federados, não faz mal que a polícia militar invada alguma área da polícia civil, sem que esta invasão cause vícios procedimentais.

Estaria à salvo a segurança pública e a lesão às regras de competência seria chamada a ceder passo diante do valor expresso naquela.  

Este é o caso do cumprimento de mandados de busca e apreensão que a polícia militar realiza rotineiramente, especialmente nos casos de tráfico de drogas, mas que, na verdade, são invasões consentidas pelos juízes e tribunais à função das policiais civis.

A busca e apreensão se constitui em uma medida cautelar instrumental. Ela visa "à obtenção de uma prova para o processo, com o fim, portanto, de assegurar a utilização do elemento probatório no processo ou evitar o seu perecimento" (Marcellus Polastri Lima. Manual de processo penal. 4ª ed. Rio de Janeiro: 2009, p. 566), sendo por isto mesmo "destinada a evitar o desaparecimento das provas" (Magalhães Noronha. Curso de direito processual penal. 22ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, atualizada por Adalberto José Q.T. de Camargo Aranha, p. 93).

A despeito de admitir-se a realização de busca e apreensão antes da instauração do inquérito policial (art. 6º, II do CPP), os elementos materiais apreendidos irão acompanhá-lo (art. 11 do CPP).

Como a polícia militar não pode instaurar inquérito policial, sendo esta função privativa dos delegados de polícia (lei 12.830/13), a eventualidade do sucesso da busca e apreensão irá condicionar a instauração ou não da investigação criminal.

Ninguém supõe que a polícia militar possa executar busca e apreensão no curso de inquérito policial regularmente instaurado ou paralelamente a ele. 

Portanto, as buscas e apreensões requeridas pela polícia militar são feitas com base em levantamentos e averiguações não materializadas no inquérito policial.

E aqui reside um novo problema para a segurança pública, ou seja, a busca e apreensão, antes da instauração do inquérito policial, pressupõe alguma diligência investigativa que, sendo realizada pela polícia militar, confere a ela um poder que não tem: investigar crimes comuns. E, pior, prescindindo do inquérito policial.

É por isto que a lei 14.751/23 somente conferiu à polícia militar a função de polícia judiciária militar dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios (art. 5º, II), para que, neste caso, aí sim, tenha ela o poder de cumprir mandados de busca e apreensão e demais medidas cautelares (art. 5º, III) que são instrumentais ao inquérito policial militar (art. 9º do CPPM).  

Havendo crime comum, incide a lei 14.735/23 (lei orgânica das polícias civis) e o Código de Processo Penal, competindo, portanto, à polícia civil, privativamente, as funções de polícia judiciária civil e de apuração de infrações penais comuns, bem como o cumprimento dos mandados de prisão, mandados de busca e apreensão e demais medidas cautelares e de ordens judiciais expedidas no interesse da investigação criminal (art. 6º, I).

Quando a Constituição Federal disciplinou a segurança pública estabeleceu para cada instituição estatal competências taxativas.

As regras de estrutura das instituições policiais, vale dizer, a regência das habilitações recebidas, estando situadas no andaime constitucional e submetidas a uma disciplina rígida, não permitem invasões na esfera alheia.   

A polícia federal detém a competência para apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo dispuser em lei (art. 144, § 1º), além do exercício exclusivo das funções de polícia judiciária da União (art. 144, § 1º, IV).

As polícias civis possuem competência, ressalvada a competência da União, para a apuração de infrações penais, exceto as militares e as funções de polícia judiciária (art. 144, § 4º).

Às polícias militares cabem a função de polícia ostensiva e a preservação da ordem pública (art. 144, § 5º).

Às polícias penais cabem a segurança dos estabelecimentos penais (art. 144, § 5º-A).

Às guardas municipais compete a proteção de bens, serviços e instalações dos municípios (art. 144, § 8º).

Não obstante tenha a lei 13.675/18, que criou o SUSP - Sistema Único de Segurança Pública, previsto como sua diretriz a atuação integrada da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em ações de segurança pública (art. 5º, IV), não baralhou as competências constitucionais, nem atribuiu às diversas instituições de segurança pública funções concorrentes, de modo que uma pudesse executar a função institucional da outra.

A discriminação das competências das instituições de segurança pública (polícia federal, polícias civis, polícias militares, guardas municipais, polícia penal) é rígida e desenhada de acordo com o perfil constitucional de cada instituição.

É por isto que estão cobertos de razão Christopher Abreu Ravagnani e Daiane Cristina Tomain Popolim. (A (in)constitucionalidade da busca judicial domiciliar pela polícia militar. São Paulo: Nucleus, vol. 15, n. 2, out. 2018), quando afirmam que "a tarefa de cumprir mandados de busca e apreensão domiciliar compete apenas e tão somente à Polícia Civil, ora exercendo a função judiciária (polícia judiciária) e ora a função investigativa no exercício de apuração de eventual infração penal e sua autoria (polícia investigativa), conforme claro mandamento constitucional, segundo o art. 144, § 4º, da Constituição Federal".

Partindo de ponto de vista absolutamente correto, sustentam os autores que, a seguir-se a corrente majoritária, de que a atuação da polícia militar no cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar não fere a competência constitucional da polícia civil, indagam se compete, também, à polícia militar cumprir mandado de busca e apreensão domiciliar afeto à polícia federal, para concluir que os argumentos da corrente majoritária não prosperam diante da indagação, pois não há possibilidade de a polícia militar também exercer as funções da polícia federal.

Vale dizer, o legislador constituinte estabeleceu taxativamente competências distintas, que vedam à polícia militar exercer funções constitucionais da polícia civil.

A conclusão é perfeita e deve ser compartilhada.

As leis 14.735/23 e 14/751/23 vieram apenas regulamentar o que, sob o ponto de vista do legislador constituinte, foi taxativamente estabelecido: as funções da polícia civil não são executáveis pela polícia militar.

Isto vale para todas as outras instituições de segurança pública.

A conclusão a que se chega é sumária: a partir da vigência das leis 14.735/23 e 14.751/23 todas as buscas e apreensões domiciliares executadas pela polícia militar em cumprimento de mandado judicial, em crimes comuns, são ilícitas.

Esta conclusão sequer dependia da edição de leis federais. Ela decorre da própria Constituição, tendo as nominadas leis, apenas, explicitado o que já se encontra latente na lei maior.

A incompetência para executar a busca e apreensão domiciliar reflete no campo processual, por força da inadmissibilidade da prova obtida por meio ilícito (art. 5º, LVI da Constituição Federal).

Isto porque, quando uma previsão constitucional e um dispositivo legal dizem QUEM pode realizar a prova e DE QUE MODO ela deve ser executada ("quomodo"), a violação à norma constitucional e infraconstitucional faz surgir o fenômeno conhecido dos juristas italianos da "inutilizzabilità", ou seja, o descarte das provas obtidas em violação a proibições estabelecidas por uma norma de direito fundamental (Mario Chiavario. Diritto processuale penale. Profilo Istituzionale. 4ª edizione. Torino: UTED, 2009, p. 381), o que nada mais é do que uma reação do ordenamento à vista da falta de respeito às condições para o exercício de um poder (Mario Chiavario, ob. cit. p. 382).  

Trata-se de uma situação específica na qual a prova era admissível e teria sido legitimamente produzida se o operador tivesse observado certos limites (Franco Cordero. Procedura penale. 8ª edizione. Milano: Giuffrè, 2006, p. 623), como são os casos da prova testemunhal obtida por manipulação psíquica: nada obstava o depoimento, mas o testemunho é extorquido, captado ou, mesmo, induzido por sugestão hipnótica, reações químicas et cetera, ou, tendo havido interceptação telefônica, esta seja levada a efeito fora dos casos previstos.

Tais situações também são familiares à doutrina processual na Alemanha, que cunhou a expressão "prova de obtenção ilícita relativa" (Relative Beweiserhebungsverbote) para as situações, e.g., nas quais apenas determinadas pessoas estão autorizadas à sua execução, como a intervenção corporal (K?rperliche Eingriffe) (§ 81a StPO) (URS KINDHäUSER. Strafprozessrecht. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 2006, p. 251), que somente pode ser realizada por médico, ou a oitiva de pessoa investigada, sob compromisso de dizer a verdade, cuja real condição tenha sido ocultada pelo órgão do Ministério Público (Urs Kindhäuser, ob. cit. p. 272), ou o caso lembrado por Roxin; Schünemann (Strafverfahrensrecht. 27. Aulage. München: Verlag C. H. Beck, 2012, p. 167) da tomada de depoimento de determinado servidor público que esteja obrigado a guardar segredo na defesa do Estado.

São situações em que a prova deve ser excluída, a despeito de, "in abstrato", ser admissível, o que depende do modo pelo qual foi adquirida, com a consequência de que: "invalida l'acquisizione, gli esiti costituiscono materiale spurio" (Franco Cordero. Procedura penale. 8ª edizione. Milano: Giuffrè, 2006, p. 633).

De fato, não há empecilho à realização da busca e apreensão domiciliar quando haja fundadas razões que a autorizem (art. 240 do CPP), inclusive, diante da inviolabilidade domiciliar, só a determinação judicial pode restringir o direito fundamental (art. 5º, XI da Constituição Federal).

A invalidade surge no momento que um operador incompetente (polícia militar) extrapolou o limite constitucional e legal que não atribuía a ele a execução da medida.

Nem é possível dizer que a ordem judicial convalida a prova.  Nenhum juiz possui autorização para, no exercício da função judicante, violar a Constituição.

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ADORNO, Sérgio. Consolidação democrática e políticas de segurança pública no Brasil: rupturas e continuidades. "In": Democracia e instituições políticas brasileiras no final do século XX.  Recife: Bagaço, 1998.

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CORDERO, Franco. Procedura penale. 8ª edizione. Milano: Giuffrè, 2006.

DORNELLES, João Ricardo W. Conflito e segurança (entre pombos e falcões). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

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RAVAGNANI, Christopher Abreu e POPOLIM, Daiane Cristina Tomain. A (in)constitucionalidade da busca judicial domiciliar pela polícia militar. São Paulo: Nucleus, vol. 15, n. 2, out. 2018.

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Helvio Simoes Vidal

Helvio Simoes Vidal

Promotor de Justiça em Minas Gerais. Mestre em Direito (UGF-RJ). Doutor em Ciências Sociais (UFJF).

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