Reforma tributária e o fim dos benefícios fiscais
A reforma tributária demanda exame minucioso de seus impactos. Conciliar a modernização tributária com a imperativa redução das desigualdades regionais requer soluções inovadoras e urgentes.
terça-feira, 27 de maio de 2025
Atualizado às 10:07
A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu preâmbulo e diversos dispositivos, o objetivo fundamental de reduzir as desigualdades sociais e regionais no Brasil, um país de dimensões continentais marcado por disparidades socioeconômicas.
Tal fato é reforçado pelo art. 3 da Carta Magna, que elenca, entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais. A busca pela uniformidade geográfica no desenvolvimento econômico sempre representou um desafio para a nação.
Historicamente, a concessão de incentivos fiscais pelos estados e municípios, com o intuito de encorajar o investimento e o desenvolvimento regional, frequentemente ocorreu à margem da legislação. O art. 150, § 6º da CF/1988 já previa a necessidade de lei específica para a concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais relativos a tributos.
Contudo, a prática revelou um cenário de "guerra fiscal", caracterizado pela concessão unilateral de benefícios, na maioria das vezes em desacordo com a LC 24/1975, que exigia a unanimidade dos estados para a aprovação de tais medidas. A dificuldade em obter tal consenso motivou os governos estaduais a adotarem incentivos de forma isolada.
Nesse contexto, a reforma tributária, impulsionada pela emenda constitucional 132/23 e regulamentada, entre outros diplomas, pela LC 214/25, surge como um instrumento para pôr fim à guerra fiscal.
Subjaz a essa mudança a percepção de que a concessão indiscriminada de incentivos fiscais configura uma política ineficiente, marcada pela falta de transparência e pela questionável eficiência na promoção do desenvolvimento almejado.
A lógica subjacente à reforma propõe uma arrecadação neutra, com eventuais políticas de incentivo sendo implementadas via dispêndios públicos diretos, como empréstimos e subsídios, instrumentos considerados mais mensuráveis e transparentes.
A reforma tributária, ao instituir um novo sistema de tributação sobre o consumo, retira dos estados e municípios a autonomia para conceder novos benefícios fiscais sobre os tributos extintos, como o ICMS e o ISS.
Para mitigar os impactos dessa mudança, os artigos 12 e 128 do ADCT - Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, no art. 384 da LC 214/24, estabeleceu um fundo de compensação para empresas que detinham benefícios fiscais onerosos de ICMS (com contrapartidas) até 31/05/2023. Esse fundo compensará as empresas no período entre 01/01/2029 e 31/12/2032. Outro ponto relevante é que os benefícios que passaram a adotar esse formato entre 31/05/2023 e 20/12/2023, com concessão datada até 16/04/2025, também se qualificam para a compensação.
Contudo, a operacionalização dessa compensação suscita preocupações. A habilitação das empresas perante a RFB - Receita Federal do Brasil e a possibilidade deste órgão estabelecer requisitos para a efetiva disponibilização dos recursos abrem margem para alta litigiosidade.
Segundo a LC 214/25, as empresas que desejarem obter a compensação deverão se habilitar na Receita Federal entre 1º de janeiro de 2026 e 31 de dezembro de 2028.
Considerando o histórico de interpretações e exigências da RFB, paira a incerteza sobre a extensão em que os contribuintes terão acesso à compensação e qual o valor efetivamente a ser ressarcido, especialmente em relação a critérios que podem não ter sido objeto de discussão prévia entre estados e contribuintes no momento da concessão do incentivo.
Ademais, foi instituído o FNDR - Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional, a partir da EC 132/23, objetivando reduzir as desigualdades regionais e sociais, mediante a entrega de recursos da União aos Estados e ao Distrito Federal. A distribuição dos recursos desse fundo observará alguns critérios, como população (com peso de 30%), e o coeficiente de participação de cada estado no Fundo de Participação dos Estados (com peso de 70%).
Essa sistemática de distribuição, embora busque estes critérios objetivos, desvincula a alocação de recursos das peculiaridades regionais e do grau de desenvolvimento de cada unidade federativa. Estados mais desenvolvidos também serão contemplados, levantando questionamentos sobre a efetividade do fundo em promover a redução das desigualdades regionais, conforme preconiza a Constituição Federal.
Reconhece-se que o modelo histórico de incentivos fiscais, apesar de ter contribuído para a industrialização do país e o desenvolvimento de regiões menos favorecidas, apresentava fragilidades jurídicas e falta de transparência na mensuração de seu impacto no desenvolvimento estadual.
No entanto, a extinção desses mecanismos, sem uma estratégia clara e eficaz para as regiões menos desenvolvidas, pode acarretar consequências negativas. A lógica econômica sugere que, com o fim dos incentivos fiscais, empresas tendem a priorizar a instalação ou o retorno para centros urbanos com melhor infraestrutura e acesso a mercados, uma vez que o fator determinante para sua localização, em muitos casos, era justamente a existência dos benefícios fiscais.
A nova sistemática de distribuição da receita tributária, baseada no destino do consumo, tende a desfavorecer ainda mais os municípios com menor atividade econômica.
Adicionalmente, a política de alocação de recursos do FNDR pode não ser suficiente para impulsionar o desenvolvimento em áreas com maiores desafios socioeconômicos.
Diante desse cenário, torna-se urgente e necessário refletir sobre os seguintes pontos:
- A adequação do novo sistema à realidade de um Brasil profundamente desigual: A reforma tributária, em sua concepção e implementação, considera as particularidades regionais e as necessidades de desenvolvimento das áreas menos favorecidas?
- A metodologia de arrecadação neutra e os dispêndios públicos diretos serão suficientes para compensar a perda dos benefícios fiscais nas regiões menos desenvolvidas?
- As estratégias que os estados podem adotar para manter a atratividade de seus territórios após o fim do fundo de compensação: Como os estados, diante da perda da autonomia para conceder incentivos fiscais e da possível redução de recursos, podem criar um ambiente de negócios competitivo e mitigar as dificuldades que se avizinham?
- Qual será papel da colaboração interfederativa no desenvolvimento de estratégias regionais para mitigar os impactos da reforma?
- A viabilidade de modelos alternativos, dentro da legalidade, para fomentar o desenvolvimento regional: Existiriam mecanismos que, respeitando os princípios da reforma tributária, pudessem direcionar investimentos e promover o desenvolvimento em regiões específicas?
- O FNDR - Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional em sua forma atual é o mecanismo mais adequado para promover o desenvolvimento em regiões com maiores desafios socioeconômicos?
A reforma tributária é uma realidade e o momento exige uma análise aprofundada de suas implicações, bem como a busca por soluções inovadoras que permitam conciliar a modernização do sistema tributário com a imperativa necessidade de reduzir as desigualdades regionais e promover um desenvolvimento econômico mais equilibrado em todo o território nacional. Nesse contexto, a modernização tributária deve ser parte integrante de um planejamento estratégico de desenvolvimento regional que evolua além da simples substituição de incentivos fiscais, buscando ativamente soluções inovadoras e precisamente adaptadas às necessidades distintas de cada região e, em última instância, de cada empresa.



