A reestruturação da Azul nos Estados Unidos: Impactos jurídicos e operacionais no Brasil
A reestruturação da Azul via Chapter 11 revela limites da recuperação judicial brasileira e destaca desafios jurídicos e operacionais transnacionais.
quinta-feira, 29 de maio de 2025
Atualizado às 11:27
1. Por que a Azul recorreu ao Chapter 11 e não à recuperação judicial brasileira?
A utilização do Chapter 11 tem se tornado uma alternativa recorrente entre grandes grupos empresariais com atuação global. O procedimento é amplamente reconhecido por oferecer:
- Maior previsibilidade jurídica, pois o Chapter 11 traz um processo de reestruturação consolidado, com jurisprudência estável, credibilidade internacional e prazos bem definidos;
- Ampla proteção contra credores - inclusive fora dos EUA;
- Flexibilidade na negociação com arrendadores e financiadores;
- Acesso a financiamento DIP - debtor-in-possession, essencial para a continuidade operacional. Muito embora também seja previsto na legislação brasileira, nos EUA o instituto está mais maduro e os stakeholders mais habituados a atuar neste cenário de crise;
No caso da Azul, as justificativas são ainda mais contundentes. A maioria dos seus contratos de leasing aeronáutico está sujeita à jurisdição estrangeira (geralmente Nova York ou Dublin), sendo seus credores majoritariamente internacionais. O foro americano, portanto, oferece ambiente mais adequado à reestruturação desses passivos - inclusive pela previsibilidade e reconhecimento global do Chapter 11.
2. A recuperação judicial transnacional e a possibilidade de extensão dos efeitos do Chapter 11 ao Brasil
Com a promulgação da lei 14.112/20, a lei de recuperação judicial e falências brasileira passou a contemplar, de maneira expressa e inédita, a cooperação jurídica internacional em matéria de insolvência transnacional - incorporando, em grande parte, os parâmetros da Lei Modelo da UNCITRAL.
Os arts. 167-A a 167-Y da LRFE passaram a disciplinar, dentre outras medidas:
- O reconhecimento no Brasil de processo estrangeiro principal ou secundário (inclusive aqueles fundados no Chapter 11);
- A atuação do representante estrangeiro perante o Judiciário brasileiro;
- A possibilidade de concessão de medidas provisórias para preservar ativos ou suspender execuções;
- O tratamento coordenado de processos paralelos no Brasil e no exterior;
- A cooperação entre o juízo brasileiro e autoridades judiciais estrangeiras.
Assim, o caminho mais técnico e aderente à legislação atual não é mais a simples homologacão de sentença estrangeira no STJ, mas sim o ajuizamento de um pedido de reconhecimento de processo estrangeiro com fundamento no Capítulo VI-A da lei 11.101/05, perante o juízo brasileiro competente para eventual recuperação judicial local.
A depender do êxito desse pedido, o juízo poderá:
- Suspender execuções individuais no Brasil;
- Resguardar ativos da empresa em território nacional;
- Facilitar a implementação coordenada de um plano aprovado no exterior.
No caso da Azul, isso significaria buscar o reconhecimento do Chapter 11 como "processo estrangeiro principal", permitindo que seus efeitos - notadamente a blindagem patrimonial e a reorganização de passivos - sejam estendidos ao território brasileiro, ainda que sem um pedido formal de recuperação judicial no Brasil.
Esse dispositivo é inovador e coloca o Brasil mais próximo das melhores práticas internacionais em matéria de reestruturação empresarial. Seu uso ainda é incipiente, mas o caso Azul poderá servir como leading case para consolidar a aplicação prática da recuperação judicial transnacional no país.
3. Os reflexos no Brasil: credores, mercado e jurisprudência
Do ponto de vista jurídico, a escolha pelo Chapter 11 pode gerar os seguintes desdobramentos no Brasil:
- Credores com créditos regidos por lei brasileira poderão questionar a eficácia da decisão estrangeira se não forem incluídos no processo americano;
- Pode haver insegurança jurídica em execuções fiscais, trabalhistas ou consumeristas, cuja suspensão dependerá de apreciação individual pelo Judiciário brasileiro;
- O Ministério Público, entes reguladores e até órgãos de proteção ao consumidor poderão ser acionados em defesa de interesses locais prejudicados.
Do ponto de vista institucional, a situação da Azul desafia os limites da recuperação judicial brasileira em lidar com grupos empresariais transnacionais. O caso evidencia a necessidade de evolução normativa e, sobretudo, de amadurecimento da aplicação da LRFE pelos operadores do Direito.
4. Riscos e impactos operacionais: a malha aérea nacional em xeque
A Azul opera em mais de 150 cidades, muitas das quais não são atendidas por nenhuma outra companhia aérea. Essa capilaridade - fruto de uma estratégia de nicho e frota diversificada - torna a empresa fundamental para a integração territorial brasileira, sobretudo em estados das regiões Norte, Centro-Oeste e interior do Nordeste.
Apesar de a empresa ter comunicado que suas operações seguirão normalmente durante o processo de reestruturação, os riscos são palpáveis:
- Cancelamento de rotas menos rentáveis ou suspensão de frequências;
- Redução na malha regional, com impacto direto no turismo, nos negócios e no acesso a serviços públicos;
- Pressão sobre pequenos aeroportos e cadeias logísticas locais, que dependem da operação regular da companhia.
Por isso, o caso exige monitoramento proativo por parte da ANAC, do Ministério de Portos e Aeroportos e do CADE, não apenas sob o ponto de vista da segurança jurídica e concorrencial, mas também sob o aspecto estratégico de garantia da conectividade nacional, bem público que ultrapassa os limites de uma relação meramente privada entre empresa e credores.
Conclusão
A decisão da Azul de submeter-se à jurisdição do Chapter 11 é juridicamente legítima, estrategicamente coerente e operacionalmente delicada. Ela revela tanto as limitações da recuperação judicial brasileira em lidar com grupos empresariais transnacionais, quanto a necessidade urgente de melhor aplicação da legislação para permitir maior cooperação internacional.
A análise jurídica do caso não pode se dissociar de seu impacto econômico e social: está em jogo não apenas a saúde financeira de uma companhia aérea, mas a manutenção de um sistema de transporte essencial à coesão territorial do país.
Cabe ao Judiciário brasileiro, à advocacia especializada e às autoridades públicas acompanhar de perto a aplicação da LRFE, os desdobramentos concorrenciais e os reflexos práticos dessa reestruturação. O desafio é garantir que, mesmo iniciada fora, a recuperação da Azul contribua para preservar, dentro, os interesses nacionais.
Ricardo Viscardi Pires
Advogado especialista em reestruturação de empresas, autor e coautor de diversos artigos jurídicos, sócio do escritório Bismarchi Pires Sociedade de Advogados.
Gustavo Bismarchi Motta
Advogado especialista em reestruturação de empresas e falências. Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Escola Superior da Magistratura e MBA em Gestão Empresarial pela FGV. Comendador da Ordem de Saint Yves de Tréguier e Comendador Grã-Cruz da Ordem do Mérito Nacional do Empreendedorismo - Visconde de Mauá.