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Taxa de fruição: E os equívocos do STJ

Entenda os equívocos do STJ sobre a taxa de fruição e como sua má aplicação compromete a segurança jurídica dos contratos e o equilíbrio do mercado imobiliário.

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Atualizado às 13:39

1. Introdução

A lei 13.786/18, conhecida como "lei dos distratos", representou um marco na regulamentação das relações contratuais entre incorporadores e adquirentes de imóveis, especialmente no que tange à resolução unilateral dos contratos de promessa de compra e venda.

Dentre suas inovações mais relevantes, destaca-se a introdução da chamada "taxa de fruição" como cláusula penal legal objetiva, prevista nos arts. 67-A, § 5º, da lei 4.591/1964 e 32-A da lei 6.766/1979.

Todavia, a interpretação judicial dessa cláusula tem gerado controvérsias, especialmente em decisões do STJ, que muitas vezes condicionam sua aplicação à prova do uso físico ou da posse material do imóvel pelo promitente comprador.

Tal compreensão, além de desconsiderar a literalidade da norma, compromete sua função regulatória e o equilíbrio contratual almejado pelo legislador. Este artigo propõe-se a examinar os fundamentos jurídicos da cláusula de fruição, sua natureza dogmática, os equívocos interpretativos da jurisprudência e os impactos econômicos e sociais decorrentes da sua aplicação incorreta.

Ao longo dos tópicos seguintes, exploraremos o instituto à luz da doutrina clássica, da jurisprudência crítica e da necessidade de reconstrução interpretativa da norma.

2. A origem legislativa e a natureza jurídica da taxa de fruição

A taxa de fruição foi instituída como uma cláusula penal legal de natureza compensatória. Trata-se de um instrumento criado pelo legislador para proteger o empreendedor dos prejuízos advindos da indisponibilidade econômica do imóvel durante a vigência do compromisso de compra e venda.

Ao contrário da cláusula penal convencional, esta decorre diretamente da lei, dispensando pactuação expressa. Conforme previsto no " 2º do art. 67-A da lei 4.591/1964 que diz: § 2º Em função do período em que teve disponibilizada a unidade imobiliária, responde ainda o adquirente, em caso de resolução ou de distrato, sem prejuízo do disposto no caput... e no inciso III - valor correspondente à fruição do imóvel, equivalente à 0,5% (cinco décimos por cento) sobre o valor atualizado do contrato, pro rata die."

Ainda que a redação não seja tecnicamente precisa, a intenção do legislador é clara: assegurar a compensação do incorporador pelo tempo em que o imóvel esteve juridicamente vinculado ao adquirente, ainda que não tenha sido ocupado fisicamente.

A lei dos distratos foi concebida com a finalidade de conter a crescente judicialização dos pedidos de resilição contratual, que geravam insegurança ao mercado imobiliário. A justificativa do PL 1.220/15, que lhe deu origem, aponta que "não se pode desfalcar o patrimônio - de interesse da coletividade de condôminos - priorizando a restituição de valores\[...] àqueles adquirentes que não têm mais interesse na consecução da obra".

Trata-se, pois, de cláusula de equilíbrio econômico, justificada pelo rompimento do sinalagma contratual e pela perda do tempo de comercialização do imóvel. A sua previsão ex lege confere-lhe natureza objetiva e compensatória, vinculada à indisponibilidade do bem. Nesse sentido, a correta qualificação da cláusula é essencial para a sua aplicação coerente.

Trata-se de penalidade decorrente da ruptura contratual, e não de indenização fundada na responsabilidade civil. Por isso, sua exigibilidade não depende da demonstração de culpa nem de uso físico do imóvel, mas da simples circunstância de que o imóvel esteve juridicamente indisponível.

3. O equívoco do STJ: Entre a posse física e a fruição jurídica

Apesar da clareza da norma e da finalidade compensatória da cláusula, decisões recentes do STJ passaram a condicionar sua aplicação à comprovação de uso efetivo do imóvel. Em muitos casos, juízes e ministros passaram a tratar a taxa de fruição como se fosse taxa de ocupação ou indenização por enriquecimento sem causa. Essa interpretação ignora que o promitente comprador, desde a celebração do contrato, detém posse jurídica plena.

A taxa de fruição, decorrente exclusivamente da indisponibilidade jurídica do bem durante a vigência do contrato de promessa de compra e venda. Ela independe do exercício de posse material pelo adquirente e não exige demonstração de uso ou proveito econômico efetivo do imóvel. Sua base de incidência está na frustração da expectativa de exploração econômica por parte do promitente vendedor - seja pela ocupação do bem ou simplesmente por sua vinculação contratual que impede nova alienação. Trata-se de um mecanismo legal destinado a recompor o equilíbrio sinalagmático contratual diante da resilição por iniciativa do adquirente, como forma de proteger a coletividade dos compradores e a estabilidade dos empreendimentos imobiliários.

Por outro lado, a taxa de ocupação possui natureza distinta. Originada da jurisprudência civilista tradicional e da doutrina do enriquecimento sem causa (art. 884 do CC), ela pressupõe o exercício fático da posse injusta, com ou sem má-fé, por aquele que permanece no imóvel após a extinção da relação contratual. Diferente da cláusula de fruição, sua exigibilidade depende da comprovação de uso ou aproveitamento material indevido da coisa, sendo, portanto, de natureza indenizatória. Enquanto a taxa de ocupação visa compensar a ocupação física ilegítima do imóvel, a taxa de fruição atua ex lege como cláusula penal vinculada à relação obrigacional válida, cuja eficácia é automática, inclusive nos casos em que o imóvel não tenha sido efetivamente ocupado. Confundir esses institutos leva a decisões que distorcem o regime da lei dos distratos e esvaziam sua função regulatória.

Por isso, é valioso o ensinamento de José Osório de Azevedo Jr. que apresenta "a posse do compromissário comprador - decorrente de um contrato de aquisição - é uma posse em regra definitiva", com "tendência natural a perdurar indefinidamente", pois decorre do próprio título aquisitivo. A partir da assinatura do contrato, o incorporador perde a disponibilidade econômica do bem, não pode vendê-lo, locá-lo ou mesmo negociá-lo com terceiros. Em outras palavras, é privado do jus fruendi, ainda que o imóvel permaneça desocupado ou esteja em construção.

Como afirmou Barbosa Lima, "os direitos do compromissário comprador são completos, abrangendo a própria substância, com a faculdade de destruí-la, alterá-la, transformá-la". A jurisprudência que exige a ocupação física do imóvel desconsidera esse regime jurídico.

Flávio Tartuce aponta que a função econômica do tempo é suficiente para justificar a incidência da cláusula penal, uma vez que o empreendedor foi impedido de explorar economicamente o bem durante o vínculo contratual. Portanto, o critério adotado pelo STJ esvazia o alcance da norma, desrespeita sua literalidade e compromete o equilíbrio sinalagmático do contratos de incorporação imobiliária.

A fruição, como penalidade legal, deve incidir objetivamente sobre o tempo de indisponibilidade da coisa, e não sobre sua posse de fato.

4. O domínio econômico do compromissário comprador e a inaplicabilidade da teoria da ocupação

Outro ponto negligenciado pela jurisprudência dominante é que, mesmo sem registro da promessa de compra e venda, o compromissário comprador já exerce domínio econômico e jurídico sobre o imóvel. Conforme a doutrina civilista, o compromisso não confere apenas expectativa de direito, mas uma posse direta e eficaz, que integra o patrimônio do comprador.

José Osório de Azevedo Jr. afirma que "preferimos dizer que a coisa passou para o patrimônio do compromissário comprador", e que, após o pagamento do preço, "o que sobrou ao promitente vendedor nada mais foi do que a recordação da propriedade".

Tal visão, embora poética, reflete a realidade jurídica: o vendedor perde os poderes sobre o bem desde a assinatura do contrato. Nesse contexto, vigora a máximares perit domino: os riscos da coisa são transferidos ao compromissário, assim como as vantagens.

Cabe a ele a valorização imobiliária, os frutos civis e naturais, as benfeitorias e até os eventuais danos. A transferência do domínio econômico é inequívoca, e o vendedor se torna mero titular de obrigação de dar - no caso, a escritura. Assim, é incorreto afirmar que a ausência de posse física impede a fruição.

Na verdade, o que a lei reconhece é o desequilíbrio contratual causado pela indisponibilidade do imóvel, e não sua ocupação.

A confusão com a taxa de ocupação é fruto de leitura apressada da jurisprudência anterior à lei dos distratos.

Portanto, a posse jurídica plena do compromissário é suficiente para autorizar a aplicação da penalidade, pois configura a perda da disponibilidade do bem pelo promitente vendedor.

O direito à fruição nasce da indisponibilidade, e não do uso.

5. A função regulatória e econômica da cláusula de fruição

A taxa de fruição foi concebida como um instrumento de desestímulo ao distrato imotivado. Antes da lei 13.786/18, o índice de desistências unilaterais ultrapassava os 40%, gerando colapso em diversos empreendimentos. Com a nova lei, esse índice caiu para cerca de 12%, segundo dados da ABRAINC-Fipe.

A razão é clara: a lei passou a atribuir consequências objetivas à ruptura contratual. O adquirente, ao desistir da compra, assume o dever de indenizar o empreendedor pelo tempo em que reteve o imóvel sob sua titularidade jurídica.

Trata-se de uma sanção legítima, baseada na responsabilidade pela quebra do sinalagma contratual. A função regulatória da cláusula de fruição é reforçada pelo seu caráter legal e objetivo.

Não há espaço para sua mitigação com base em critérios subjetivos, como o uso ou não uso do imóvel. Sua finalidade é garantir a estabilidade do mercado, a segurança jurídica dos contratos e a previsibilidade dos resultados econômicos.

A jurisprudência que ignora essa função acaba por incentivar condutas oportunistas, como a celebração de contratos sem real intenção de cumprimento, ou o uso da Justiça como meio de desfazer negócios sem ônus.

Isso compromete não apenas o incorporador, mas a coletividade dos adquirentes adimplentes, que dependem da solidez do empreendimento.

Por isso, é preciso resgatar a coerência da norma, aplicando-a conforme sua ratio legis. A cláusula de fruição não é penalidade arbitrária, mas instrumento de proteção ao equilíbrio contratual e à boa-fé objetiva.

6. Considerações finais

A aplicação correta da cláusula penal legal da taxa de fruição exige uma reconstrução interpretativa que leve em conta sua natureza jurídica, sua função econômica e sua base legislativa.

A exigência de uso físico do imóvel, como impõe parte da jurisprudência do STJ, representa um retrocesso hermenêutico e compromete a eficácia da norma.

O compromisso de compra e venda confere ao adquirente a posse jurídica plena, com efeitos patrimoniais equivalentes aos da propriedade. Ao perder a disponibilidade econômica do bem, o promitente vendedor faz jus à compensação objetiva prevista em lei.

Não se trata de taxa de ocupação, tampouco de indenização por culpa, mas de penalidade legal pela ruptura contratua. A doutrina civilista, de José Osório de Azevedo Jr. a Barbosa Lima, confirma que os efeitos da promessa de compra e venda são suficientes para caracterizar a fruição.

A indisponibilidade jurídica da coisa, mesmo sem sua ocupação, gera desequilíbrio contratual e justifica a sanção legal. Portanto, é urgente que o Poder Judiciário revise sua posição, adotando uma interpretação sistemática e teleológica da lei 13.786/18. segurança dos contratos imobiliários e a saúde do mercado dependem da aplicação coerente e previsível das regras que disciplinam a resolução contratual e seus efeitos.

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TARTUCE, Manual de Direito Civil, 8ª ed., p. 1204

https://abrainc.org.br/indicadores-publicacoes/indicadores

AZEVEDO JUNIOR, José Osório de. Compromisso de Compra e Venda. 5. ed., rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2000.

Tássio Amaral Gomes

Tássio Amaral Gomes

Advogado, especialista em Direito Público Aplicado, MBA em Gestão Jurídica. Pós-graduando em Incorporações e Negócios Imobiliários (IPOG). Sócio da Advocacia Martins.

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