Direito à memória digital como identidade na era pós-humana
O artigo defende o direito à memória digital como expressão da dignidade humana, visando preservar a identidade pessoal até mesmo para reconstrução futura via inteligência artificial.
segunda-feira, 9 de junho de 2025
Atualizado às 15:00
Introdução
"Se não guardas as cartas da juventude, não conhecerás um dia a filosofia das folhas velhas." (Machado de Assis)
Nas últimas décadas, a humanidade atravessou uma transição silenciosa, mas radical: a migração parcial da existência humana para o ambiente digital. Redes sociais, fóruns, aplicativos de mensagens, plataformas de vídeo e outras ferramentas virtuais passaram a absorver e registrar nossas ações cotidianas, nossos vínculos afetivos, nossas opiniões políticas e nossos traços de personalidade. Com isso, passamos a construir - consciente ou inconscientemente - um espelho digital de quem somos, composto por fragmentos que, tomados em conjunto, configuram um autêntico registro existencial.
Diferente de documentos formais ou dados cadastrais, esse mosaico de interações digitais revela aspectos subjetivos e profundos da pessoa humana, como seus valores, humores, memórias e contradições. Tweets impulsivos, comentários em fotos, registros de localização, playlists favoritas, buscas recorrentes, mensagens arquivadas: cada dado, por mais banal que pareça isoladamente, compõe uma narrativa pessoal contínua, hoje armazenada não em diários ou cartas, mas nos servidores das plataformas digitais.
Este artigo parte da premissa de que esses registros não são apenas dados: são parte da própria personalidade em sua dimensão expandida no tempo e no espaço virtual. Assim, sua proteção deve ser pensada não apenas sob a ótica da privacidade ou da proteção de dados, mas sobretudo como expressão da dignidade da pessoa humana e da inviolabilidade de sua identidade - inclusive após a morte.
Mais do que isso: com os avanços da inteligência artificial generativa, especialmente nos campos de simulação de linguagem e modelagem de comportamento, torna-se tecnicamente viável, no horizonte próximo, a recriação digital de consciências individuais a partir de seus rastros virtuais. O que antes era ficção científica - como reviver um ente querido em forma de avatar inteligente - agora se configura como uma possibilidade concreta e cada vez mais próxima, com implicações éticas, filosóficas e jurídicas profundas.
Nesse cenário, a exclusão arbitrária de perfis, conteúdos ou históricos digitais - seja por ato unilateral de plataformas ou por imposição estatal - representa não apenas uma violação à liberdade de expressão, mas um verdadeiro apagamento de traços da existência, com consequências não só para o indivíduo, mas também para seus descendentes, para a história coletiva e para a construção de uma herança afetiva e simbólica.
Portanto, este artigo propõe um novo olhar jurídico: o reconhecimento dos registros digitais como extensão da personalidade humana e como patrimônio existencial que merece tutela específica. Para isso, exploraremos os conceitos de identidade digital, memória intergeracional, responsabilidade das plataformas e do Estado, bem como os possíveis caminhos normativos para garantir que o ser humano continue existindo - mesmo na era do esquecimento programado.
Capítulo 1 - Fundamentos filosóficos e jurídicos da identidade digital
"A identidade não é algo dado, mas uma construção em permanente diálogo com o mundo." (Stuart Hall)
O conceito tradicional de identidade humana sempre esteve associado a elementos tangíveis e concretos: nome, aparência física, documentação civil, patrimônio material. Contudo, nas últimas décadas, presenciamos uma transformação profunda e irreversível: a migração significativa da existência humana para o ambiente digital. Tal mudança desafia não apenas os limites conceituais da identidade, mas impõe ao Direito e à Filosofia o dever de repensar seus fundamentos.
Yuval Noah Harari (2017), em sua obra "Homo Deus", argumenta que a humanidade está no limiar de uma nova fase evolutiva, onde as fronteiras entre o físico e o digital tornam-se indistintas. Neste cenário emergente, a identidade digital passa a ser tão real quanto a identidade física, pois reflete continuamente nossas experiências, valores, emoções e pensamentos.
Pierre Lévy (1999), ao desenvolver o conceito de "cibercultura", antecipou essa expansão existencial para o meio digital, destacando que a interação contínua com tecnologias digitais cria um "eu" expandido, fragmentado em diversas plataformas. Esses fragmentos, ainda que dispersos, constituem uma expressão legítima e autêntica da personalidade humana.
Do ponto de vista jurídico, a Constituição Federal brasileira de 1988 consagrou a dignidade da pessoa humana como valor central (art. 1º, III), estabelecendo uma proteção ampla e dinâmica da personalidade. Conforme destaca Ingo Wolfgang Sarlet (2001), a dignidade humana funciona como um valor-fonte que permite o reconhecimento constante de novos direitos fundamentais à medida que surgem novas realidades sociais e tecnológicas.
Vivemos uma era em que a existência não se limita mais ao plano físico. As interações nas redes sociais, os comentários em fóruns, as mensagens trocadas, os arquivos criados e compartilhados - tudo isso forma um conjunto de vestígios digitais que, reunidos ao longo do tempo, constituem uma extensão legítima da personalidade humana. Ainda que esses registros sejam muitas vezes dispersos, fragmentários e desorganizados, é justamente nessa imperfeição e nessa continuidade que se revela um mosaico autêntico, único e irrepetível de quem somos.
Assim, é plenamente justificável que o Direito evolua para incorporar a identidade digital como um elemento intrínseco à personalidade jurídica. Afinal, a vida digital não se limita apenas a "dados" ou "informações": trata-se de uma narrativa contínua e pessoal que se projeta no tempo, carregando emoções, valores, decisões e interações que compõem o ser humano integralmente.
Essa compreensão ganha contorno especial na medida em que se reconhece, com Pierre Lévy (1999), que "o ser humano contemporâneo está, inevitavelmente, ancorado na memória digital - pessoal e coletiva", o que reforça a natureza identitária desses rastros digitais e sua conexão com o patrimônio existencial da pessoa.
Considerando esse aspecto, a exclusão arbitrária desses dados, sem a observância do contraditório ou do devido processo legal, não representa apenas uma afronta a direitos patrimoniais, como o acesso a plataformas ou conteúdos. Vai além. Representa uma forma sutil, porém profunda, de apagamento da história pessoal. É a destruição de parte da memória individual, de seus afetos, ideias, aprendizados, posicionamentos e até mesmo de sua evolução moral e intelectual.
Do ponto de vista filosófico, autores como Nick Bostrom (2003) e Ray Kurzweil (2005) defendem que a preservação digital da identidade é essencial para a possibilidade futura de reconstrução de consciências individuais por meio de inteligência artificial, abrindo debates éticos profundos sobre a continuidade existencial pós-humana.
Tal como a queima de cartas, diários ou fotografias pessoais de gerações passadas seria hoje considerada uma forma de violência simbólica, a exclusão unilateral de perfis, postagens ou contas digitais pode ser enquadrada como violação ao direito à memória, à identidade e à personalidade. Afinal, os dados digitais não são meramente informacionais - eles carregam valor afetivo, cultural e até histórico. São fragmentos de uma subjetividade projetada no tempo.
Por isso, a proteção dos registros digitais deve ser elevada a um novo patamar normativo: um direito fundamental à existência digital e à preservação da identidade virtual, inclusive após a morte. Em tempos de inteligência artificial e simulações de personalidade, os rastros digitais acumulados ao longo da vida podem servir como base para reconstruções legítimas da presença humana no mundo virtual - seja para memória familiar, homenagem ou continuidade simbólica do pensamento e dos valores de uma pessoa. Nesse contexto, qualquer medida de limitação, exclusão ou censura de perfis e conteúdos deve estar submetida a salvaguardas processuais robustas. Não se trata apenas de liberdade de expressão ou proteção de dados, mas do direito de existir - ainda que digitalmente - e de deixar vestígios legítimos de quem fomos, para que os outros, especialmente nossos descendentes, saibam de onde vieram.
O reconhecimento da identidade digital como extensão protegida da personalidade humana é, portanto, não apenas uma necessidade jurídica emergente, mas uma consequência filosófica inevitável diante da evolução tecnológica e cultural que atravessamos. O Direito precisa, com urgência, adaptar-se e reconhecer explicitamente esse novo paradigma identitário, assegurando proteção sólida à integridade digital dos indivíduos. Essa evolução normativa garantirá não só o respeito à dignidade humana na era digital, mas também a preservação do legado histórico e cultural para as futuras gerações, cumprindo assim sua missão essencial em uma sociedade em constante transformação tecnológica e existencial.
Capítulo 2 - O caso concreto: Exclusão de perfil de rede social como exemplo de apagamento existencial
"Àqueles, que exerceram a tirania, a história não concede o benefício do esquecimento." (Rui Barbosa)
A presente reflexão parte de um caso real e pessoal: o autor deste artigo manteve, por mais de quinze anos, um perfil ativo na plataforma Twitter, desde seus primórdios. Nesse espaço virtual, se acumularam manifestações espontâneas de pensamento, reações a acontecimentos públicos, frases de humor, desabafos, interações afetivas com familiares e amigos, bem como registros que, embora fragmentados, compunham uma narrativa contínua de vida.
Esse perfil era, portanto, muito mais que um simples canal de comunicação: representava uma verdadeira cápsula de tempo - uma crônica digital da existência, moldada ao longo de uma década e meia. Ali estavam traços autênticos de identidade, valores, visões de mundo e experiências vividas, acessíveis publicamente e compartilhadas com dezenas de milhares de seguidores. Era, em síntese, uma parte viva e legítima do patrimônio existencial do indivíduo.
Contudo, esse acervo foi sumariamente destruído. A exclusão definitiva do perfil se deu após uma série de publicações, quando o autor manifestou críticas políticas nas eleições de 2022.
Sem prévia notificação, sem a mínima abertura para contraditório ou defesa, e sem qualquer mecanismo razoável de recuperação, a plataforma executou o banimento. O resultado prático foi a aniquilação de mais de 15 anos de registros digitais, em uma espécie de "morte civil virtual", com efeitos reais e irreparáveis para a história pessoal do titular da conta.
Esse tipo de violação existencial encontra crítica contundente em Daniel Sarmento (2004), para quem "a personalidade é um bem existencial cuja proteção deve ser máxima diante da interferência estatal ou privada". Em outros termos, a aniquilação unilateral de perfis.
Em outros termos, a aniquilação unilateral de perfis digitais - especialmente sem o devido processo legal, contraditório e possibilidade de preservação dos dados - representa uma afronta direta à essência do ser, à sua identidade projetada no tempo e no espaço virtual. Não se trata apenas de restringir o acesso a uma plataforma, mas de suprimir, sem chance de defesa, parte do acervo simbólico que compõe a trajetória de vida do indivíduo, desrespeitando sua memória, sua expressão e sua dignidade enquanto sujeito de direitos fundamentais.
Trata-se de uma violação que extrapola os contornos da liberdade de expressão e adentra o campo do direito à memória e à identidade pessoal, pilares da dignidade humana. O apagamento de um histórico digital extenso não equivale apenas à supressão de conteúdo: representa a supressão simbólica de uma existência. É como se, de forma unilateral, alguém tivesse queimado todas as cartas, diários, fotografias, bilhetes e reflexões acumuladas ao longo de uma vida, sob o argumento genérico de "violação de diretrizes".
Se essa exclusão arbitrária foi praticada com a chancela de um ente estatal, deve ser considerada como censura em seu sentido mais amplo e como uma afronta ao devido processo legal. Porém, também pode ser realizada por entes privados com poder tecnológico quase soberano sobre a memória digital, o que revela um vácuo normativo perigoso e uma omissão do direito em proteger o indivíduo frente à concentração de poder digital.
Além disso, a irreversibilidade da exclusão impede não apenas a reparação integral, como também compromete o acesso a esses registros por futuras gerações. Em um cenário em que inteligências artificiais poderão recriar padrões de linguagem e personalidade a partir de rastros digitais, a perda arbitrária de dados pessoais se torna ainda mais grave, pois suprime a possibilidade de transmissão simbólica de uma identidade - uma espécie de "herança digital" que já deveria estar resguardada juridicamente.
Em resumo, a exclusão do perfil do autor, longe de ser um episódio isolado, revela uma tendência preocupante de apagamento existencial sem garantias mínimas. E levanta uma pergunta central: quem é o verdadeiro guardião da nossa história digital?
Leia o artigo na íntegra.


