Quando o riso se transforma em crime
A condenação de Léo Lins (8 anos por piadas) reacende debate: Liberdade de expressão vs. Direito Penal. Discussão sobre proporcionalidade e populismo punitivo.
quinta-feira, 12 de junho de 2025
Atualizado às 13:56
Quando o riso se transforma em crime: entre o necessário combate ao preconceito e o uso desproporcional do cárcere. A condenação de Léo Lins suscita debate sobre os limites da liberdade de expressão e o uso desproporcional do Direito Penal.
A recente condenação do humorista Léo Lins a oito anos de reclusão por falas consideradas discriminatórias em seu espetáculo de stand-up acende um alerta jurídico e democrático: em que ponto a liberdade de expressão cede ao Direito Penal, e quando o uso da pena privativa de liberdade passa a se confundir com o populismo punitivo?
É indiscutível que o conteúdo veiculado por Léo Lins, com piadas envolvendo negros, pessoas com deficiência, nordestinos e outros grupos vulneráveis, fere valores fundamentais como a dignidade da pessoa humana, a igualdade e a proteção das minorias. A sentença, proferida pela 3ª vara criminal Federal de São Paulo, contém farta transcrição das falas proferidas no show "Perturbador" e fundamenta a condenação nos arts. 20, §§2º e 2º-A da lei 7.716/89 (lei antirracismo) e no art. 88, §2º, da lei 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência).
Contudo, mesmo diante da reprovabilidade moral e jurídica das falas, a pena aplicada - oito anos de reclusão em regime inicialmente fechado - suscita dúvidas quanto à proporcionalidade e à legitimidade da intervenção penal máxima em casos como esse.
O Direito Penal, em consonância com o princípio da intervenção mínima, deve ser compreendido como ultima ratio, ou seja, deve intervir apenas quando outros ramos do direito se mostrarem insuficientes para a tutela do bem jurídico. Nessa linha, Winfried Hassemer destaca que o Direito Penal deve ser um "direito de contenção", voltado a evitar excessos e preservar a liberdade individual como bem fundamental. O uso precoce do cárcere, portanto, pode descaracterizar essa função e converter-se em instrumento de punição simbólica, especialmente sob pressão da opinião pública e da mídia.
França e Lima (2023), ao discutirem o fenômeno do populismo penal midiático, alertam para o risco de o sistema de justiça penal deixar-se conduzir pelo clamor popular, abandonando os princípios da proporcionalidade, da racionalidade penal e da proteção dos direitos fundamentais. A condenação de um comediante, em contexto artístico, com base em falas ofensivas que geraram indignação social, pode ser um exemplo desse deslocamento da racionalidade para a punição de impacto.
A sentença afirma que o humor, nesse caso, não atenua, mas agrava a conduta, enquadrando-a na figura do "racismo recreativo" - conceito recentemente positivado pela lei 14.532/23. No entanto, essa interpretação, embora juridicamente plausível, afasta qualquer análise contextual do humor como linguagem social e cultural, muitas vezes carregada de ironia, sarcasmo e crítica social. O julgamento ignorou depoimentos de testemunhas, incluindo pessoas com deficiência, que afirmaram não se sentir ofendidas e, inclusive, acolhidas pelo conteúdo do show.
Além disso, não há nos autos evidências de que as piadas tenham gerado, de fato, atos discriminatórios concretos por parte de terceiros. O crime de incitação à discriminação, embora de natureza formal, não deveria ser interpretado de modo a tornar irrelevante o contexto, a intenção comunicativa e o meio artístico em que a fala foi proferida. Friedrich Hayek, ao tratar dos riscos do autoritarismo, adverte que o excesso de regulação da expressão em nome do bem coletivo pode resultar na supressão da liberdade que se busca preservar.
É necessário afirmar, com clareza: não se trata de defender as piadas ou seu conteúdo, mas sim o equilíbrio entre liberdade de expressão e o poder punitivo do Estado. O combate ao preconceito e à discriminação é urgente e legítimo, mas não se pode utilizar a pena de prisão como mecanismo de pedagogia social, sob pena de se corroer os pilares constitucionais da legalidade, proporcionalidade e liberdade.
A cultura e o humor devem evoluir, sim. Mas essa evolução não se constrói pelo medo ou pela repressão. A resposta estatal deve ser inicialmente educativa, dialógica e proporcional - por meio de sanções cíveis, retratações públicas, campanhas de conscientização e, se necessário, penas alternativas.
A justiça não pode se confundir com vingança institucional. Como ensina Luigi Ferrajoli, "a legalidade da pena não é um obstáculo à justiça, mas sua própria condição". E uma pena de oito anos de reclusão, diante de um contexto artístico e de um histórico de tolerância cultural à linguagem humorística agressiva, parece menos voltada à proteção de bens jurídicos e mais voltada à sinalização moralizante ao público.


