Nova lei de concessões: Amadurecimento do sistema jurídico da infraestrutura como meio de atração de investimentos
Novo marco legal das concessões busca segurança jurídica e eficiência para atrair R$ 300 bi em investimentos em infraestrutura até 2025.
sexta-feira, 13 de junho de 2025
Atualizado às 09:01
A infraestrutura é um dos pilares mais estruturantes para o desenvolvimento de qualquer nação. Tanto é que, em 2022, o Banco Mundial recomendou que o Brasil aumentasse "o investimento público em infraestrutura para frear seu empobrecimento, ampliar o acesso, melhorar a qualidade e, assim, aumentar a produtividade e a competitividade da economia"1.
Para 2025, leilões alcançam o patamar estimado de R$ 300 bilhões em investimentos2. Contudo, não basta necessariamente gastar mais, mas sim melhor. E a eficácia desses investimentos perpassa pela formação de um sistema jurídico-normativo próprio, hígido, que sirva como base para garantia da segurança jurídica e, assim, para a eficiência na alocação e fruição de recursos investidos3.
O regime atualmente aplicável à infraestrutura nacional consiste, além das normas constitucionais4, em três normativos específicos: as leis de licitações5, concessões6 e PPPs7. Daí se exsurge um antigo anseio pela criação de um marco legal específico e único.
O esforço na consolidação deste marco legal único remonta a 2017, com alguns projetos de lei que propunham alterações na lei de PPPs. Após a designação de relator - deputado Arnaldo Jardim -, a pauta ganhou tração e passou por diversas alterações até adquirir a roupagem atual, centralizada no PL 7.063/17. Essa ideia de centralização era a força motriz do projeto ao menos até abril deste ano, posto que o seu texto sugeria a revogação das leis de concessões e PPPs e substituição por marco único, mantendo-se vigente apenas a lei de licitações, que continuaria sendo aplicada de modo subsidiário.
Ocorre que, após rodadas de conversas com atores setoriais, a estrutura deste PL foi radicalmente alterada. O texto de abril passou por três versões subsequentes em maio. Em 7/5, foi aprovado texto final pela Câmara dos Deputados, que, no momento, está sob análise no Senado Federal.
Não mais se propõe a revogação completa das leis de concessões e PPPs, mas alterações nestes diplomas legais, bem como propostas de alteração nas leis de relicitação (lei Federal 13.448/17) e na de crimes ambientais (lei Federal 9.605/1998). Com isso, diminuiu-se o texto de 99 (versão de abril) para 35 laudas (última versão).
Ainda assim, como nas versões anteriores, percebe-se, no texto final, a preocupação em normatizar diversos pontos sensíveis e conhecidos pelo setor, para que se possa dar mais garantias ao dinamismo e mutabilidade necessários para a gestão contratual de instrumentos tão complexos e relevantes como as contratações de projetos de infraestrutura.
Neste contexto, destacamos 14 pontos que entendemos ser bastante relevantes à atratividade de projetos.
- Reequilíbrio econômico-financeiro. Previsão da possibilidade de reequilíbrio cautelar (outrora noticiado como "reequilíbrio automático"), para redução de impactos à concessão, até a conclusão da apuração do valor a ser reequilibrado. Ainda, foi incluída como cláusula essencial aquela que disponha sobre prazo para resposta a pleito de reequilíbrio (o texto anterior propunha expressamente um teto de 180 dias, o que não foi refletido na nova versão). Também foi disposto expressamente prazo prescricional quinquenal para pleitos de reequilíbrio, seguindo entendimento doutrinário. As alterações de cunho temporal são benéficas, posto que discussões envolvendo reequilíbrio são complexas e podem ser obstadas por análise morosa pelo parceiro público. Também foi mantida multa por má-fé referente a pleito de reequilíbrio, arbitrada entre 1% e 10% do valor do pleito.
- Aporte em concessões comuns. Previsão de aportes para a realização de obras e aquisição de bens reversíveis.
- Concessões multimodal. Possibilidade de que a licitação preveja prestação de serviços e execução de obras conexos (execução associada).
- Bens da concessão como garantia. Possibilidade expressa de que concessionárias ofertem em garantia bens da concessão imprescindíveis à continuidade, qualidade e atualidade dos serviços.
- Inadimplemento público. A atual lei de concessões prevê a possibilidade de interrupção quando motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações e por inadimplemento do usuário (art. 6º, § 4º). O último texto propõe, no que tange à lei de concessões, a possibilidade de suspensão da execução de obras em caso de inadimplemento público superior a 2 meses. Com isso, mitiga-se o principal e mais temido risco presente em projetos de PPPs: a inadimplência pelo Poder Público. Especialmente no que se refere à lei de PPPs, foi incluída como cláusula essencial ao contrato aquela que definirá as hipóteses em que a concessionária pode interromper ou reduzir o serviço por inadimplemento público, após prévio aviso.
- Matriz de riscos. A alocação de riscos é um dos pilares de qualquer projeto de infraestrutura, sendo ponto crucial nas modelagens. A atual lei de PPPs é singela ao definir como diretriz de contratação a "repartição objetiva de riscos entre as partes" (art. 4º, VI). Com os conceitos mais claros empregados no novo marco legal, deixando clara a necessidade de repartição objetiva de riscos entre as partes, garante-se maior segurança e previsibilidade quanto ao tema. Um exemplo é a disposição, dentre as cláusulas essenciais, daquelas relativas "à repartição objetiva de riscos entre as partes, inclusive os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária".
- Receitas alternativas, complementares, acessórias ou de projetos associados. O texto atual inclui expressamente condições e regras para obtenção destas receita, como por exemplo a obrigação do contrato dispor se tais receitas serão consideradas na aferição do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato. Especificamente quanto à possibilidade expressa de extrapolação da vigência contratual na exploração de empreendimentos acessórios ou de projetos associados, quando necessário à sua viabilidade econômico-financeira, o dispositivo permite maior flexibilidade para a fruição destas receitas, mormente em casos de empreendimentos cujos investimentos possuem longo período de amortização (e.g. empreendimentos imobiliários).
- Tarifas. Possibilidade de remuneração, por tarifa, de serviços públicos divisíveis ou indivisíveis. Trata-se de disposição polêmica com alto risco de questionamento, dada a própria natureza imensurável dos serviços indivisíveis (e.g. drenagem de águas pluviais, varrição e iluminação pública).
- Recuperação judicial. Enquanto o texto anterior vedava expressamente a possibilidade de recuperação judicial às concessionárias de serviço público, o novo texto apenas delimita que a admissão de concessionárias sujeitas a este regime não afasta a possibilidade de intervenção na concessão.
- Aumento do limite de comprometimento da Receita Corrente Líquida. A atual lei de PPPs veda a concessão de garantia ou realização de transferência voluntária pela União a outros entes federativos quando a soma das despesas de caráter continuado derivada das parcerias já contratadas tiver excedido, no ano anterior, a 5% da RCL ou se as despesas anuais dos contratos vigentes nos 10 anos subsequentes excederem a 5% da RCL projetada (art. 28). Este percentual foi duplicado na nova lei. Por um lado, o aumento da margem percentual pode ampliar a possibilidade de projetos a serem modelados, porém, o condicionamento de acesso a recursos Federais a um nível de comprometimento orçamentário é, para parte da doutrina, sinal de abuso de spending power pela União8 Esse tipo de argumento pode gerar pontos de discussão, mas há de se ponderar quanto à eventual superação do tema ante o alargamento da margem percentual.
- Novos critérios de julgamento. Dentre as novidades, cita-se, por exemplo, a maior quantidade de obrigações de fazer e o menor valor de aporte para realização de obras ou aquisição de bens reversíveis. Apesar de aumentar as possibilidades de projetos a serem modelados, em tese aumentando o universo de possíveis licitantes, deve-se atentar à real e robusta justificativa, por cada ente federativo, para adoção destes critérios. No mais, a utilização de critérios relativos à melhor técnica foi expressamente restrita a hipóteses em que "a implantação do empreendimento ou a prestação do serviço envolvam complexidades técnicas não usuais ao setor relacionado ao objeto da concessão ou que demandem tecnologias de domínio restrito no mercado"; trata-se de ponto com especial reflexo nas concessões de saneamento, refletindo longa discussão jurisprudencial do setor.
- Concessão por adesão. Possibilidade de órgãos de outros entes federativos aderirem à estruturação e contratação de uma concessão com condições semelhantes à contratação original. Ponto potencialmente garantidor de maior celeridade e eficiência para certos projetos, mas que deve ser tratado com cautela, ante o risco de burla e deturpação do dispositivo para fugir às regras licitatórias padrão.
- Meios alternativos de resolução de controvérsias. Enquanto o texto anterior trazia disposições específicas (inclusive sobre dispute boards, por exemplo), a versão atual contém dispositivo genérico indicando a possibilidade de previsão contratual para meios alternativos de resolução de controvérsias.
- Hipóteses de extinção. Disposições expressas prevendo extinção por relicitação ou acordo entre as partes.
- Autorização legislativa específica para PPPs. Alargado o percentual de remuneração do parceiro privado pago pela Administração Pública a impor necessidade de autorização legislativa específica para a concessão, de 70% para 85%.
Adicionalmente, mencionamos alguns dos pontos que deixaram de existir na última versão.
- Autorização expressa para utilização de fundos constitucionais para garantia de obrigações pecuniárias da Administração. O texto anterior gerava maior previsibilidade, endereçando dúvida recorrente quanto à possibilidade de entes subfederais utilizarem-se deste tipo de fundo, enquanto o texto atual não disciplina o tema.
- Concessão simplificada. Instituto novo introduzido no texto anterior, prevendo métodos simplificados para concessões de menor monta (e.g. realização de estudos baseados em parâmetros simplificados, consulta pública virtual com dispensa de audiência presencial), não é disciplinado na versão atual.
- Submissão de documentos licitatórios a Tribunais de Contas. Em uma das versões da nova roupagem do PL, ainda do mês de maio, havia previsões delineando como deveria se dar a submissão de documentos licitatórios ao órgão de controle externo competente antes de sua publicação, incluindo disposição de prazo expresso a ser observado para se pronunciar quanto à conformidade do projeto (120 dias). O tema é polêmico e certamente enfrentaria dificuldade na implementação, tendo sido retirado da versão atual.
A certa "timidez" na criação de um marco legal único e consolidado pode ser atribuída, naturalmente, às dificuldades de diálogo normalmente enfrentadas em qualquer esforço legislativo amplo. A reestruturação do texto, assim, pode ser avaliada por diversas óticas, mas fato é que vários pontos de inovação foram mantidos na roupagem final do PL.
Assim como nas versões anteriores, percebe-se nesta versão blocos de mudança na legislação atual que procuram (i) garantir maior segurança na gestão de riscos e no inadimplemento do parceiro público, risco extremamente presente em diversos projetos (muitas vezes por ampla volatilidade orçamentária); (ii) aprimorar questões já existentes na legislação, principalmente com consolidação de disposições expressas contendo orientações já praticadas no setor, como por exemplo a menção aos meios alternativos de solução de conflitos; e (iii) introduzir questões inéditas (e.g. concessão por adesão), com vistas aparentemente à garantia de maior celeridade e eficiência.
Independentemente da forma estrutural do PL, fato é que estas complexas alterações dos marcos legais existentes representam um igualmente complexo desafio em sua operacionalização. O texto proposto avança em muitos pontos e tende a garantir maior segurança jurídica, com formação mais clara de um sistema jurídico-normativo de infraestrutura, voltado à maior atratividade e fruição de investimentos. No entanto, sua aplicação exige uma mudança de paradigma e de raciocínio, quebrando crenças e costumes até então empregados, o que vai exigir muito dos entes federativos para a aplicabilidade/adaptação às novas normas, certamente gerando dúvidas e litígios.
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1 Relatório disponível em:
2 Vide: https://www.gov.br/transportes/pt-br/assuntos/noticias/2025/02/teremos-o-maior-ano-para-a-infraestrutura-no-brasil-com-o-fortalecimento-dos-investimentos-privados-afirmou-renan-filho-em-evento-na-b3 e https://www.brasil247.com/economia/investimentos-em-infraestrutura-crescem-e-projetam-melhor-ano-da-decada#google_vignette.
3 Neste sentido, a lição de Augusto Neves Dal Pozzo: "(...) Os benefícios coletivos auferidos com a boa infraestrutura são devastadoramente incalculáveis, de importância supina no meio econômico e social, são eles que permitem alcançar o ideal desenvolvimentista, devidamente tracejado como objetivo da república em nosso texto constitucional. Paradoxalmente, entretanto, o grande problema a enfrentar consiste no fato de que o Direito Público brasileiro e, em especial, o Direito Administrativo, não se ocupam, cientificamente, da infraestrutura sob a perspectiva dinâmica, como uma verdadeira atividade, o que, certamente, contribui para o histórico déficit na matéria. Em rigor, as infraestruturas sequer são tematizadas juridicamente no Brasil, o que, desnecessário dizer, deixa um campo aberto ao arbítrio e à insegurança jurídica". DAL POZZO, Augusto Neves. O Direito Administrativo da Infraestrutura. São Paulo: Contracorrente, 2020.
4 Especialmente os arts. 3º, I, 37 e 170 a 175 da Constituição Federal.
5 Lei Federal nº 14.133/2021.
6 Lei Federal nº 8.987/1995.
7 Lei Federal nº 11.079/2004.
8 O tema foi amplamente discutido, por exemplo, por Fernão Justen de Oliveira: "A questão ora em debate refere-se à ineficácia daquela mesma regra por abuso de spending power da União. Vale dizer: o dispositivo consistiria em indução ilegítima de condutas alheias pela União ao inviabilizar o exercício de competência privativa dos demais entes federativos". OLIVEIRA, Fernão Justen. Spending Power da União e o limite de despesas dos entes federados com PPP. Disponível em: https://justen.com.br/pdfs/IE32/IE32-Fernao-SpendingPower.pdf. A título de curiosidade, leia-se, ainda: "Embora a doutrina do direito financeiro nacional aparentemente não tenha o costume de tratar as transferências voluntárias como uma expressão do spending power, o instituto parece se adequar ao conceito até então aqui trabalhado. Essas transferências são definidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal e podem ser descritas como: 'a entrega de recursos correntes ou de capital a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, que não decorra de determinação constitucional, legal ou os destinados ao Sistema Único de Saúde'. Neste sentido, a spending clause viria do fato de que o dispositivo limita tanto a aplicação como o recebimento de recursos entre entes federados distintos ao cumprimento de uma condição de natureza financeira, qual seja a de ter responsabilidade fiscal no que concerne à gestão e instituição de impostos. Se essa não existir, descumpre-se a spending clause e tem-se, como consequência, a impossibilidade de se transferir recursos federais aos Estados e Municípios". CORRÊA, H. A. B.; PRADO, I. P.; COSTA, E. C. Limites ao uso do Spending Power da União na indução de padrões regulatórios nacionais em saneamento básico. Revista de Direito Setorial e Regulatório, v. 9, nº 1, p. 69-103, maio de 2023.
Luciana Campos Maciel da Cunha
Sócia-conselheira do escritório Bichara Advogados, liderando a área de Infraestrutura.
Caio de Almeida Faria
Advogado na área de Infraestrutura do Bichara Advogados.
Larissa Pereira Silveira
Advogada na área de Infraestrutura do Bichara Advogados.





