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Cláusulas morais: Entre a reputação da marca e a liberdade individual

Com o avanço da economia digital, cláusulas morais em contratos com influenciadores ganham relevância, exigindo equilíbrio com os valores constitucionais relativos à liberdade individual.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Atualizado às 14:10

Um levantamento realizado pela Influency.me, companhia especializada em marketing de influência, indicou que há atualmente, no Brasil, cerca de 2 milhões de influenciadores digitais, o que representa um aumento de 67% em relação ao número de 20241. Esse crescimento expressivo reflete uma tendência global do mercado de influência, que, segundo relatório do Goldman Sachs, deverá movimentar US$ 500 bilhões até 2027, impulsionado por investimentos corporativos em marketing e pela crescente monetização das redes sociais2.

Este é um indicador do interesse crescente de as companhias associarem suas marcas, produtos e serviços a criadores de conteúdo e figuras públicas a fim de atingir um público consumidor cada vez mais conectado às redes sociais. Ao mesmo tempo, em face dos custos reputacionais de tais associações, as corporações também têm a necessidade de preservar sua imagem institucional contra comportamentos individuais que possam ser considerados controversos ou incompatíveis com seus valores. Nesse contexto, a prática de incluir as chamadas cláusulas morais (moral clauses) em contratos firmados com figuras públicas ganha proeminência como ferramenta preventiva de gestão de risco reputacional.

As cláusulas morais consistem em disposições contratuais, usualmente inseridas em contratos de patrocínio ou em instrumentos voltados à promoção de produtos ou serviços, para assegurar à parte contratante o direito de aplicar sanções pecuniárias ou, conforme o caso, rescindir o vínculo, caso a pessoa contratada adote conduta considerada reprovável e que repercuta negativamente sobre sua imagem pública e, por consequência, sobre a reputação das marcas, produtos ou serviços a ela associados.

As origens das cláusulas morais são anteriores à digitalização da economia. Na década de 1920, quando crescia o interesse popular pela indústria cinematográfica nos Estados Unidos, o ator Fatty Arbuckle foi acusado de agressão sexual e homicídio. Embora posteriormente absolvido, o caso teve repercussões negativas sobre sua a carreira e a imagem pública da indústria como um todo. Como reação preventiva ao escândalo, a Universal Studios - mesmo não envolvida diretamente, já que Arbuckle era contratado da Paramount Picutres - incluiu cláusulas morais em todos os contratos de seus talentos, o que se tornaria um padrão da indústria nas décadas seguintes.

Ocorre que, ao mesmo tempo em que as cláusulas surgiram para resguardar o interesse legítimo da parte contratante em proteger a sua reputação, a evolução de tais cláusulas no direito norte-americano remete a um conflito entre este propósito e a preservação da esfera privada da parte contratada, revelando a presença de uma tensão entre o zelo do renome da contratante e a liberdade individual da contratada.

No final da década de 1940 e ao longo da década de 1950, os grandes estúdios de cinema dos Estados Unidos começaram a utilizar as cláusulas morais não só para coibir comportamentos considerado como imorais, mas também para restringir manifestações políticas. Na ocasião, diversos contratos foram rescindidos com base em cláusulas morais após atores e roteiristas denunciarem publicamente os abusos do House Committee on Un-American Activities, que conduzia investigações sobre a suposta infiltração comunista em Hollywood durante o governo de Joseph McCarthy3.

Embora os tribunais norte-americanos da época tenham confirmado a rescisão dos contratos, argumentando que o apoio público ao comunismo era uma conduta socialmente reprovável e, portanto, violadora da cláusula moral, esse episódio histórico evidencia o risco de que tais disposições contratuais sejam utilizadas como instrumentos de limitação indevida à liberdade de expressão. Essa é uma tensão que persiste na aplicação atual das cláusulas morais, inclusive no contexto brasileiro, e exige uma reflexão crítica.

As cláusulas morais estão sendo cada vez mais utilizadas no Brasil como um amparo contratual diante de polêmicas e escândalos públicos. Em 2022, patrocinadores do Flow Podcast anunciaram a rescisão dos contratos firmados com o programa após declarações de teor nazista realizadas pelo apresentador Monark4. Em episódio semelhante ocorrido em 2020, marcas associadas à influenciadora Gabriela Pugliesi divulgaram o encerramento das parcerias após Pugliesi participar de uma festa no auge da pandemia de Covid-19, causando repercussão negativa nas redes sociais5. Em ambos os casos, os desvios ao comportamento ético esperado foram determinantes para a rescisão dos contratos.

Não há previsão legal específica no ordenamento jurídico brasileiro sobre as cláusulas morais. No entanto, a sua admissibilidade decorre da autonomia privada assegurada pelo CC, cuja previsão no art. 421 estabelece que essa autonomia deve ser exercida nos limites da função social do contrato, observando-se, ainda, os princípios da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual nas relações privadas. As partes também devem observar a boa-fé objetiva e a lealdade contratual na celebração e execução do contrato, conforme o disposto no art. 422 da mesma legislação.

Com isso, é lícito que os contratantes estipulem obrigações que envolvam padrões mínimos de conduta pessoal e ética, sobretudo quando o objeto do contrato estiver relacionado à exposição da imagem e à reputação de marcas, produtos ou serviços. Ocorre que a eficácia dessas cláusulas dependerá diretamente da forma como forem redigidas e aplicadas. Cláusulas excessivamente genéricas ou redigidas de modo vago enfrentam o risco de serem consideradas abusivas ou inexequíveis, especialmente quando sua aplicação infringir direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, a intimidade ou a dignidade da pessoa humana.

A ausência de jurisprudência consolidada sobre o tema por parte dos tribunais e os efeitos da constitucionalização do Direito Civil, que impõe a necessidade de compatibilização entre os princípios constitucionais e contratuais, implicam em desafios para a utilização das cláusulas morais no direito brasileiro. Nesse contexto, expressões genéricas, como "conduta imoral", "ato reprovável" ou "comportamento incompatível com os valores da contratante", abrem espaço para interpretações arbitrárias e geram discussões sobre a abusividade da cláusula. Essa vagueza também compromete a intenção por trás de incluir essas cláusulas nos contratos: a proteção dos interesses comerciais e da imagem pública da parte contratante.

Há, portanto, a necessidade de atenção técnica rigorosa para a redação das cláusulas morais. Sempre que possível, a cláusula deverá incluir a descrição prévia de condutas consideradas como reprováveis, além de definir critérios objetivos para sua verificação. Para evitar que haja uma situação de desequilíbrio entre as partes, é também desejável a previsão de um procedimento mínimo de apuração ou contraditório, ainda que informal, como forma de conferir legitimidade e segurança jurídica à sua aplicação. Isto é necessário, visto que a eficácia das cláusulas morais está diretamente relacionada à forma como são construídas, reforçando a importância de serem concebidas com base em critérios técnicos e jurídicos sólidos.

Para construir e interpretar as cláusulas morais, além das exigências legais, é crucial considerar o contexto social, reputacional e midiático em que tais relações contratuais se inserem. Dessa realidade, surge uma complexidade própria: embora legitimada pelo princípio da autonomia privada, o processo de elaboração da cláusula requer uma conciliação entre os princípios constitucionais, as práticas de mercado e a ameaça de litígios judiciais. Nesse caso, a estruturação cuidadosa da cláusula moral demonstra que a prática contratual representa um instrumento estratégico para a proteção da credibilidade institucional da parte contratante, como também para a preservação dos direitos individuais da parte contratada.

Com um cenário em que as parcerias entre empresas e influenciadores se tornam cada vez mais destacadas, o prestígio público torna-se um ativo tão importante quanto os próprios produtos e serviços explorados. Por conta disso, nos contratos com figuras públicas, as cláusulas morais têm uma função estratégica pela sua capacidade de mitigar os efeitos jurídicos e econômicos dos comportamentos que possam comprometer a imagem institucional das partes.

Entretanto, a sua utilização deverá ocorrer de forma responsável e cuidadosa. A utilização de redações que ofereçam segurança jurídica e não gerem restrições arbitrárias ou desproporcionais à liberdade individual é o mais adequado em um ambiente de jurisprudência ainda escassa sobre o tema, como é o ordenamento jurídico brasileiro. Em vista disso, a combinação de sensibilidade ética e visão estratégica sobre o mercado de influência e a crescente visibilidade das marcas é o caminho mais apropriado para a estruturação de cláusulas morais.

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1 Disponível em: https://www.meioemensagem.com.br/midia/brasil-ja-soma-2-milhoes-de-influenciadores.

2 Disponível em: https://www.estadao.com.br/midia-mkt/mercado-influencia-movimenta-us-500-bi-2027-brasil-numero-influenciadores/.

3 Mais detalhes sobre o contexto histórico e a evolução das cláusulas morais podem ser encontrados em: EPSTEIN, Carolina. Moral Clauses: past, presente and future. In: Journal of Intellectual Property and Entertainment Law, New York University, vol. 5, n. 1, fall 2015. Disponível em: https://jipel.law.nyu.edu/vol-5-no-1-3-epstein/. Acesso em 7 de maio de 2025.

4 Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/02/08/flow-podcast-perde-patrocinios-apos-falas-de-teor-nazista-coletivos-judaicos-cobram-empresas/.

5 Disponível em: https://oglobo.globo.com/ela/gente/gabriela-pugliesi-perde-patrocinios-depois-de-festa-na-pandemia-deboche-nas-redes-24395695.

Felipe Paulino Ferreira

VIP Felipe Paulino Ferreira

Sócio das áreas de Societário/M&A e Contratos Empresariais em Andrade Chamas Advogados. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP/USP).

Jéssica Alcantara

Jéssica Alcantara

Advogada de Contratos Empresariais em Andrade Chamas Advogados. Bacharel em Direito pela Universidade Estácio de Sá (Ribeirão Preto/SP). Pós-Graduada em Direito Empresarial e Direito Contratual.

Laís Ferraz

Laís Ferraz

Bacharel e mestranda em Direito pela Universidade de São Paulo (2023). Advogada no escritório Andrade Chamas Advogados e Mestranda na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP.

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