Guarda compartilhada ou alternada? Quando a lei ignora o conflito
O texto critica a guarda compartilhada imposta em litígios, que se torna alternada na prática, gerando prejuízos emocionais à criança pela ausência de diálogo e cooperação entre os pais.
quarta-feira, 18 de junho de 2025
Atualizado às 11:27
Atualmente, em nosso ordenamento jurídico, a guarda compartilhada constitui a regra e deve ser determinada pelo Judiciário mesmo na ausência de acordo entre os genitores. O art. 1.584, §2º, do CC é claro ao dispor que a guarda será fixada nessa modalidade ainda que não haja consenso sobre a forma de seu exercício, desde que ambos os pais estejam aptos ao desempenho do poder familiar. A exceção ocorre apenas em duas hipóteses: quando um dos genitores expressamente declara não ter interesse na guarda compartilhada, ou quando houverem provas da existência de violência doméstica ou familiar, conforme modificação introduzida no texto pela lei 14.713/23.
Em razão da interpretação literal do dispositivo, sua aplicação prática tem seguido um padrão recorrente: quando os genitores estão de acordo quanto ao plano de parentalidade, o juiz o homologa, desde que verificado não haver prejuízo aos filhos. Na ausência de consenso, as partes são encaminhadas para avaliação psicossocial. Caso o laudo ateste que ambos os pais estão aptos ao exercício do poder familiar, o magistrado impõe a guarda compartilhada, justificando-se no dever de observância à norma legal. Na mesma decisão, é fixado o lar de referência da criança e, ao genitor não residente, é estabelecido um regime de convivência, que costuma se restringir a finais de semana alternados e, eventualmente, a um dia na semana, além da divisão dos períodos de feriados e férias escolares.
A reflexão que se impõe é que, nesse contexto, a chamada guarda compartilhada existe apenas no nome, pois o modelo efetivamente idealizado pelo legislador não encontra correspondência prática em decisões que vem sendo proferidas pelos tribunais.
O instituto da guarda compartilhada tem origem no Direito anglo-saxão, sob a denominação joint custody, modelo no qual ambos os genitores compartilham a responsabilidade pelas decisões mais relevantes da vida do filho, independentemente do lar de referência. Estudos científicos demonstraram que essa forma de guarda é a mais benéfica às crianças, por preservar maior semelhança com a aquela exercida por ambos os pais durante a convivência sob o mesmo teto, antes da separação. Nesse sentido, a guarda compartilhada tende a preservar, na medida do possível, a rotina pré-divórcio da criança, atenuando os impactos emocionais decorrentes da dissolução da unidade familiar.
Dessa forma, há diretrizes que sustentam e recomendam o exercício da guarda compartilhada, como a preservação da continuidade na vida da criança, o fortalecimento dos vínculos afetivos com ambos os genitores e a promoção da estabilidade emocional. Esses princípios orientaram o legislador na escolha pelo prognóstico do modelo obrigatório previsto no art. 1.584, §2º, do CC.
Ao que parece, no entanto, não houve melhor aprofundamento da questão sobre a imposição manu militari dessa forma de exercício da guarda, ou a questão cinge-se a ausência de melhor investigação do caso concreto, a fim de que seja apurado o melhor interesse da criança e do adolescente.
A doutrina especializada tem apontado diversas críticas à imposição judicial da guarda compartilhada, especialmente quando se traduz em uma divisão equitativa de tempo entre duas residências, sem considerar a realidade concreta das relações parentais. A chamada "dupla residência" não reduz os conflitos entre genitores em permanente antagonismo, inviabilizando a cooperação essencial ao compartilhamento efetivo da rotina dos filhos. Um exemplo ilustrativo é o do pai que pleiteia judicialmente a guarda compartilhada, mas mantém a mãe bloqueada em aplicativos de comunicação, como o WhatsApp. Tal conduta evidencia o paradoxo de se impor a corresponsabilidade parental em um contexto de ruptura comunicacional. Nesses casos, não há verdadeira intenção de compartilhar os cuidados com a criança, os quais muitas vezes são ainda delegados a terceiros, revelando a guarda como instrumento de disputa, e não de cuidado.
Outra situação frequentemente observada na prática forense envolve casos em que ambos os genitores, embora juridicamente aptos ao exercício do poder familiar, adotam estilos parentais completamente distintos ou antagônicos, tentando impor sua própria visão de criação durante os períodos de convivência exclusiva com o filho. Em contextos assim, longe de proporcionar estabilidade, a guarda compartilhada imposta acaba submetendo a criança a um ambiente de constante adaptação, no qual regras, rotinas e valores mudam radicalmente conforme a residência.
Enquanto um dos pais pode adotar uma abordagem mais permissiva, com menos estrutura e maior flexibilidade de horários, o outro pode ser extremamente rígido, com controle estrito sobre alimentação, sono, uso de telas e desempenho escolar. Essa discrepância gera confusão e insegurança na criança, que se vê obrigada a alternar sua personalidade entre modelos que não dialogam entre si, ou se anulam. A ausência de mínima harmonia entre os estilos parentais inviabiliza a construção de uma referência coerente para o desenvolvimento infantil, além de implicar num aumento considerável de acusações envolvendo os atos de alienação parental.
A alienação parental se potencializa nesse descompasso, quando cada genitor tenta validar seu modelo educativo desacreditando o do outro, utilizando o tempo de convivência como oportunidade para reforçar sua autoridade em detrimento da do ex-cônjuge. A criança, então, passa a ser exposta a uma disputa silenciosa (ou escancarada) de influência, que compromete sua estabilidade emocional e prejudica o desenvolvimento da autonomia e da confiança nos adultos de referência. Em casos mais graves, leva à resistência ao convívio com um deles.
Portanto, onde não há alinhamento mínimo sobre valores, limites e estratégias educativas, a imposição da guarda compartilhada sem mecanismos efetivos de mediação e supervisão não apenas falha em cumprir sua finalidade protetiva, como também contribui para agravar os conflitos familiares, transformando a convivência em mais um campo de batalha.
O exercício da guarda por genitores em conflito aberto assemelha-se, muitas vezes, a uma disputa de posse ou à reivindicação de um troféu, uma batalha movida pelo desejo de vitória e validação, mais do que pelo cuidado com o bem-estar da criança. Nessa lógica distorcida, a guarda torna-se o prêmio simbólico de quem "tem razão" no litígio.
Apesar do termo "compartilhada", com essa distribuição de tempo e alternância das residências dos genitores que se odeiam e não cooperam, o que o Judiciário está fazendo é estabelecer, na prática, a guarda alternada que, pelos seus malefícios, foi expressamente proibida na França em 1984, após estudos constatarem que o elevado número de mudanças provoca instabilidade emocional e psíquica. A criança precisa de um ambiente previsível e estável1.
Outro exemplo recorrente é o da mãe que, ao entregar a criança para o pai, retira-lhe a chupeta, justificando que "sempre que vai para a casa do pai, ela some, e já está cansada de comprar outra". Situações como essa ilustram um padrão comum entre genitores em conflito: roupas, brinquedos e objetos pessoais passam a ser duplicados e segmentados conforme a residência, criando um sistema de compartimentalização que fragmenta o cotidiano da criança. Há a "roupa da casa do pai" e a "roupa da casa da mãe"; os "brinquedos da casa do pai" e os "brinquedos da casa da mãe". Nessa lógica, a criança assemelha-se a alguém em regime semiaberto, obrigada a deixar seus pertences acautelados ao cruzar os limites de cada lar, como se transitasse entre territórios rivais e não entre ambientes que deveriam, conjuntamente, promover seu bem-estar e segurança emocional.
Não se pretende, com essas observações, defender a exclusão da guarda compartilhada do ordenamento jurídico. No entanto, tampouco se pode considerar compatível com os princípios do acesso efetivo à justiça a camuflagem da aplicação de um instituto por outro. Impor, sob o rótulo de guarda compartilhada, um modelo que, na prática, se configura como guarda alternada, é desvirtuar o espírito da norma e comprometer a proteção integral da criança e do adolescente.
Na guarda alternada, cada genitor exerce de forma exclusiva a guarda da criança durante os períodos de sua convivência. Esse regime implica a alternância periódica da residência da criança (semanal, quinzenal ou mensal) entre os lares dos pais. Durante o tempo em que a criança permanece com um dos genitores, este assume integralmente as decisões do cotidiano e as responsabilidades relativas ao cuidado e à educação. Trata-se, portanto, de um modelo em que o exercício do poder familiar é fracionado no tempo, prescindindo de coordenação contínua entre os pais. Essa ausência de articulação, contudo, tende a gerar instabilidade emocional e prejuízos ao desenvolvimento psíquico da criança, sobretudo quando há estilos parentais conflitantes, situação comum nos casos marcados por elevado grau de litígio2.
Existem inúmeros critérios na fixação da guarda em casos de dissidência entre os pais, que deveriam de fato serem investigados quando da elaboração do estudo psicossocial: 1) quem melhor preserva a criança dos conflitos parentais, sendo este um grande fator de risco para o seu desajustamento psíquico; 2) quem é o genitor representativo do laço de apego como cuidador primário daquela criança; 3) qual era o contexto dos cuidados desempenhados por ambos os pais antes do divórcio; 4) a não separação dos irmãos; 5) quem melhor estimula o contato com o outro genitor; 6) como os pais dividem o seu tempo para se empenharem no cuidado com a prole; 7) quem melhor respeita a autonomia progressiva dos filhos; 8) além de todas as razões sociais, familiares e escolares para estabelecimento da residência da criança.
Todas essas questões demandam aprofundamento investigativo, além da mera apuração da existência ou não de "causa impeditiva ao exercício do poder familiar". É imprescindível apurar quem, de fato, demonstra disposição e histórico de envolvimento com os cuidados cotidianos da criança, e quem apenas adentra a disputa judicial movido por ressentimentos ou interesses alheios ao bem-estar da prole, tratando a guarda como se estivesse reivindicando a partilha de um bem patrimonial. A pergunta que deve nortear essa análise é: a motivação está centrada na proteção e no desenvolvimento saudável do filho, ou no ego do demandante?
Talvez a concepção, ainda incutida em alguns genitores, de que a guarda representa um privilégio, e não uma responsabilidade, remonte aos tempos em que, sob a égide do CC de 1916, discutia-se judicialmente a culpa pelo fim do relacionamento conjugal3. À época, a atribuição da guarda era vinculada à declaração de inocência de um dos cônjuges, como se constituísse uma espécie de recompensa moral. Passados mais de um século, resquícios dessa lógica ainda permeiam o inconsciente coletivo, refletindo-se nas disputas contemporâneas pela guarda dos filhos. A esse cenário se soma, muitas vezes, o ego ferido daquele que, em vez de assumir a própria responsabilidade pela dissolução da relação, transforma a guarda em instrumento de afirmação pessoal e revanche emocional, distanciando-se completamente do verdadeiro interesse da criança, como já discorremos em outra oportunidade4.
A guerra pelo compartilhamento do poder na guarda compartilhada manu militari, em nada se assemelha ao compartilhamento de responsabilidades idealizado pelo legislador. A bem da verdade, a maioria dos casos em que o casal parental possui maturidade suficiente para exercer em harmonia a guarda dos filhos, sequer chegam ao Judiciário. E é esse o ponto que não foi visto pelo legislador: os casos levados à apreciação do Judiciário são litigiosos, e demandam uma solução artesanal. A lei indica a saída genérica, que se transmuda na guarda alternada, objeto de críticas em estudos científicos devido aos potenciais impactos negativos no desenvolvimento infantil5.
Em suma, a imposição da guarda compartilhada manu militari revela-se, na prática, uma fonte contínua de conflitos, especialmente quando aplicada a casos em que não há cooperação ou diálogo efetivo entre os genitores. Longe de realizar os objetivos traçados pelo legislador, como a corresponsabilidade parental e a proteção integral da criança, esse modelo acaba por se transfigurar em uma guarda alternada na prática, cujos prejuízos à estabilidade emocional da criança ou adolescente já foram amplamente reconhecidos em estudos científicos e experiências internacionais. Nesse contexto, torna-se imperioso que o Poder Judiciário reconheça essa distorção e afaste a aplicação automática da guarda compartilhada nos casos de alta litigiosidade, sob pena de comprometer o próprio princípio da pacificação social, que constitui um dos pilares da função jurisdicional. A guarda imposta sem diálogo e cooperação não é compartilhada: é alternada. Por isso deve ser qualificada e impugnada como tal.
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1 Ver, por todos: MADALENO, Rolf; MADALENO, Rafael. Guarda compartilhada: física e jurídica. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. P. 105.
2 GOMIDE, Paula Inez Cunha. Inventário de estilos parentais: modelo teórico, manual de aplicação, apuração e interpretação. 4. ed. rev., atual. e ampl. com teoria e prática. Curitiba: Juruá, 2021.
3 Era a redação do Código revogado: Art. 326. Sendo o desquite judicial, ficarão os filhos menores com o conjugue inocente. § 1º Se ambos forem culpados, a mãe terá direito de conservar em sua companhia as filhas, enquanto menores, e os filhos até a idade de seis anos. § 2º Os filhos maiores de seis anos serão entregues à guarda do pai. Art. 326. Sendo desquite judicial, ficarão os filhos menores com o cônjuge inocente. § 1º Se ambos os cônjuges forem culpados ficarão em poder da mãe os filhos menores, salvo se o juiz verificar que de tal solução possa advir prejuízo de ordem moral para eles.
4 Sobre a correlação da conduta dos pais diante da modernidade líquida e a alienação parental, ver: ROCHA, Beatrice Merten. Oresteia e alienação parental: um diálogo entre o mito e o Direito de Família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8014, 10 jun. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114344. Acesso em: 13 jun. 2025.
5 Sobre os malefícios do regime de alternância da guarda: Benfica, G. C. C. (2019). Aspectos psicológicos em crianças que vivenciam a guarda alternada na cidade de Sete Lagoas. Faculdade Ciências da Vida. Cardoso, A. G. G. (2018). Os reflexos da convivência alternada no desenvolvimento psíquico na primeira infância. Pontifícia Universidade Católica de Goiás. MyFraternity. (2021). Desvantagens da residência alternada: uma breve visão crítica.


