A urgência de regulamentação dos dispute boards: Breve análise do PL 165/24 do município do Rio de Janeiro
Aprovado no Rio, o PL 165/24 regulamenta os dispute boards e fortalece a resolução de conflitos em contratos públicos, incentivando segurança e investimentos.
terça-feira, 17 de junho de 2025
Atualizado às 08:44
Desde a publicação da lei federal 14.133/21, que disciplina o novo regime de licitações e contratos administrativos, a questão dos dispute boards - também denominados comitês de resolução de disputas - vêm ganhando maior importância no relevo jurídico nacional, ao expressamente autorizar o uso deste método de resolução de disputas pela Administração Pública.1
Os dispute boards são mecanismos de resolução de conflitos criados para garantir maior eficiência em projetos de longo prazo, especialmente no setor da construção civil. Consistem em um painel de especialistas independentes, nomeados no início do projeto e mantidos até sua conclusão, acompanhando todos os estágios da execução do contrato, de forma preventiva e resolutiva.2
A atuação dos dispute boards consiste em intervir e/ou assistir eventuais disputas surgidas no decorrer da execução do contrato entre as contratantes, de modo a emitirem recomendações ou decisões, a depender do mandato que lhes foi conferido, de modo ágil, especializado e técnico3. Os comitês de resolução de disputas funcionam como uma ferramenta estratégica para evitar conflitos, assegurando a continuidade das obras e reduzindo a probabilidade da transformação dos conflitos em litígios.4
Apesar de ser inicialmente concebido para ser empregado em contratos de construção, os dispute boards tem ganhado popularidade em contratos como concessões, parcerias público-privadas e contratos de fornecimento. Ou então, nas palavras da professora Paula Butti Cardoso, a utilização de comitês de resolução de disputa vem crescendo em "contratos de longo prazo ou de execução diferida, características das quais são dotados muitos contratos administrativos".5
Essa popularidade se justifica pela utilidade desse instrumento, cuja "principal finalidade é contribuir para a regular execução do contrato, dentro do tempo previsto, mitigando o risco de que as divergências naturais dos contratantes venham a gerar conflitos que impactem o cumprimento das obrigações contratuais."6
Para atingir tal fim, os contratantes elegem pessoas independentes e especializadas na matéria do contrato celebrado para auxiliá-las na execução deste, remetendo quaisquer decisões acerca do fiel cumprimento do contrato a este comitê7. Ou seja, para a composição do comitê não há, necessariamente, que se indicar um advogado, existindo uma flexibilidade para eleger um terceiro independente que possua expertise no assunto em questão, seja este de engenharia civil, marítimo, contábil, químico etc.8
Não por outro motivo, a ANTT - Agência Nacional de Transporte Terrestre publicou a resolução ANTT 6.040/24, com o objetivo de disciplinar, em especial, a instituição de "comitês de prevenção e resolução de disputas" para resolver eventuais controvérsias envolvendo concessionárias.
Tal ferramenta está abarcada dentro da categoria de métodos alternativos de resolução de conflitos. Contudo, ao contrário de outros instrumentos que integram a essa categoria, como a arbitragem e a mediação, que foram disciplinados no âmbito federal em 1996 e em 2015 respectivamente, os dispute boards não possuíam - até agora - qualquer tipo de normativa própria para reger esse procedimento no âmbito federal.
Conforme já identificado por doutrinadores, ainda há determinada resistência na utilização dos dispute boards, oriunda da inexistência de lei federal específica o instrumento:
"o principal obstáculo à aceitação e consequente utilização do instrumento deriva da inexistência de legislação federal específica sobre o CRD, colocando em posição desconfortável tanto o gestor da empresa pública como o da iniciativa privada. Ao gestor de órgão público, porque lhe falta respaldo jurídico perante os órgãos de controle, tornando lógica a sua decisão de priorizar o direito de recorrer à arbitragem, pois esta lhe traz o suporte da já citada lei 9.307/1996. Já o gestor de entidade privada, ante a percepção de que é alta a probabilidade de o gestor público não aceitar uma Recomendação, tende a enxergar o CRD como um custo adicional."9
Registra-se que já existem esforços a nível federal para normatizar os dispute boards, como o PL 9.883/18 (Deputado federal Pedro Paulo, PMDB/RJ), que foi apensado ao projeto de lei 2.421/21 (Senador federal Antonio Anastasia, PSDB/MG). Tais projetos, contudo, tramitam sem pressa há anos perante o poder legislativo, em detrimento da segurança jurídica e da boa condução de comitês de resolução de disputa.
Frente a esse impasse, alguns municípios como São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre, e estados, como o Rio Grande do Sul10, supriram a ausência de legislação federal ao sancionar legislação específica regulando este instrumento. Inspirado por essas experiências, o vereador Pedro Duarte (NOVO) apresentou o PL 165/24 à Câmara Municipal do Rio de Janeiro, disciplinando a utilização de comitês de prevenção e solução de disputas - dispute boards - em contratos administrativos celebrados pela administração pública direta e indireta do município.
Em 3 de junho de 2025, o PL foi unanimemente aprovado em segunda discussão com três emendas11. No momento, aguarda-se a redação final do PL, contemplando as emendas discutidas, para que seja encaminhado para sanção ou veto da prefeitura carioca.12
Após sancionada, tal lei será aplicável a todos os contratos celebrados pela Administração Pública Direta e Indireta do Município do Rio de Janeiro que utilizem comitês de prevenção e solução de disputas para prevenir e decidir conflitos relacionados a direitos patrimoniais disponíveis.13
Aprendendo de experiências pretéritas de outros municípios, adotou-se na lei a possibilidade do dispute board possuir natureza (i) recomendativa, na qual são elaboradas sugestões não vinculantes para superar o impasse entre os contratantes, (ii) adjudicativa, na qual são proferidas decisões vinculantes para superar o conflito entre as contratantes, ou (iii) híbrida, na qual são cumuladas as funções das outras duas modalidades, a depender de qual será mais adequada para o caso em contesto.
Como não poderia deixar de ser, o texto do PL determina que a natureza do comitê de resolução de disputas dependerá dos poderes outorgados pelas contratantes no contrato administrativo celebrado. Ou seja, a vinculação das contratantes às determinações do dispute board dependerá de sua própria vontade pretérita de se vincular (ou não) às decisões exaradas por esse órgão.
Ainda assim, é certo que o PL antevê, desde logo, alternativas possíveis para a parte insatisfeita lidar com recomendação ou decisão proferida pelo comitê. Em hipótese de comitê de recomendação, a parte insatisfeita terá prazo de vinte dias úteis do recebimento da recomendação pelo comitê para notificar a outra parte e o próprio comitê de sua discordância, sob pena de conferir poder vinculante à recomendação.14
Por outro lado, em hipótese de comitê de adjudicação, a parte insatisfeita terá igualmente prazo de vinte dias úteis do recebimento da decisão para notificar a outra parte e o próprio comitê de sua discordância, como condição prévia para a instauração de ação judicial ou arbitral, a depender do mecanismo de resolução de controvérsias previsto no contrato administrativo. Nesse caso, contudo, é importante esclarecer que a doutrina consagrou a máxima "pay now, argue latter approach", ou seja, a obrigatoriedade das decisões proferidas por comitê de resolução de disputas não tem sua eficácia suspensa mediante a mera apresentação de ação judicial ou arbitral, acolhida sem efeito suspensivo.
No que tange aos membros do comitê, a redação do PL prevê que o comitê será composto por três pessoas, capazes e de confiança das partes, que deverão proceder com imparcialidade, independência, competência e diligência no desempenho de suas funções. Ademais, o texto final aprovado na Câmara dispõe que, assim como no caso dos árbitros, aplicam-se aos membros do comitê também as situações que caracterizam os casos de suspeição e impedimento dos juízes, conforme previstos no CPC.
Naturalmente, com o sancionamento dessa lei, será mais profícuo o debate jurisprudencial acerca deste tema, bem como serão evidenciadas novas tendências na utilização dessa ferramenta pelo mercado. Ainda assim, aprovações de lei como a presente demonstram-se como um grande "sinal verde" para investimentos na cidade do Rio de Janeiro, que contariam com o respaldo de uma ferramenta inovadora para garantir a eficiência e o equilíbrio de contratos de longo prazo ou de execução diferida, sejam esses pactuados com a Administração Pública ou entre entes privados - que façam uso desses parâmetros para balizar suas próprias avenças.
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1 BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos: "Art. 151. Nas contratações regidas por esta Lei, poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem."
2 GABBAY, Daniela; ALVES, Rafael. Aspectos práticos da produção antecipada de provas em arbitragens de construção civil no direito brasileiro. In: MARCONDES, Fernando. (Org.). Direito da Construção: estudos sobre as várias áreas do Direito aplicadas ao mercado da Construção. São Paulo: Pini, 2014, p. 145.
3 TAGGART, Paul. Dispute boards as pre-arbitration tools: recent developments and practical considerations. Disponível em: https://arbitrationblog-kluwerarbitration-com.sbproxy.fgv.br/2015/02/28/dispute-boards-as-pre-arbitration-tools-recent-developments-and-practical-considerations/. Acessado em 5.5.25.
4 MAIA NETO, Francisco. Dispute Board: o encontro entre o técnico e o jurídico. In NASCIMBENI, Asdrubal Franco, CARDOSO, Christiana Beyrodt; RANZOLIN Ricardo (coords). Meios adequados de solução de conflitos: arbitragem, dispute board, mediação, negociação e práticas colaborativas. São Paulo: Almedina, 2023, p. 185.
5 CARDOSO, Paula Butti. Comitês de resolução de disputas em contratos administrativos: compatibilidade dos comitês de natureza adjudicativa com os contratos firmados no âmbito da Administração Pública. In Publicações da Escola Superior da AGU. v. 14, 2022, p. 280.
6 DOMINGUES, Igor Gimenes Alvarenga. Comitês de Resolução de Disputas (dispute boards) nos Contratos da Administração Pública. São Paulo: Almedina, 2022, p, 23.
7 KOCH, Cristopher. Novo regulamento da CCI relativo aos dispute boards. In Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 6, 2005, pp. 143 - 175.
8 CAPAGIO, Álvaro do Canto. COUTO, Reinaldo. Nova lei de licitações e contratos administrativos. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 413.
9 JOBIM, Jorge Pinheiro; RICARDINO, Roberto; CAMARGO, Rui Arruda. A Experiência Brasileira em CRD: O Caso do Metrô de São Paulo. In: TRINDADE, Bernardo Ramos (Coord). CRD - Comitê de Resolução de Disputas nos Contratos de Construção e Infraestrutura: Dispute Resolution Board. São Paulo: Editora PINI, 2016.
10 Justificativa do Projeto de Lei Complementar n° 165/2024 do Município do Rio de Janeiro. Disponível em: https://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/scpro.nsf/0/03258C16006F052703258AED006759B1?OpenDocument. Acesso em 5.5.25.
11 Ordem do Dia - Projeto de Lei Complementar n° 165/2024. Disponível em: https://www.camara.rio/atividade-parlamentar/plenario/discursos-e-votacoes. Acesso em 4.4.25.
12 Lei orgânica do Município do Rio de Janeiro: "Art. 79 - Concluída a votação do projeto de lei, a Câmara Municipal o enviará ao Prefeito, que, aquiescendo, o sancionará."
13 Projeto de Lei Municipal do Rio de Janeiro n° 165/2024: "Art. 1º Esta Lei regulamenta a utilização de Comitês de Prevenção e Solução de Disputas - dispute boards nos contratos administrativos celebrados pela Administração Pública Direta e Indireta do Município do Rio de Janeiro, para prevenir e decidir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis."
14 Projeto de Lei Municipal do Rio de Janeiro n° 165/2024: "Art. 4º O Comitê terá natureza recomendativa, adjudicativa ou híbrida, a depender dos poderes que lhe forem outorgados pelo contrato administrativo celebrado. § 1º Ao Comitê de Recomendação é conferido o poder de emitir recomendações que não vinculam contratualmente as partes no momento de sua emissão, devendo-se observar que: I - a parte insatisfeita com a recomendação emitida terá prazo para notificar, nos vinte dias úteis seguintes ao seu recebimento, a outra parte e o Comitê a respeito de sua discordância; II - caso a parte insatisfeita com a recomendação não notifique tempestivamente o Comitê e a outra parte a respeito de sua discordância, a recomendação emitida passará a ter natureza de decisão contratualmente vinculante às partes."
Munique de Souza Mendes
Advogada no Salomão Advogados. Graduada pela PUC-Rio. LL.M. International Dispute Resolution, Humboldt-Universität zu Berlin (HU).
Julia Frony de Oliveira Macedo
Advogada no Salomão Advogados. Graduada pela PUC-Rio. Mestranda em direito civil pela UERJ.



