Alienação parental: Vedação ao retrocesso e proteção à criança
A revogação da lei de alienação parental afronta o princípio da vedação ao retrocesso, comprometendo a proteção integral da criança garantida pela Constituição e tratados internacionais.
quarta-feira, 18 de junho de 2025
Atualizado às 13:29
A análise da lei de alienação parental (lei 12.318/10), sob o prisma da teoria dos direitos fundamentais, revela os alicerces dogmáticos que tornam sua completa revogação um ato de retrocesso social inconstitucional. A discussão transcende a mera técnica legislativa e adentra o campo da responsabilidade do Estado para com a proteção da infância, um dever que encontra na obra de Robert Alexy e nos tratados internacionais de direitos humanos sua mais sólida justificação.
A compreensão do tema tem como ponto de partida a teoria desenvolvida por Robert Alexy, que distingue regras e princípios como espécies normativas distintas. Os direitos fundamentais, em sua maioria, assumem a forma de princípios, cuja aplicação demanda uma metodologia específica, uma vez que atuam como diretrizes a serem realizadas na maior medida possível. A formulação precisa do autor alemão contribui para elucidar a natureza e a extensão do dever estatal de proteção.
Princípios são, portanto, normas que expressam comandos de mandamento de otimização, cuja concretização admite diferentes graus conforme as possibilidades fáticas e jurídicas. Estas, por sua vez, são delimitadas pela ponderação com outros princípios e regras eventualmente colidentes (ALEXY, 2015, p. 90).
Esse entendimento aplica-se diretamente ao art. 227 da CF/88, que consagra o dever de proteção integral à criança com prioridade absoluta. Trata-se de uma norma principiológica que impõe ao Estado, à sociedade e à família o compromisso de mobilizar todos os meios disponíveis para assegurar a dignidade e a convivência familiar da criança. A lei de alienação parental, nesse contexto, configura-se como instrumento jurídico voltado à efetivação concreta dessa diretriz constitucional.
A gravidade da alienação parental afasta o fenômeno da esfera dos meros conflitos de lealdade familiar e o insere no campo da violência. A lei 13.431/17, um marco civilizatório no sistema de garantias infanto-juvenis, é inequívoca quando, em seu art. 4º, inciso II, alínea "b", define a alienação parental como um arquétipo da violência psicológica. Com isso, o ordenamento jurídico brasileiro reconhece formalmente que a campanha de desqualificação de um genitor constitui uma agressão que produz prejuízo real ao desenvolvimento psicológico e emocional da criança.
Essa proteção encontra eco e reforço no cenário internacional. A Convenção sobre os Direitos da Criança (decreto 99.710/1990) assegura à criança o direito de preservar suas relações familiares sem interferências ilícitas. A própria Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao desenvolver o conceito de "dano ao projeto de vida", oferece uma poderosa ferramenta de compreensão: atos que violam direitos humanos, como a alienação parental, interrompem o natural desenvolvimento do sujeito e alteram drasticamente o curso de sua vida. A alienação, portanto, não subtrai apenas o afeto de um genitor; ela sabota o projeto de vida da própria criança.
Diante desse quadro, a proposta de revogação integral da lei de alienação parental colide frontalmente com o princípio da vedação ao retrocesso social. Este princípio, derivado dos mandamentos de otimização, proíbe que o Estado elimine, sem uma justificação constitucionalmente robusta, um nível de proteção a um direito fundamental já alcançado. A lei em vigor representa o patamar de proteção que a sociedade brasileira estabeleceu contra essa forma específica de violência.
A atuação do STF ilustra a aplicação vigorosa desse princípio e da função contramajoritária da justiça. Na ADPF 747, a ministra Rosa Weber suspendeu a revogação de resoluções do CONAMA que estabeleciam marcos regulatórios ambientais. A decisão fundamentou-se no fato de que "a mera revogação de normas operacionais [...], sem sua substituição ou atualização, compromete a observância da Constituição, da legislação vigente e de compromissos internacionais", o que configuram "aparente retrocesso" na proteção ambiental. De forma análoga, a revogação pura e simples da lei de alienação parental, sem um diploma que a aprimore ou substitua, criaria um vácuo normativo que comprometeria diretamente a proteção da criança contra a violência psicológica, em descompasso com a CF/88 e os tratados de direitos humanos.
Ademais, na ADPF 787, o ministro Gilmar Mendes ressaltou a importância da "função contramajoritária do controle de constitucionalidade e garantia de direitos fundamentais de minorias ou vulneráveis". O STF agiu para corrigir omissões estatais que dificultavam o acesso de pessoas transexuais e travestis, um grupo vulnerável, às políticas de saúde. Essa mesma lógica se aplica à proteção infantil. Crianças e adolescentes são um grupo hipervulnerável, e a lei que os protege contra uma forma específica de violência não pode ser suprimida pela vontade de uma maioria de ocasião, sob pena de violação do dever estatal de proteção. A revogação da lei significaria deixar essa minoria desprotegida, em um claro retrocesso combatido pela jurisprudência da Corte.
O debate público sobre tema de tamanha sensibilidade exige, contudo, uma postura que a própria filosofia política recomenda. Para Norberto Bobbio, a serenidade é a virtude fundamental para a convivência em um mundo conflituoso. A polarização que contamina a discussão sobre a lei, onde grupos se entrincheiram em posições irredutíveis, impede a construção de uma solução racional que tenha como centro o bem-estar da criança. A agressividade do debate, muitas vezes, é uma forma de violência que impede o diálogo. A lição de Bobbio é um chamado à moderação e ao respeito mútuo:
Vocês compreenderam: identifico o sereno com o não violento, a serenidade com a recusa a exercer a violência contra quem quer que seja. A serenidade é, portanto, uma virtude não política. Ou mesmo, neste mundo ensanguentado pelo ódio provocado por grandes e pequenos potentes, a antítese da política (BOBBIO, 2002).
A lição de Bobbio é fundamental: em vez de uma batalha de narrativas, o caminho para o avanço civilizatório é a construção de soluções a partir de um diálogo sereno e respeitoso, pautado na proteção da criança. A violência verbal e a intransigência impedem que se encontre o melhor caminho para o aprimoramento da lei.
Desta forma, a solução não reside na polarização, mas na serenidade e no diálogo. Críticas sobre a aplicação da lei são legítimas e devem fomentar seu aperfeiçoamento. Sua revogação, contudo, representaria um abandono da proteção da criança. Em um cenário de eventual aprovação legislativa da revogação, caberia ao Poder Judiciário, em sua função contramajoritária, salvaguardar o núcleo essencial do direito da criança à convivência familiar e à integridade psíquica, pois a defesa dos vulneráveis é um imperativo que não se submete às vontades transitórias das maiorias políticas.
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1 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2015.
2 BOBBIO, Norberto. Elogio da serenidade e outros escritos morais. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Editora UNESP, 2002.


