De olhos abertos: Equidade racial e o papel da advocacia
Com os olhos bem abertos, a Justiça precisa enxergar o racismo estrutural. Este artigo mostra como a advocacia pode ser protagonista na construção de julgamentos verdadeiramente antirracistas.
quinta-feira, 3 de julho de 2025
Atualizado às 14:46
No imaginário jurídico ocidental, Têmis representa a personificação da justiça. De olhos vendados, empunhando a balança e as tábuas da lei, ela traduz o ideal de imparcialidade, ordem e equidade. Mas, talvez mais do que símbolo da neutralidade, Têmis também é deusa da sabedoria e da verdade - verdades humanas, sociais, contextuais. É essa leitura que permite um cruzamento fundamental com o debate contemporâneo sobre julgamento com perspectiva racial e a necessária atuação antirracista da advocacia.
No Brasil, país de profundas desigualdades estruturais e históricas, o sistema de justiça não escapa ao racismo institucional. Dados do CNJ mostram que, embora mais de 50% da população seja negra, apenas cerca de 12% dos magistrados e magistradas se identificam como pretos ou pardos. A seletividade penal, a invisibilidade da dor negra nos litígios cíveis e familiares, e os obstáculos no acesso à justiça escancaram o que já não pode ser negado: a Justiça de olhos vendados não enxerga as desigualdades que mais doem.
É nesse cenário que emerge, com potência transformadora, o Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial, instituído pelo CNJ. Inspirado por compromissos internacionais e pelas exigências de um Estado Democrático de Direito genuinamente inclusivo, o Protocolo convida magistrados a lançarem novo olhar sobre os autos: um olhar que reconheça a trajetória racial dos sujeitos, as marcas do preconceito, e os impactos das exclusões históricas no presente das pessoas negras.
Essa Justiça não abandona os princípios, mas os reinterpreta à luz da realidade. É o que faz a nova iconografia de Têmis, representada sem vendas, com os olhos bem abertos para as desigualdades. Ela já não julga ignorando o contexto social, mas assumindo-o como parte inseparável do Direito. Trata-se de uma Justiça que compreende que, muitas vezes, tratar igualmente os desiguais é perpetuar a injustiça.
Nesse novo paradigma, a advocacia tem papel central. Defender uma causa, hoje, é também reivindicar um lugar de fala e de escuta. O advogado ou advogada antirracista precisa dominar os fundamentos jurídicos, sim - mas também ser porta-voz da equidade, da denúncia do viés racial, da resistência à normalização da seletividade e da construção de narrativas jurídicas que evidenciem as múltiplas dimensões do racismo.
Como no mito, Têmis sentava-se ao lado de Zeus para aconselhá-lo, pois sua sabedoria antecedia até mesmo a vontade dos deuses. Assim também deve ser o papel da advocacia: aconselhar, provocar, incomodar e iluminar os julgamentos com a luz da verdade racial e da justiça social. Têmis, afinal, é filha de Urano e Gaia - do espírito e da matéria. Da teoria e da prática. Do ideal e da vida concreta. E é nesse entrelaçamento que se constrói um Direito mais justo, mais humano e mais plural.


