De onde vem o trust?
Diversas famílias têm utilizado o trust, a fim de buscarem maior proteção e eficiência na passagem do patrimônio aos descendentes. Buscar sua origem nos ajuda a compreender melhor esse instrumento.
sexta-feira, 27 de junho de 2025
Atualizado às 07:45
Metodologia
Para o estudo e levantamento das informações, foi realizada uma busca por artigos e livros que abrangessem o assunto colocado em questão.
Foi utilizada a pesquisa bibliográfica, tendo como base o texto de Milena Donato Oliva na obra: Arquitetura do Planejamento Sucessório, o livro de autoria de Luciana Pedroso Xavier: Os trusts no Direito brasileiro contemporâneo, bem como a doutrina de autores diversos.
Após a pesquisa e leitura minuciosa acerca do tema trabalhado, realizou-se uma sintetização dos principais achados nas literaturas.
Introdução e desenvolvimento do tema
O trust é um instituto que surgiu no Direito inglês e é utilizado em jurisdições distintas, como instrumento de organização patrimonial e transferência do referido patrimônio às gerações seguintes.
Tendo em vista a liberdade que o instituidor possui para a criação das regras a serem cumpridas conforme a sua vontade em relação ao patrimônio, há um pujante interesse pelo aprofundamento das questões jurídicas correlatas, uma vez tratar-se de um tema ainda inédito para uma significativa parcela da sociedade.
Para melhor compreensão, é necessário que se faça um apanhado histórico e conceitual sobre o instituto.
A respeito do conceito de trust, Luciana Pedroso Xavier ressalta ser uma difícil tarefa, já que se trata de um instituto sem previsão legal no Direito brasileiro e com origem no Direito inglês, dentro do sistema jurídico da common law, no qual de um modo geral, não há um apego a conceitos.
A história desse instituto está ligada diretamente ao desenvolvimento da equity e da própria common law.
Em linhas gerais, equity é um sistema de regras e princípios próprios, traduzindo-se em um direito autônomo, criado e desenvolvido pelo chamado Tribunal do Chanceler1 a partir do conjunto de suas decisões, como forma de suprir a ausência de formalidade que havia na condução dos casos, cada vez mais desafiadores e inusitados, levados àquele Tribunal.
A partir desse momento surgiram, portanto, alguns princípios gerais expressos nas chamadas máximas da equity, as quais traçam diretrizes e caminhos para o exercício da jurisdição da equity.
Dentro do panorama medieval, no qual havia as relações de suserania e vassalagem, temos que o rei da Inglaterra como titular do trono e senhor das terras dentro de seu território, concedia seu uso aos nobres, que por sua vez, firmavam relações com os vassalos, os quais em sua totalidade deviam pagar tributos quando da transferência dos titulares em razão de falecimento.
Tem-se que em determinados casos de falecimento de um vassalo, o suserano (nobre que detinha a propriedade) retomava a posse e administração da terra até que o primogênito do vassalo atingisse a maioridade.
Tal situação causava prejuízos aos herdeiros do vassalo falecido e como forma de resolver a obrigatoriedade em pagar tributos, bem como a perda da terra, os vassalos passaram então a fazer uso do chamado use of lands (uso da terra), precursor do trust, no qual transferiam seus bens para uma pessoa de confiança o qual administrava tais bens em seu favor e após sua morte, em favor dos respectivos herdeiros.
O Chanceler interveio para que essa pessoa de confiança mantivesse a terra em uso e benefício do vassalo. No entanto o vassalo não seria considerado o proprietário, mas sim detentor do domínio útil, sendo que o Chanceler daria efetividade aos direitos do vassalo contra o administrador de sua confiança e também contra eventuais sujeitos que tomassem a terra desse.
Daí surgiu um entendimento de que a pessoa de confiança responsável em administrar os bens seria um proprietário legal e o vassalo um proprietário em equity.
O use of lands causou obviamente um prejuízo ao erário público, culminando na promulgação de uma lei (Statute of Uses) na qual se considerava o beneficiário como titular do bem, sem importar em nome de quem o bem se encontrava, devendo tal beneficiário arcar com os tributos.
Em oposição à referida lei, foi criada uma estrutura mais sofisticada, a qual englobava duas relações de uso. Segundo Frederic Willian Maitland2 a pessoa detentora de direitos, obrigada a exercê-los em favor de terceiros tem direitos em trust para aquele terceiro e é chamada de trustee.
Segundo Luciana Pedroso Xavier:
De modo mais pormenorizado, o instituidor do trust transferia sua propriedade para A usá-la em benefício de B, o qual deveria usar a propriedade em benefício de C. A relação entre A e B representaria o domínio legal, enquanto a relação entre B e C acarretaria no domínio útil e estaria fora do campo de proibição do State of Uses.
Tal acordo passou a ter reconhecimento jurídico na Corte de Chancelaria e a vincular o trustee.
Entretanto, após divergências interpretativas em relação a essa estrutura, achou-se por bem desdobrar o direito de propriedade no qual o trustee detinha a propriedade e o beneficiário o domínio útil.
Considerando esse cenário, compreender o trust partindo de uma perspectiva romano-germânica pode não ser uma tarefa fácil, tendo em vista que a divisão da propriedade seria conflitante com o sistema jurídico da civil law.
Todavia, a Convenção da Haia sobre a lei aplicável ao trust, concluída em 1985, traz uma definição em seu art. 2º que auxilia na compreensão do instituto ao prever que o termo trust se refere a relações jurídicas criadas - inter vivos ou após a morte - pelo outorgante (settlor) quando os bens forem colocados sob controle de um curador (trustee) para o benefício de um beneficiário ou para alguma finalidade específica.
Além disso, a referida convenção deixa claro que a titularidade dos bens em trust ficam em nome do trustee ou em nome de um terceiro em benefício do trustee. Todavia, referidos bens constituem um patrimônio separado e não fazem parte do patrimônio do aludido curador.
Caberá ao curador, o qual poderá ser uma pessoa ou empresa especializada, um amplo poder de gestão do patrimônio afetado, sempre em consonância com o que foi convencionado pelo instituidor do trust, em proveito dos beneficiários e com o dever de prestação de contas.
Tendo em vista que o instituidor tem liberdade para convencionar as regras do trust, tal ferramenta tem sido bastante buscada, no exterior, para fins de planejamento patrimonial e sucessório, a fim de organizar o patrimônio e facilitar o acesso das futuras gerações a esse patrimônio.
Ao trazermos o tema para o campo prático, temos que o instituidor poderá definir as regras para a passagem automática dos bens aos beneficiários, que podem ou não ser seus herdeiros. Para tanto, poderá criar classes de beneficiários, as formas pelas quais os beneficiários terão acesso aos proventos gerados pelos bens em trust, bem como determinar em qual momento e sob quais condições.
No Brasil, a primeira legislação a tratar dessa ferramenta foi a lei 14.754, de 12/12/23, a chamada lei das offshores que criou um novo cenário, uma vez que, pela primeira vez a nível nacional, trouxe uma definição jurídica ao instituto como um todo.
Portanto, o trust é considerado uma "figura contratual regida por lei estrangeira que dispõe sobre a relação jurídica entre o instituidor, o trustee e os beneficiários quanto aos bens e direitos indicados na escritura do trust".
Referida lei prevê ainda que a alteração da titularidade sobre os bens do trust será considerada como transmissão a título gratuito do instituidor ao beneficiário e, caso ocorra durante a vida do instituidor será tratada como doação. Já, se a transmissão ocorrer após seu falecimento, será tratada como transmissão causa mortis.
Outra questão tratada é a necessária alteração do trust para fazer constar de forma irretratável e irrevogável a obrigação do trustee em atender as disposições estabelecidas na referida lei.
Há muitas críticas e questionamentos em relação a essa legislação, uma vez que alguns dispositivos vão contra a essência do instituto. Por exemplo, o art. 10, inciso I o qual prevê a permanência da titularidade ao instituidor após a instituição do trust, quando na verdade, o usual seria a transferência da titularidade ao trustee.
Conclusão
O trust é uma importante ferramenta de planejamento patrimonial e sucessório, a qual, aos poucos está se tornando mais familiar aos brasileiros, sobretudo pelo fato de poderem se valer de uma legislação nacional como base, apesar de conter algumas inconsistências.
Como toda nova legislação, será necessário tempo para avaliar como será a performance nas questões práticas, o que poderá ensejar questionamentos no Poder Judiciário até que se estabilize a interpretação e aplicabilidade da norma.
______________
1 Tribunal do Chanceler ou chancelaria foi uma côrte criada pela monarquia inglesa, na qual o chanceler era um assessor muito próximo do Monarca e geralmente membro da Igreja, a quem era atribuído o poder decisório aos casos apelados ao Rei. Suas decisões precipuamente partiam de uma premissa de ordem moral e não necessariamente um fundamento jurídico.
2 1910, p.44, citado por Luciana Pedroso Xavier, 2023, p.53
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 29 de maio de 2024
BRASIL. Lei 14.754 de 12 de dezembro de 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14754.htm. Acesso em: 29 de maio de 2023.
HAIA. Conferência da Haia de Direito Internacional Privado. Convenção sobre a Lei Aplicável aos Trusts. A Haia: S.n., 1985. Disponível em: https://www.hcch.net/pt/instruments/conventions/full-text/?cid=59. Acesso em: 28 DE MAIO DE 2024.
OLIVA, Milena Donato. Trust. In: TEIXEIRA, Daniele Chaves (Coord.). Arquitetura do planejamento sucessório. 3 ed. Belo Horizonte, Fórum, 2022. p. 553-569. Tomo I.
XAVIER, Luciana Pedroso. Os trusts no direito brasileiro contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum, 2023.


