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Hermenêutica: A ciência do direito e o holismo jurídico

O jurista que não pensa transversalmente será substituído por quem - ou por aquilo - que pensa. "O Direito não é uma ilha" (frase inspirada no poeta inglês John Donne).

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Atualizado às 13:51

Tese

A ciência jurídica, quando autocentrada, torna-se normativista e estéril. O jurista que ignora a interdisciplinaridade não apenas empobrece sua análise, mas abdica da própria função hermenêutica do Direito: compreender, tensionar e orientar a realidade social. O Direito é linguagem, poder, técnica e cultura - logo, não pode ser praticado com a miopia de uma abordagem monodisciplinar.

Com base nisso, o holismo jurídico rejeita o reducionismo técnico. Na prática, isso significa que um dispositivo legal só é verdadeiramente compreendido quando analisado em suas múltiplas dimensões: axiológica (valores), pragmática (efeitos), sistêmica (coerência normativa) e existencial (impacto humano).

Fundamentação

A interdisciplinaridade no Direito é requisito de legitimidade do discurso jurídico. Desde a hermenêutica filosófica (Gadamer) até a análise econômica do Direito (Posner), da psicanálise (Freud e Lacan) à sociologia crítica (Bourdieu), toda compreensão jurídica profunda exige conexão com outros saberes - em direção a um verdadeiro holismo jurídico.

Normas não se interpretam em abstrato, mas em contextos vivos, repletos de conflitos reais, valores morais, interesses econômicos e estruturas de dominação. A "letra da lei" não existe isoladamente - ela é o ponto de partida, não o de chegada.

O jurista que ignora a psicologia do comportamento ao lidar com o consumidor, ou a biologia ao discutir o biodireito, ou a ciência de dados ao tratar do direito digital e das novas tecnologias, está preso a uma retórica obsoleta - e que, inevitavelmente, caducará.

Nesse contexto, o direito comparado e sua transversalidade se revelam complementares. Um exemplo? O sistema de precedentes brasileiro, que, embora historicamente vinculado ao civil law, é também inspirado no common law, revelando que o comparatismo não deve servir para copiar, mas para interrogar: por que fazemos do nosso modo, se há modos melhores?

Como propõe Rodolfo Sacco, o comparatismo deve "espelhar o desconhecido no conhecido" - e não colonizar práticas jurídicas locais com soluções estrangeiras. Isso exige um jurista menos arrogante e mais filosófico, capaz de reconhecer que seu ordenamento não é o centro do mundo.

Conclusão

A ciência do Direito e o holismo jurídico não se excluem - ao contrário, se reclamam mutuamente. A complexidade do mundo contemporâneo exige do jurista mais do que técnica: exige visão ampla, escuta ativa e humildade epistemológica.

Em um cenário em que máquinas já operam com base em lógica normativa, o diferencial humano está na capacidade de integrar, interpretar e tensionar realidades plurais. Pensar transversalmente não é luxo intelectual - é condição de sobrevivência para o Direito enquanto instrumento de justiça.

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GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes.

SACCO, Rodolfo. Introduzione al diritto comparato. Torino: UTET.

STRECK, Lenio. O que é isto - decido conforme minha consciência? Revista de Direito do STJ, 2018.

POSNER, Richard. Economic Analysis of Law. Aspen Publishers, 2010.

Antonio Filipe de Araújo Monteiro

Antonio Filipe de Araújo Monteiro

Advogado especialista em Direito Civil, tecnologia e conformidade. Integro hermenêutica crítica à prática jurídica, unindo inovação, rigor técnico e visão interdisciplinar.

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