MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Jabuti não sobe em árvore

Jabuti não sobe em árvore

Emenda inserida em PL sobre gratuidade judicial veda cessão de créditos trabalhistas, desvirtuando o projeto original e afetando a segurança econômica dos reclamantes.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Atualizado em 1 de julho de 2025 13:48

Jabuti não sobe em árvore.

Ao tratar das deficiências do processo legislativo brasileiro, o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães, afirmou que "Jabuti não sobe em árvore. Se está lá, ou foi enchente, ou foi mão de gente". A frase, inspirada em ditado popular, tornou-se célebre com o passar do tempo, impulsionada pelo constante desvirtuamento de projetos de lei, por meio da inserção de temas que destoam da proposta original.

No último dia 21 de maio, a Comissão de Direitos Humanos do Senado fez com que mais um jabuti subisse em árvore, ao aprovar substitutivo ao PL da Câmara 2.239, de 2022.

Referido projeto de lei tramitava com o escopo de reformar o CPC - que acaba de completar dez anos de vigência -, para regrar as hipóteses de concessão dos benefícios da gratuidade em processos judiciais.

A proposta destinava-se a estabelecer hipóteses taxativas para a concessão do benefício da chamada "Justiça Gratuita", reduzindo a discricionariedade judicial. Ao justificar a medida restritiva, o relatório do senador Laércio Oliveira afirmou que "a despeito do incremento das condições econômicas da população brasileira nas últimas décadas, estaria havendo, no País, um aumento do número de concessões de gratuidade da justiça".

Não se pretende, neste espaço, tratar da conveniência e oportunidade desse projeto, que parece limitar a garantia constitucional de amplo acesso ao Poder Judiciário (art. 5º, inciso XXXV, da Constituição da República). O que se busca é destacar a inserção de matéria totalmente estranha ao objeto original, que poderá causar grande impacto social.

Trata-se da proposta de inserção do art. 910-A, na CLT, para proibir a cessão de créditos oriundos de reclamações trabalhistas.

Sob a aparente justificativa de "proteção a vulneráveis e hipossuficientes", o jabuti inserido no projeto de lei restringiu por completo a cessão de créditos de trabalhadores, cobrados por meio de reclamações em curso na Justiça do Trabalho.

A partir de suposições desprovidas de comprovação, os integrantes da Comissão de Direitos Humanos do Senado concluíram que "(...) o trabalhador perde, em regra, até mais de quarenta por cento do valor que receberia em curto prazo. Além disso, a venda inviabiliza as mediações e gera custos para o Poder Judiciário, permitindo que investidores utilizem a Justiça do Trabalho como um mercado de capital especulativo, em detrimento do trabalhador".

Entretanto, não é essa a realidade. A cessão de direitos creditórios oriundos de reclamações trabalhistas representa importante instrumento de circulação de crédito, fornecendo liquidez a reclamantes que, em muitos casos, levariam longo período para acessar os respectivos créditos.

Ainda sob o aspecto econômico, verifica-se enorme vantagem para os cedentes, quando se comparam os descontos aplicados às cessões de créditos e as taxas médias de juros praticadas no mercado financeiro. A título de exemplo, as taxas de juros do chamado "cheque especial" variam entre 1,39% e 12,38% ao mês.1

Assim, os reclamantes que tivessem os pedidos de crédito aprovados pelas instituições financeiras pagariam juros muito mais elevados do que as taxas de descontos praticadas pelos cessionários dos créditos trabalhistas, em sua maioria fundos de investimento em direitos creditórios, que variam de acordo com a fase dos processos judiciais e a solvência do devedor.

Em termos de eficiência, impedir a cessão de direitos creditórios oriundos de reclamações trabalhistas pode levar indivíduos interessados em tomar esses recursos a buscá-los, por exemplo, no mercado informal, que pode envolver desde amigos e familiares, até outros agentes, que atuam como instituições financeiras não reguladas ou não tributadas.

Sob o viés jurídico, cumpre esclarecer que o debate sobre as cessões de direitos creditórios está diretamente relacionado à falta de efetividade dos processos judiciais. Em 2024, a Justiça do Trabalho recebeu mais de 4 milhões de processos, o maior volume em 15 anos. Desse total, 3,6 milhões foram novas ações, o que representa crescimento de 16,1% em relação a 2023, de acordo com dados divulgados pelo TST.

Essa verdadeira enxurrada de processos, somada à falta de racionalidade de procedimentos e do sistema recursal, impede que os processos trabalhistas assegurem o cumprimento das regras de direito material, em tempo razoável.

É por conta de todo esse cenário que as cessões de direitos creditórios originados a partir de reclamações trabalhistas ganham cada vez mais relevância. Proibi-las, invocando conceitos vagos, como hipossuficiência e especulação, não parece ser a melhor solução.

Espera-se que os congressistas retirem o jabuti da árvore, para manter a possibilidade de cessões de direitos creditórios de natureza trabalhista, desde que observadas as disposições dos arts. 286 e seguintes, do CC. Ao assim procederem, estarão assegurando importante instrumento de dinamização do tráfego de recursos econômicos.

_______

1 https://www.bcb.gov.br/estatisticas/reporttxjuros/?codigoSegmento=1&codigoModalidade=216101&historicotaxajurosdiario_atual_page=1&tipoModalidade=D&InicioPeriodo=2025-05-26

Cláudio Mauro Henrique Daólio

Cláudio Mauro Henrique Daólio

Sócio da Moraes Pitombo, especialista em Direito Civil e doutor em Direito Processual Civil.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca