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Chargeback: O que poucos advogados e lojistas sabem sobre seus direitos

Chargeback virou injustiça para lojistas. Operadoras transferem riscos, ignoram defesa e abusam da hipersuficiência técnica. É hora de equilibrar o jogo com base no direito.

terça-feira, 1 de julho de 2025

Atualizado às 13:31

Pedro é dono de uma pequena loja de ferramentas em sua cidade. Depois de anos de batalha para digitalizar seu negócio, passou a vender também pelo WhatsApp e por um site simples. Em março, enviou um kit de R$ 879,00 a um cliente de São Paulo. Produto entregue, nota emitida, cliente satisfeito. Trinta dias depois, veio o golpe: "transação contestada, valor estornado". Sem explicação, sem chance de defesa. A operadora debitou diretamente da conta e ainda cobrou taxa pela "disputa".

Esse tipo de situação se repete em todo o Brasil. Pequenos lojistas, já sobrecarregados por altas taxas, ainda arcam com o custo de fraudes e cancelamentos indevidos, enquanto as operadoras de cartão, que concentram os dados, a tecnologia e o controle da operação, permanecem blindadas por contratos de adesão e processos internos que ignoram o contraditório.

O que é chargeback - e o que ele virou

O chargeback é, em tese, um direito do titular do cartão de contestar compras que não reconhece ou considera indevidas. Trata-se de um mecanismo legítimo de proteção contra fraudes ou falhas na prestação do serviço. Porém, o que deveria ser uma exceção passou a ser banalizado, e hoje muitos o utilizam como ferramenta para cancelar compras mesmo após a entrega - o que a doutrina já chama de "fraude amigável".

O mais grave, no entanto, não é a existência do chargeback. É a maneira como ele vem sendo imposto, especialmente nas compras à distância, com reversão automática dos valores ao cliente e transferência integral do risco ao lojista, sem qualquer análise minimamente isenta.

Uma assimetria perversa: O hipossuficiente virou réu

As operadoras de cartão de crédito e suas intermediadoras são empresas com recursos tecnológicos de ponta. Detêm sistemas antifraude com inteligência artificial, análise de comportamento, geolocalização, autenticação em múltiplos fatores e protocolos de verificação automatizada. Têm acesso direto à origem da transação, ao endereço IP, ao dispositivo utilizado e ao histórico de compras do titular.

Já o pequeno lojista, muitas vezes, depende apenas da boa-fé do cliente e da autorização automática do sistema da própria operadora. Não tem acesso aos dados completos da transação, nem ferramentas para prever ou barrar uma fraude.

Essa hipersuficiência técnica das operadoras, frente à fragilidade do pequeno comerciante, impõe a elas o dever de cuidado redobrado. E, juridicamente, reforça sua responsabilidade objetiva, como prevê o art. 14 do CDC e o art. 927, parágrafo único, do CC.

A jurisprudência tem reconhecido isso: quem lucra com o risco da atividade precisa arcar com suas consequências. As operadoras não podem apenas repassar prejuízos quando algo sai errado. Isso desequilibra completamente a relação contratual.

Violação ao contraditório: O lojista não é sequer ouvido

O que torna esse cenário ainda mais injusto é a completa ausência de contraditório e ampla defesa. Na prática, o lojista é punido sem julgamento.

Recebe apenas um aviso seco: "compra contestada, valor será estornado". Em alguns casos, a plataforma oferece um formulário para "defesa", que é ignorado ou respondido com frases genéricas. Não há perícia, análise técnica ou chance real de demonstrar que o serviço foi prestado ou que a mercadoria foi entregue.

Ora, em um Estado de Direito, ninguém pode ser privado de seu patrimônio sem o devido processo legal. Ainda que se trate de relação privada, os princípios do contraditório e da ampla defesa - consagrados na Constituição - devem ser respeitados. O lojista não pode ser condenado à revelia em um "tribunal privado" gerido pela operadora, que concentra o poder de investigar, julgar e executar.

E os contratos? Podem ser revistos

A maioria dessas operadoras firma com os lojistas contratos de adesão. Neles, há cláusulas que atribuem integralmente ao comerciante os riscos das fraudes, sobretudo em compras não presenciais. Esses dispositivos, no entanto, são manifestamente abusivos e podem ser anulados com base no art. 51 do CDC.

O fornecedor que cumpre corretamente sua parte - entrega, nota fiscal, rastreamento - não pode ser penalizado por um sistema que ele não controla. A cláusula que o obriga a responder por fraudes que não teve como evitar é ilegal, desproporcional e fere o princípio da função social do contrato.

Como o advogado pode (e deve) agir

O papel da advocacia é essencial para corrigir essa distorção. Seja defendendo consumidores contra fraudes reais, seja protegendo pequenos lojistas contra abusos sistêmicos.

Para os lojistas, é necessário:

  • Reunir provas da transação: nota fiscal, rastreamento, conversas, imagens da entrega.
  • Registrar reclamação formal na operadora e guardar protocolos.
  • Documentar a ausência de resposta ou o descaso.
  • Propor ação judicial com pedido de devolução do valor e indenização por danos materiais e morais.

Para os consumidores, é importante:

Avaliar se houve falha real da loja ou se foi apenas arrependimento. O uso indevido do chargeback também pode configurar abuso de direito e até estelionato.

Uma solução que vem pela via judicial

A boa notícia é que os tribunais vêm reconhecendo esse desequilíbrio. Já há decisões favoráveis a lojistas que conseguiram demonstrar sua boa-fé e a omissão das operadoras em evitar fraudes ou permitir defesa efetiva.

A tendência é que a jurisprudência evolua para reconhecer a responsabilidade solidária dessas empresas, obrigando-as a dividir o risco do negócio, e não apenas o lucro.

Conclusão

O chargeback não é um problema em si. É uma solução mal aplicada, que hoje pune quem cumpre a lei e protege quem abusa dela. Reverter esse quadro exige atuação firme da advocacia, revisão crítica dos contratos e, sobretudo, defesa intransigente do contraditório.

Se você é advogado, não aceite como natural esse jogo de cartas marcadas. É possível virar o jogo - com técnica, provas e direito.

Osvaldo Janeri Filho

Osvaldo Janeri Filho

Especialista em Inteligência Jurídica Aplicada. Membro da Comissão de Direito Digital e da Direito Bancário da OAB Cientista, Autor, Palestrante.

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