Contratos não ofendem!
Formalização contratual, capacitação e ambiente regulatório simples são pilares para transformar o potencial empreendedor brasileiro em negócios sustentáveis.
quinta-feira, 3 de julho de 2025
Atualizado em 2 de julho de 2025 13:36
Um amigo ia bem como mais novo empreendedor no ramo de produção e distribuição de sorvetes. Ele e o sócio faziam de tudo, da produção à entrega, e, em pouco tempo, conquistavam espaço. Empolgado, ele não perdia a chance de exaltar seu produto: "mais cremoso" que dos concorrentes "de marca", dizia com orgulho.
Vez ou outra ele aparecia com um pote de meio litro, cada vez um sabor diferente, ansioso para que eu provasse sob seu olhar atento, e, pela conveniência de ter um amigo advogado, acabei - numa espécie de permuta tácita - formatando um "modelo" de contrato que ele poderia usar com seus revendedores para formalizar o negócio.
Os resultados disso foram um tanto inesperados. Os mercados de bairro elogiaram o profissionalismo, mas nenhum devolveu uma via assinada. O curioso foi o caso de um pequeno revendedor, sempre simpático, que, ao ver o contrato, ficou visivelmente incomodado. Percebendo a reação, meu amigo rapidamente mudou de assunto e guardou o papel no bolso. Aquele documento parecia ter ameaçado algo valioso entre eles: a confiança.
A crônica vale a reflexão sobre aspectos relevantes para efetivação do potencial empreendedor no país: capacitação empreendedora e simplificação do ambiente de negócios, que se conectam ao papel do contrato.
Esses fatores estão destacados no relatório "Empreendedorismo no Brasil 2023", publicado pela GEM - Global Entrepreneurship Monitor, sob a coordenação da Anegepe - Associação Nacional de Estudos em Empreendedorismo e Gestão de Pequenas Empresas, em parceria com o Sebrae - Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas.
Segundo o relatório do GEM, o Brasil ocupa a 8ª posição dentre as 45 Economias para a TTE - Taxa de Empreendedorismo Total em 2023, com Potencial Empreendedor (proporção de pessoas que manifestam o desejo de empreender em futuro próximo), que lhe coloca na 5ª posição entre todas as 45 Economias, traduzindo-se num contingente de 47,7 milhões de pessoas, como economia em segundo maior contingente de empreendedores potenciais. Ou seja, potencial a gente tem.
A educação empreendedora e a capacitação em gestão, sem dúvida, nivelaria a importância de contratos bem formatados para segurança jurídica nas relações comerciais.
Não apenas a formalização adequada, mas especialmente a análise detida sobre os variados aspectos da relação é que fortalece a confiança e eleva o nível de maturidade no ambiente de negócios.
Isso exige atenção com tempo dedicado (ou até mesmo a exaustão, para evitar de aprender com seu maior erro1) e experiência na relação, que modelos não suportam - embora assistentes de inteligência já se mostrem excelentes interlocutores para varrer as possibilidades e mostrar cenários em perspectivas variadas.
Esse instrumento faz o papel de se estabelecer responsabilidades e obrigações claras entre as partes, reduzindo incertezas, evitando litígios e contribuindo para a profissionalização dos negócios, inclusive qualificando-os para investimentos, acesso a crédito e parcerias estratégicas.
Mais do que um simples documento, um contrato representa um acordo de vontades, e sua formalização adequada confere força de sentença ou, digamos assim, faz lei entre as partes, podendo evitar longos anos de discussão.2
Ao lado desse fator, destaca-se a necessidade de aprimoramento das políticas governamentais e programas de apoio, buscando-se maior integração de fomento ao empreendedorismo, com ações efetivas para reduzir divergências burocráticas.
A simplificação do ambiente de negócios é essencial para o avanço do empreendedorismo, diante dos renitentes desafios relacionados ao excesso de regulamentação e à complexidade dos processos de abertura e regularização de empresas.
A necessidade de ação coordenada entre os entes federativos deve ser reforçada com objetividade prática no âmbito da Administração Pública, a exemplo da lei de liberdade econômica, que ainda engatinha para efetivar o propósito para o qual foi criada, apesar da clareza da lei já regulamentada.3
Em 2024, o Brasil registrou o maior volume de empresas abertas da série histórica do Sebrae4, pelo que a taxa de empreendedorismo no país atingiu seu maior patamar dos últimos anos.
Em um país com elevado potencial empreendedor, a formalização consciente e tecnicamente adequada deve ser compreendida como ferramenta estratégica, não como obstáculo.
Entre a informalidade cordial e a profissionalização necessária, a efetivação desse potencial numa realidade presente exige mais que boa-vontade em leis e decretos, pelo que devemos buscar uma estrutura prática para coordenação político-administrativa.
Quando educação empreendedora se alia à simplificação regulatória e à coordenação entre os entes federativos, contratos se elevam como de fato são: pontes de confiança, segurança jurídica e viabilidade de crescimento.
A convergência entre políticas públicas de fomento, educação empreendedora e segurança jurídica cria condições objetivas para que empreendimentos nascidos da iniciativa individual - como a produção artesanal de sorvetes - possam transitar para modelos sustentáveis e competitivos.
Contratos não ofendem, é verdade, mas boa-vontade, sozinha, não é suficiente. Temos potencial, mas para que isso gere resultados - e não, não precisamos de um longo e tortuoso caminho, até porque o medo do fracasso não costuma impedir o empreendedor brasileiro de começar um novo negócio - precisamos avançar em ações coordenadas para elevar os indicadores que façam a diferença entre o papel e a realidade.
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1 DINIZ, Abilio. Entrevista concedida a Adriana Wilner e Aline Lilian dos Santos. GV-executivo, São Paulo, v. 16, n. 1, p. 9, jan./fev. 2017. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/gvexecutivo/article/view/65045. Acesso em: 22fev.2025. "Meu maior erro foi em um contrato com o Grupo Casino, em 2005. Não trabalhei com grande profundidade nesse documento e não cobri tudo o que poderia acontecer. Resultado: o contrato não funcionou e deu origem a uma enorme briga empresarial. O que procuro ensinar para os meus alunos? Contrato é algo extremamente importante. Você precisa ir à exaustão, cobrir tudo o que estiver previsto e não previsto. Quando você prevê todas as possibilidades, não há briga depois".
2 A liberdade das partes é outro assunto criterioso para validade, que depende muito dos lados das forças, como também clareza e efetiva discussão na formação do contrato até o papel assinado.
3 As atividades econômicas de baixa risco estão dispensadas de qualquer ato que dependa do poder público (Art. 1º, §6º e Art. 3º, I da Lei Federal n.º 13.874/2019 - Declaração de Direitos de Liberdade Econômica), assim classificadas na Resolução n.º 51/2019 (alterada pela Resolução 57 de 21de maio de 2020) do Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios - CGSIM (Ministério da Economia).
4 TERRA. Brasil bate recorde com 4,2 milhões de empresas abertas em 2024. Terra, 25 abril 2025. Disponível em: https://www.terra.com.br/economia/meu-negocio/brasil-bate-recorde-com-42-milhoes-de-empresas-abertas-em-2024,bbfa5f33e6bde417b6aea51aed94b7b8ukg5v9fh.html.
Marcelo Augustus Vaz Lobato
Advogado, Especialista em D. Empresarial, Constitucional e Processual, Vice-presidente do Centro de Estudos de Sociedades de Advogados (CESA-PI/MA), Membro Consultor da Comissão Nacional de Sociedades de Advogados do Conselho Federal da OAB, Consultor Jurídico da Associação dos Jovens Empresários do Maranhão (AJE/MA) e Sócio do Escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff - Advogados em São Luís (MA).


