NR-1 e a nova era da saúde mental no trabalho
A NR-1 moderniza a proteção no trabalho ao priorizar riscos psicossociais e combater o assédio, reforçando deveres, direitos e o compromisso com a saúde mental no ambiente laboral.
sexta-feira, 4 de julho de 2025
Atualizado às 11:13
Guardiã da dignidade, dos limites e do futuro nas relações laborais
Introdução
No alvorecer do século XXI, o mundo do trabalho assiste a uma verdadeira revolução das relações humanas. Se há trinta anos bastava que as empresas evitassem acidentes físicos e cumprissem obrigações mínimas de higiene e segurança, o cenário atual exige mais: pede-se inteligência emocional, ambientes psicologicamente saudáveis e o compromisso inequívoco com a dignidade da pessoa no labor. Mas como transformar esse imperativo ético em obrigação jurídica e operacional?
O Brasil, na esteira do movimento internacional e da experiência europeia e latino-americana, deu um passo marcante nesse sentido a partir da nova redação da norma regulamentadora 1 - NR-1, em vigor desde maio de 2025. A norma passa a considerar os riscos psicossociais, incluindo todas as formas de assédio, como risco ocupacional obrigatório no PGR - Programa de Gerenciamento de Riscos - alterando, para sempre, o papel institucional das empresas em relação à saúde mental de seus trabalhadores.
Neste artigo, vamos desvendar as novidades da NR-1, explicar sua finalidade, alcance e os desafios de sua efetiva implementação, abordar suas conexões com a NR-17, analisar exemplos de assédio nas empresas, os impactos das mudanças socioculturais, os incentivos à conformidade, o tratamento diferenciado do MEI - Microempreendedor Individual e das empresas de grau de risco 1 e 2, os desafios jurídicos das novas formas de trabalho, e o equilíbrio delicado entre proteção legítima e prevenção do uso inadequado dos instrumentos de denúncia. Ao final, apresentaremos referências legislativas e bibliográficas para o estudo aprofundado do tema.
1. O que é a NR-1? Da origem à moderna defesa da saúde integral
A NR 1 compõe o extenso rol de normas do Ministério do Trabalho que estabelecem fundamentos para a proteção da saúde e da segurança no ambiente de trabalho. Sua tradição remonta à portaria MTB 3.214, de 1978, que consolidou as primeiras normas do gênero, abarcando desde os requisitos para uso de EPIs até as rotinas de controle de riscos ambientais.
A NR-1, em sua essência, sempre teve a finalidade de:
- Estabelecer disposições gerais de saúde e segurança aplicáveis a todos os empregadores e trabalhadores urbanos e rurais, sejam integrantes da iniciativa privada, da administração direta ou indireta, desde que regidos pela CLT.
- Criar uma base conceitual unificada para interpretar e aplicar as demais NRs - normas regulamentadoras - funcionando como um verdadeiro "preâmbulo" normativo.
- Ser o fundamento jurídico para o desenvolvimento do GRO/PGR - Programa de Gerenciamento de Riscos Ocupacionais, que deve identificar, classificar, monitorar e controlar todos os riscos presentes na atividade laboral.
- Afastar dúvidas sobre quem tem obrigações, quem é protegido e qual o objetivo da regulamentação: garantir que o direito constitucional à saúde (arts. 6º, 7º, 193 e 225, CF/88) seja efetivamente respeitado nas relações de trabalho.
Ao longo das décadas, a NR-1 foi atualizada para acompanhar não apenas as mudanças produtivas e tecnológicas, mas também demandas sociais e científicas sobre o que significa, na prática, um ambiente de trabalho seguro e saudável.
Para quem vale?
Aplica-se a todas as organizações que mantenham trabalhadores sob o regime da CLT, abrangendo a iniciativa privada e órgãos públicos quando atuando como empregadores celetistas.
Quem protege e com que finalidade?
Protege todos os trabalhadores, independentemente de cargo, função ou nível hierárquico e, agora, vítimas potenciais de riscos psicossociais. Sua finalidade última é garantir a preservação da vida, saúde física, mental, social e emocional do ser humano em sua jornada laboral.
2. Os riscos psicossociais e o assédio: A nova fronteira normativa
O salto mais inovador da NR-1 está no reconhecimento explícito dos riscos psicossociais como perigo ocupacional. Mas o que são esses riscos?
2.1 Conceito de riscos psicossociais
Tratam-se de fatores relacionados à organização, ao contexto relacional, às condições de trabalho, pressões e estilos de gestão que, direta ou indiretamente, podem provocar sofrimento mental, adoecimento emocional, isolamento, perda de autoestima, baixa produtividade e até mesmo doenças psicossomáticas.
Tais riscos podem se desenvolver, a partir da prática de violências, como:
- Assédio moral (vertical, horizontal e organizacional): Condutas sistemáticas ou pontuais de humilhação, boicote, exclusão, desqualificação que ameaçam a dignidade da pessoa trabalhadora.
- Assédio sexual: Imposição ou solicitação de favores sexuais, abordagens indesejadas, chantagens para obtenção de vantagens ou favorecimento, propositadamente em posição de superioridade hierárquica ou de ascendência.
- Assédio eleitoral: Pressão para se posicionar ou votar a favor de interesses da chefia ou da empresa, sob ameaça de demissão ou prejuízo.
- Bullying e cyberbullying: Repetição de atos de violência, humilhação, ridicularização ou exposição em ambientes digitais, com efeitos multiplicados pela viralização.
- Stalking: Perseguição reiterada, física ou digital, capaz de causar medo e restrição da liberdade.
- Burnout, depressão e ansiedade: Resultantes de culturas organizacionais tóxicas, excesso de demanda e falta de acolhimento.
- Discriminação, racismo, misoginia e LGBTQIAPN+fobia: Fatores que cruzam com o assédio em ambientes de menor ou maior tolerância à diversidade.
A nova NR-1, ao obrigar a incorporação dos riscos psicossociais ao PGR, determina que sua prevenção e enfrentamento não são "boa prática", mas um dever legal.
2.2 Breve história das alterações na NR-1
A rigor, até 2020 a NR-1 apenas continha princípios gerais. A portaria SEPRT 6.730/20, somada à portaria MTE 1.419/24, promoveu sua modernização e consolidou o GRO/PGR como instrumento central para controle dos riscos ocupacionais. Mas a grande novidade veio com a inclusão obrigatória dos riscos psicossociais nessa metodologia, estabelecendo critérios multidisciplinares para sua avaliação e obrigando reavaliações periódicas em caso de denúncias ou adoecimento psicológico significativo. Desde maio de 2025, a obrigatoriedade é plena.
2.3 A quem se dirige a proteção?
A NR-1 protege trabalhadoras e trabalhadores celetistas, temporários, aprendizes, terceirizados que atuam na empresa, estagiários, funcionários de empresas contratadas (quando atuam no local de trabalho da tomadora), MEI (quando nas dependências do contratante ou à seu serviço ainda que externamente) e, em grau subsidiário, outros prestadores em condições análogas.
3. Tipos de assédio no ambiente de trabalho: Exemplos práticos e a importância do PGR
Nada melhor para aproximar o tema do público do que exemplos práticos, inspirados na experiência dos tribunais, da literatura jurídica e da vivência cotidiana:
- Assédio moral vertical: O gerente diz publicamente a um colaborador "você sempre atrapalha, por isso nunca será promovido", repete exclusões em reuniões e impede que clientes o cumprimentem, resultando em queda de autoestima e afastamento.
- Assédio organizacional: A empresa cria rankings periódicos "de baixo desempenho" expostos nos murais físicos e digitais, estimulando piadas de péssimo gosto entre colegas e discriminando os piores colocados, que passam a sofrer boicotes velados.
- Assédio sexual sutil: A supervisora, que se aproveita de sua condição superior para provocar estagiário, sentando em seu colo, abraçando de forma a provocar atrito de partes íntimas.
- Assédio eleitoral: Durante o período de eleições, o diretor exige que todos tirem fotos com adesivos de determinado candidato, sob pena de exclusão de prêmios e cortes em horas extras, monitorando os perfis sociais da equipe.
- Cyberbullying: Uma analista é ridicularizada em grupos de WhatsApp por ter cometido um erro operacional facilmente corrigível. Os memes e comentários ofensivos extrapolam o ambiente corporativo, causando-lhe intensa ansiedade.
- Stalking por colega rejeitado: Recusando avanço afetivo, um funcionário passa a aparecer nos horários de entrada, enviar e-mails de cobrança de "resposta", sobrecarregar a vítima de tarefas repetidas, sem qualquer necessidade funcional.
Esses são apenas alguns exemplos, infelizmente cotidianos, de situações que precisam ser diagnosticadas e prevenidas pelo PGR.
4. Implementação das novas regras: Interseção com a NR-17 e práticas empresariais eficazes
A NR-1 dispõe que é obrigatório diagnosticar, avaliar, monitorar e adequar o ambiente organizacional quando se tratar de fatores psicossociais - exigindo metodologia multidisciplinar. Entretanto, como mapear riscos tão difusos? A resposta está na articulação conjunta da NR-1 com a NR-17 (ergonomia).
Etapas obrigatórias para empresas:
- Diagnóstico pelo PGR: Levantamento de riscos com base em entrevistas, aplicação de questionários, escuta ativa, grupos focais e indicadores objetivos (absenteísmo, afastamentos, volume de denúncias, clima organizacional).
- Planos de ação: Elaboração de políticas internas claras sobre assédio, prevenção e acolhimento, integrando códigos de conduta, canais anônimos e protocolos transparentes de apuração.
- Comunicação e capacitação: Treinamentos obrigatórios para todos os níveis hierárquicos, com linguagem acessível, exemplos práticos, abordagem sociocultural e ênfase em empatia e escuta qualificada.
- Canais de denúncia e acolhimento: Estruturas independentes, com garantia real de anonimato, proteção contra retaliações, registro ordenado e previsão de acolhimento psicológico, além de processo investigativo com aplicação das punições quando devidas.
- Monitoramento permanente: Reavaliação periódica do PGR, especialmente após alterações nas relações de trabalho, denúncias relevantes ou reorganização estrutural.
A NR-17 - especialmente após sua aproximação com a NR-1 - aponta caminhos complementares, exigindo análise psicossocial transversal, respeito à diversidade, cuidado com o tempo de descanso, ergonomia mental e física, e ambientes com relações de autoridade bem delimitadas.
5. Incentivos à implantação: Certificações, produtividade e imagem de marca
Não se trata apenas de evitar multas ou litígios. Empresas que interiorizam a cultura de prevenção dos riscos psicossociais e assédio constroem diferenciais estratégicos, tais como:
- Certificações (GPTW, ISO 45001, selos de compliance, premiações de sustentabilidade social): Organizações com ambiente saudável obtêm maior pontuação, atraem talentos e têm melhor reputação perante investidores e o mercado.
- Produtividade elevada: Estudos nacionais e internacionais confirmam que o bem-estar psicológico reduz afastamentos, aumenta engajamento, potencializa criatividade e retém os melhores quadros e resultados.
- Melhora da performance financeira: Menos passivos trabalhistas, menor rotatividade, redução das despesas com processos judiciais, autuações ou indenizações.
- Clima organizacional positivo: Construção de ambientes acolhedores diminui conflitos, maximiza cooperação e acelera o crescimento institucional.
- Acesso a linhas de crédito e grandes contratos: Diversos editais públicos e privados já exigem certificação de práticas éticas e de governança efetiva como pré-requisito para contratação/financiamento.
6. MEI e empresas de grau 1 e 2: Obrigações específicas, proteção e novos conceitos
A NR-1 traz diferenciação importante para pequenos atores econômicos, equilibrando proteção justa e proporcionalidade:
6.1 O que diz o item 1.8 e seguintes do anexo I?
- MEI - Microempreendedor Individual: Embora isento das obrigações formais do PGR nas atividades realizadas por conta própria, quando presta serviços para outra empresa, passa a ser protegido pelas ações de prevenção e pelo próprio PGR da empresa contratante. Isso reconhece a condição real de vulnerabilidade do MEI quando imerso no ambiente alheio.
- Grau de risco 1 e 2 (ME e EPP): O item 1.8.1.1 prevê o levantamento simplificado de perigos e riscos. Tais empresas podem, em certas condições, ficar dispensadas do PGR formal se não houver exposição a riscos físicos, químicos, biológicos ou ergonômicos (onde agora se incluem os psicossociais). Quando qualquer desses riscos estiver presente, inclusive psicossocial, o PGR se torna obrigatório mesmo para esses empreendimentos.
- Ferramentas públicas autorizadas: A norma permite acesso facilitado a modelos simplificados e ferramentas públicas de diagnóstico e prevenção, especialmente para micro e pequenas empresas.
Quem se beneficia?
O regime protege o MEI de situações de exposição não controlada, responsabilizando contratantes. Já as empresas de menor porte ganham instrumentos proporcionais ao tamanho do seu risco. Em todos os casos, a dignidade do trabalhador (ou prestador em condição frágil) permanece o foco máximo da proteção, mantendo-se a obrigação de ações de prevenção de riscos e as competentes respostas.
7. Novas formas de relação de trabalho e impactos: Reflexos da reforma trabalhista de 2017
A chamada "reforma trabalhista", introduzida pela lei 13.467/17, promoveu flexibilização nos contratos, permitiu trabalho intermitente, reforçou a terceirização, estendeu o uso de "pejotização" (contratação de PJs para atividades-fim) e empregou modelos híbridos, remotos ou por plataformas digitais.
Desafios:
- O campo de proteção da NR-1 é desenhado para o trabalho sob o regime da CLT, mas a realidade do mercado fragmentado cria zonas de penumbra, onde trabalhadores formalmente "autônomos" estão, na prática, submetidos a riscos organizacionais e psicossociais.
- A judicialização da chamada "pejotização" ainda está em curso, aguardando definição pelo STF (Tema 1.389), o que pode deixar prestadores fora da proteção plena da NR-1 ao menos enquanto não houver decisão definitiva.
- O teletrabalho e o trabalho remoto ampliaram o desafio de monitorar e gerenciar fatores psicossociais - sobrecarga, isolamento, comunicação hostil digital, jornadas fragmentadas.
- Pequenas empresas tendem a adotar modelos simplificados de gestão, o que pode resultar na superficialidade ou mesmo ausência de efetivos programas de prevenção e combate ao assédio.
Reflexos práticos
A tendência é exigir das organizações um olhar transversal: não basta mais conferir se há "carteira assinada", mas sim identificar condições de subordinação, pessoalidade, habitualidade e risco (físico ou psicossocial) para definir obrigações de proteção.
8. O desafio da "nova geração": Cultura do acolhimento, fragilidade e o risco da banalização dos instrumentos
- A ampliação dos canais de denúncia e da escuta ativa é, sem dúvida, um ganho civilizatório. Entretanto, surgem inquietudes legítimas:
- Como lidar com a geração de trabalhadores marcada por maior sensibilidade, menor tolerância à frustração e expectativa de ambientes hiperprotetores?
- A cultura do acolhimento pode, em contextos de fragilidade emocional, gerar o uso inadequado dos instrumentos de denúncia, servindo a disputas interpessoais ou fugas das responsabilidades diárias?
- O que é uma crítica legítima e o que é assédio? Como distinguir disciplina rigorosa de violência simbólica?
O papel do compliance e dos recursos humanos
Empresas e profissionais devem equilibrar acolhimento e critérios técnicos, garantindo que os canais não se deturpem em "muros de lamentação" ou se transformem em instrumentos de vingança. O treinamento em inteligência emocional, a formação ética de lideranças, a validação de denúncias por equipe multidisciplinar e a transparência dos processos são ferramentas indispensáveis.
Soluções: Educação continuada para todos os atores, definição hermenêutica precisa do conceito de assédio, supervisão ética dos canais, acolhimento sem permissividade e, sobretudo, formação de adultos aptos a conviver, ouvir críticas e desenvolver resiliência sem perder a capacidade de reivindicar direitos legítimos.
9. Conclusão
A revolução promovida pela NR-1 marca um divisor de águas na proteção da saúde do trabalhador e no combate às múltiplas formas de assédio dentro das organizações brasileiras. Não se trata apenas de um avanço normativo, mas de mudança cultural, de mentalidade e de propósito.
Ao determinar que os riscos psicossociais sejam identificados, monitorados e prevenidos com o mesmo rigor dos demais riscos ocupacionais, a norma confere estatuto ético e jurídico à promoção da dignidade emocional no trabalho. As empresas ganham a oportunidade de transformar suas rotinas, fortalecer sua reputação e impulsionar produtividade, mas precisarão lidar com desafios operacionais, culturais e éticos cada vez mais complexos.
O futuro exige equilíbrio, maturidade e empatia - princípios que, na visão da NR-1 e de uma sociedade civilizada, são inegociáveis. O caminho está traçado, mas sua pavimentação dependerá do compromisso, da liderança e da coragem das instituições em reconhecer o valor de cada trabalhador, para além de índices quantitativos ou formalidades arcaicas.