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Gênero e alimentos entre ex-cônjuges: Aplicação do protocolo CNJ

O artigo propõe a aplicação prática do protocolo do CNJ nas ações de alimentos entre ex-cônjuges, destacando desigualdades de gênero e criticando a aplicação automática da regra da temporalidade.

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Atualizado às 11:16

Embora o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero do CNJ tenha sido amplamente recepcionado pela doutrina com entusiasmo teórico, observa-se uma lacuna importante na sua concretização: a escassez de orientações práticas para sua aplicação direta e eficaz nos casos concretos. O debate acadêmico em muitos casos permanece na esfera filosófica/ideológica, limitando-se à reafirmação genérica de valores constitucionais sem enfrentar a materialidade das ações judiciais.

Essa distância entre teoria e prática tem contribuído para a subaplicação do protocolo na rotina forense, especialmente nas varas de família, onde persistem decisões desatentas à desigualdade de gênero. Em particular, as ações de alimentos entre ex-cônjuges continuam a ser julgadas, em grande parte, com base em premissas neutralizantes e formalistas, desconsiderando o histórico de apagamento econômico vivenciado por mulheres que se dedicaram ao cuidado da família. Este artigo tem como propósito oferecer uma orientação técnica e argumentativa voltada à aplicação imediata e fundamentada do protocolo nos litígios concretos, contribuindo para o aprimoramento de decisões judiciais com base em justiça material e igualdade substancial.

1. Fundamentos jurídicos dos alimentos entre ex-cônjuges e a excepcionalidade da regra da temporalidade

A obrigação alimentar entre ex-cônjuges encontra amparo nos arts. 1.694 a 1.698 do CC. Essa obrigação decorre da solidariedade familiar, e visa assegurar a subsistência do cônjuge que após a dissolução da sociedade conjugal não tenha condições de manter-se por meios próprios.

Não obstante, ao interpretar esse dever alimentar o STJ consolidou, por meio da jurisprudência em teses (edição 65, tese 14), o entendimento de que tal obrigação deve possuir "caráter excepcional, transitório e ser fixada por prazo determinado", salvo quando presentes circunstâncias que impeçam a inserção ou reinserção do alimentando no mercado de trabalho, como a incapacidade laborativa ou a impossibilidade de alcançar autonomia financeira.

Essa construção jurisprudencial, embora orientada pelo princípio da razoabilidade e pela evolução social das relações familiares, vai além do que prevê expressamente o ordenamento jurídico, sobretudo o CC, que em seu art. 1.694 apenas estabelece a obrigação alimentar com base no binômio necessidade-possibilidade, sem vincular a concessão de alimentos pós-divórcio à excepcionalidade ou à transitoriedade.

Ao exigir requisitos adicionais não previstos em lei, como o tempo hábil para reinserção laboral e a demonstração concreta de incapacidade para a vida autônoma, o STJ acaba por modificar substancialmente o texto normativo, impondo critérios que embora coerentes com uma hermenêutica funcional mais atualizada, deslocam a interpretação judicial para um plano quase legislativo. Tal movimento, mesmo que justificado por uma pretensa modernização do sistema, demanda um olhar crítico sobre os limites da função jurisdicional e o risco de comprometimento do acesso material à justiça, especialmente para mulheres que se dedicaram exclusivamente aos cuidados do lar e da família durante o matrimônio.

Importa frisar que a interpretação firmada pelo STJ acerca da excepcionalidade e transitoriedade dos alimentos entre ex-cônjuges foi incorporada expressamente no projeto de reforma do CC. O novo texto proposto no art. 1.702 prevê que, em caso de dissolução do casamento ou da união estável, sendo um dos cônjuges desprovido de recursos, o outro deverá prestar-lhe pensão alimentícia conforme os critérios do art. 1.694. No entanto, em seu parágrafo único o projeto inova ao dispor de forma explícita, que o juiz poderá fixar termo final para a obrigação alimentar, caso verifique que o credor possui aptidão para alcançar, por esforço próprio, renda suficiente para sua mantença, sendo para isso considerado o lapso temporal necessário e razoável para sua inserção, recolocação ou progressão no mercado de trabalho.

Ao positivar a interpretação da Corte Superior, o projeto desloca para o plano normativo a lógica da temporariedade que antes era apenas fruto de construção pretoriana, o que pode trazer maior segurança jurídica, mas também demanda cautela na análise de contextos de vulnerabilidade material e desigualdade de gênero que dificultam a efetiva autonomia econômica do ex-cônjuge alimentando.

2. O papel do distinguishing na aplicação da jurisprudência do STJ

Ainda que o projeto de reforma do CC busque conferir respaldo legal à orientação jurisprudencial predominante, prevendo expressamente a possibilidade de fixação de termo final para a obrigação alimentar entre ex-cônjuges, permanece imprescindível que a análise judicial se atenha às particularidades de cada situação concreta.

A jurisprudência consolidada do STJ não elimina o dever do julgador de avaliar a compatibilidade do precedente com as peculiaridades do caso. Nesse contexto, a técnica do distinguishing, prevista no art. 927, §1º, do CPC, é fundamental para evitar a aplicação automática de entendimentos consolidados a realidades materiais distintas.

Como aponta Dantas Júnior (2022)1, o distinguishing representa um importante instrumento para assegurar a adequada prestação jurisdicional, pois permite ao juiz reconhecer, com base nas particularidades do caso concreto, quando o precedente não deve ser aplicado. Essa técnica reforça a necessidade de uma fundamentação individualizada e sensível ao contexto, impedindo que a vinculação cega a decisões anteriores comprometa a justiça do julgamento presente.

No campo dos alimentos entre ex-cônjuges, esse instrumento mostra-se particularmente relevante. Isso porque a fórmula "transitória e excepcional", ainda que pacificada admite, em sua própria redação, uma margem de análise judicial que deve ser exercida com base em critérios sensíveis à realidade social e histórica das partes, notadamente a da mulher que se dedicou exclusivamente à família durante o matrimônio.

Casos analisados pelo próprio STJ ilustram essa necessidade. No julgamento do AgInt no REsp 2.111.631/SP, a Corte negou a aplicação da regra geral da temporalidade diante da comprovada vulnerabilidade da ex-esposa, de 68 anos, portadora de múltiplas comorbidades, com histórico de dedicação integral à família e à carreira do ex-marido, sem que tivesse construído meios próprios de subsistência após o divórcio.

 "(...) ALIMENTOS. EX- CÔNJUGES. REGRA DA TEMPORALIDADE DO PENSIONAMENTO. EXCEPCIONALIDADE. DEPENDÊNCIA ECONÔMICA DA EX-ESPOSA. PESSOA IDOSA. PROBLEMAS DE SAÚDE. MERCADO DE TRABALHO. INSERÇÃO. IMPOSSIBILIDADE PRÁTICA. BINÔMIO NECESSIDADE DO ALIMENTANDO E POSSIBILIDADE DO ALIMENTANTE. REEXAME DE FATOS E PROVAS. INADMISSIBILIDADE. SÚMULA Nº 7/STJ. (...) Atualmente, conta a apelada 68 anos de idade, provou padecer de inúmeras doenças (...)2"

No mesmo sentido, o AgInt no REsp 1.951.351/MG3:

"(...) deve ser determinada a obrigação de prestar alimentos sem limitação de prazo quando a alimentanda é idosa e dedicou sua vida ao lar, sem inserção no mercado de trabalho, o que configura a impossibilidade prática de sua autonomia econômica (...) é incontroverso nos autos que a recorrente é idosa e que, durante o período em que esteve casada com o apelado, dedicou sua vida ao lar, ao filho e ao marido, o que, em princípio, lhe garantiria alimentos, sendo incerta a sua capacidade de se recolocar no mercado de trabalho. (...)"

Não obstante, o reconhecimento das particularidades do caso concreto não pode se limitar apenas aos elementos subjetivos da parte alimentanda, como idade avançada, histórico de dedicação ao lar ou existência de comorbidades. É indispensável que o juízo considere também o contexto objetivo mais amplo no qual se insere a demanda: a realidade estrutural e persistente de desigualdades de gênero e as dificuldades concretas de reinserção no mercado de trabalho, especialmente para mulheres mais velhas, com baixa escolaridade, tempo de afastamento prolongado da atividade produtiva ou responsabilidades contínuas com o cuidado de familiares. Ignorar esse pano de fundo é esvaziar a análise de sua dimensão social, tornando a aplicação do direito insensível às condições reais da vida das mulheres que, muitas vezes, sustentaram invisivelmente a trajetória profissional de seus ex-cônjuges, e agora enfrentam o divórcio em posição de desvantagem econômica.

É justamente nesse ponto que se abre espaço para virada hermenêutica fundamental: a incorporação da perspectiva de gênero na análise judicial das ações de alimentos. Mais do que aplicar o Direito Civil sob lentes formais e neutras, é necessário compreender que a neutralidade aparente das normas pode ocultar desigualdades estruturais. A seguir, será abordado como a hermenêutica com perspectiva de gênero, amparada pelo protocolo do CNJ para julgamento com perspectiva de gênero, oferece caminhos teóricos e práticos para uma atuação jurisdicional comprometida com a equidade substantiva e com a superação das assimetrias históricas que atravessam as relações familiares.

3. A perspectiva de gênero como diretriz hermenêutica

O protocolo para julgamento com perspectiva de gênero aprovado pelo CNJ em 2021, foi elaborado como resposta à condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso do feminicídio de Márcia Barbosa de Souza, ocorrido em 1998. Na decisão, proferida em dezembro de 2021, a Corte reconheceu a omissão estatal diante da violência de gênero e determinou, entre outras medidas, a adoção de um protocolo específico para orientar julgamentos à luz da perspectiva de gênero.

Inspirado em experiências anteriores, como o protocolo elaborado pelo México após o caso Campo Algodonero4, o documento brasileiro foi concebido para promover julgamentos sensíveis à desigualdade de gênero em todos os ramos do Judiciário. Além disso, o protocolo encontra respaldo na CF/88 (arts. 1º, III; 3º; 5º, I; 226, §8º) e em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, como a CEDAW e a Convenção de Belém do Pará. Seu objetivo é exigir dos magistrados uma postura ativa na identificação de assimetrias de poder, estereótipos e impactos diferenciados de normas formalmente neutras sobre mulheres, especialmente aquelas em situação de vulnerabilidade interseccional. Trata-se de mecanismo de transformação da cultura judicial, comprometendo o Judiciário com a garantia de julgamentos justos, igualitários e não discriminatórios.

Do ponto de vista normativo interno, o protocolo se articula com a CF/88, especialmente com os princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da igualdade substancial (art. 5º, I), da proteção especial à mulher (art. 226, §8º), e da proibição de discriminações fundadas em sexo ou estado civil. Ademais, sua implementação cumpre os objetivos fundamentais da República (art. 3º), especialmente a promoção do bem de todos sem preconceitos de sexo, e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Como reforça o próprio documento do CNJ, a aplicação da perspectiva de gênero não se resume a causas que envolvem violência doméstica ou discriminação explícita. Ao contrário, ela deve ser transversal e aplicada em todas as áreas do direito, inclusive no Direito das Famílias, onde se materializam desigualdades duradouras relacionadas ao cuidado, à divisão sexual do trabalho e à responsabilização econômica pós-divórcio.

Esse é o pano de fundo que justifica, por exemplo, o reconhecimento judicial do trabalho de cuidado invisível prestado pela mulher durante décadas de união. Quando se reconhece que o vínculo conjugal impediu ou dificultou sua autonomia econômica, seja pela dedicação integral ao lar, seja pela descontinuidade da qualificação profissional, não se trata de "favor judicial", mas de reparação parcial de uma desigualdade estrutural. Nesse sentido, a fixação de alimentos sem limitação de prazo não constitui privilégio, mas sim mecanismo legítimo de compensação material por anos de renúncia pessoal em benefício da família.

Dessa forma, a aplicação da perspectiva de gênero obriga o julgador a considerar a realidade da parte, a divisão sexual do trabalho e o histórico de apagamento da mulher no casamento. O protocolo orienta que o julgador analise as condições materiais concretas da mulher envolvida no processo, levando em conta os papéis de gênero e as barreiras enfrentadas em função deles, inclusive no acesso ao trabalho, à renda e à autonomia.

Embora não traga expressamente a menção ao "tempo de dedicação da mulher à família em detrimento da vida profissional", essa é uma inferência compatível com a diretriz geral do documento, que impõe uma leitura crítica e contextualizada da desigualdade de gênero nas relações sociais e jurídicas, especialmente quando se refere ao fato de que "as mulheres são, em larga medida, associadas à vida doméstica, incluindo trabalhos domésticos ou relacionados a cuidados em geral (remunerados ou não), o que faz com que elas sejam excluídas da esfera pública ou então relegadas a postos de trabalho precarizados e pouco valorizados"5.

Para que essa análise seja efetiva a técnica do distinguishing torna-se imprescindível. O protocolo não autoriza a aplicação cega de precedentes. Pelo contrário: ele obriga o juiz a perguntar se a jurisprudência que se pretende aplicar considera adequadamente os marcadores de gênero que atravessam o caso. Se a resposta for negativa, impõe-se a necessidade de afastamento fundamentado do precedente, mediante a construção de uma decisão que reflita a singularidade da situação julgada.

Desse modo, o julgamento com perspectiva de gênero exige mais do que boa vontade: exige metodologia. E essa metodologia passa, necessariamente, pela combinação entre análise contextual (como propõe o protocolo) e aplicação técnica (como demanda o art. 927 do CPC). É esse encontro que permite ao Judiciário produzir decisões verdadeiramente justas, capazes de romper com os automatismos que perpetuam a invisibilidade e a desproteção de mulheres que após anos de dedicação ao lar se veem vulnerabilizadas pelo divórcio.

4. O trabalho de cuidado invisível como elemento relevante na fixação dos alimento

A aferição da "necessidade" no binômio alimentar não pode se limitar a critérios formais como renda comprovada ou incapacidade laboral médica. No contexto de uma análise com perspectiva de gênero, é essencial reconhecer o valor econômico e social do trabalho de cuidado historicamente exercido por mulheres no âmbito doméstico, invisibilizado pelas estruturas jurídicas tradicionais, e ainda hoje desconsiderado em grande parte das decisões judiciais sobre alimentos entre ex-cônjuges.

Durante décadas mulheres assumiram de forma quase exclusiva a responsabilidade pela criação dos filhos, pela administração da casa e pelo suporte emocional e logístico à carreira do parceiro. Esse trabalho, embora não remunerado, é produtivo e indispensável ao funcionamento da sociedade e da economia. Quando após o divórcio essas mulheres se veem sem renda, sem qualificação atualizada e fora do mercado de trabalho, sua "necessidade" alimentar decorre diretamente desse histórico de renúncia. Ignorar esse contexto é aplicar uma noção formalista e masculina de autonomia, que desconsidera as desigualdades de gênero na origem da dependência econômica.

Conforme já mencionado, o protocolo segue essa linha de raciocínio ao indicar que as mulheres restaram relegadas "a postos de trabalho precarizados e pouco valorizados" em detrimento da ascensão profissional do ex cônjuge.

A doutrina especializada reforça esse entendimento. Conforme destaca estudo publicado pelo IBDFAM6, a não remuneração do trabalho de cuidado não implica sua irrelevância econômica. Pelo contrário, sua não valoração acarreta injustiças materiais, especialmente no momento da dissolução da sociedade conjugal quando os frutos do patrimônio e da autonomia pertencem, em regra, apenas àquele que atuou no espaço público.

A jurisprudência do STJ também tem sinalizado avanços. No julgamento do REsp 1.726.229/RJ, a 3ª turma argumentou que "a família sempre viveu em padrão altíssimo, mantido pela atividade econômica do varão, a esposa, apesar de ser advogada, sempre se dedicou exclusivamente aos cuidados com o lar desde o início da união".

Esse reconhecimento do trabalho de cuidado como fator relevante para a fixação e duração dos alimentos desloca a discussão para uma análise de justiça redistributiva. Não se trata apenas de suprir uma carência pontual, mas de compensar uma desvantagem estrutural produzida pela própria dinâmica da vida conjugal.

Nesse sentido, a fixação de alimentos por prazo indeterminado em casos como esse, não configura privilégio ou exceção indevida à regra da temporalidade, mas aplicação adequada do direito à luz da desigualdade real. Ignorar o trabalho de cuidado é ignorar a base sobre a qual se construiu a vulnerabilidade da mulher no pós-divórcio.

Assim, a aplicação da perspectiva de gênero no Direito das Famílias exige a incorporação dessa lógica redistributiva, capaz de enxergar o casamento como uma instituição produtora de desigualdades quando não há repartição equilibrada das funções parentais, laborais e patrimoniais. É essa leitura crítica que justifica o reconhecimento da necessidade alimentar da mulher com base em sua trajetória invisibilizada de contribuição familiar.

5. A reinserção impossível: O mito da autonomia econômica feminina no pós-divórcio

A lógica da fixação de alimentos por prazo determinado parte da premissa de que o ex-cônjuge alimentando reúne condições objetivas e subjetivas de reinserção no mercado de trabalho após o divórcio. Contudo, essa presunção frequentemente ignora a realidade concreta vivenciada por milhares de mulheres brasileiras de meia idade, sem qualificação profissional formal, com trajetória marcada por anos de dedicação exclusiva ao cuidado da família e, não raramente, responsáveis pela guarda exclusiva dos filhos menores.

O mercado de trabalho brasileiro, marcado por desigualdades estruturais, apresenta barreiras persistentes à inserção de mulheres em condições de vulnerabilidade interseccional, como idade, escolaridade, gênero e responsabilidades familiares. De acordo com a OIT - Organização Internacional do Trabalho, mais de 31% das mulheres em idade ativa no Brasil não procuravam trabalho em 2024 porque precisavam cuidar dos filhos, da casa ou de outros parentes, enquanto esse percentual era de apenas 3,5% entre os homens. A desigualdade se expressa também na taxa de participação: 72,7% dos homens estavam no mercado, contra 53,1% das mulheres no último trimestre de 20247. Esses dados escancaram a sobrecarga das mulheres com o trabalho de cuidado e a dificuldade concreta de acesso ao sistema produtivo. Em tais condições, a expectativa de uma reinserção autônoma e eficaz após o divórcio é, na prática, uma construção abstrata que ignora os marcadores reais de desigualdade, transformando a promessa de autonomia econômica em uma ficção jurídica.

Ademais, a fixação de uma pensão ínfima e por tempo limitado para suprir todas as despesas pessoais (alimentação, moradia, saúde, vestuário e, por vezes, o custeio de filhos ainda dependentes) torna inviável qualquer projeto de capacitação profissional, atualização curricular ou empreendedorismo. Exige-se da mulher vulnerabilizada uma capacidade de reconstrução econômica que sequer seria esperada do "homem médio" nas mesmas circunstâncias. Trata-se, portanto, de um modelo de julgamento que penaliza a mulher pela trajetória doméstica que, muitas vezes, favoreceu o sucesso profissional do ex-marido.

Quando além de tudo recai sobre ela a guarda primária dos filhos, as possibilidades de inserção ou recolocação no mercado formal se tornam ainda mais remotas. A sobrecarga com o cuidado exclusivo da prole, sem rede de apoio ou suporte institucional, compromete até mesmo a dedicação a atividades informais, e impõe uma rotina de sobrevivência incompatível com a expectativa judicial de independência em curto prazo. A imposição de um prazo fixo para a percepção de alimentos corresponde a um duplo apagamento: invisibiliza o passado de contribuição doméstica e ignora o presente de restrições estruturais à autonomia.

A análise judicial, portanto, não pode se dissociar dessas condições reais e estruturais. A aplicação da perspectiva de gênero exige que o julgador reconheça que a igualdade formal não supre a desigualdade material e, em muitos casos, a única resposta juridicamente adequada é a fixação de alimentos sem limitação de prazo. Não como privilégio, mas como forma de justiça redistributiva frente a um ciclo de exclusão econômica que o próprio casamento tradicional ajudou a produzir.

Conclusão

A análise da obrigação alimentar entre ex-cônjuges à luz da perspectiva de gênero revela a urgência de se abandonar abordagens normativas neutras, que desconsideram as assimetrias reais de poder, trabalho e acesso à autonomia econômica que historicamente marcam as relações conjugais. Como demonstrado ao longo deste artigo, a jurisprudência consolidada do STJ, ao positivar a excepcionalidade e transitoriedade dos alimentos, estabelece uma diretriz coerente com determinadas hipóteses de independência econômica pós-divórcio, mas que não pode ser aplicada de forma indiscriminada, sob pena de aprofundar desigualdades estruturais já existentes.

A proposta legislativa de reforma do CC, ao incorporar essa lógica jurisprudencial, reforça a necessidade de um juízo de ponderação atento às peculiaridades do caso concreto, especialmente quando envolvidas mulheres com trajetória de dedicação exclusiva ao lar e ao cuidado da família. Nesses contextos, a técnica do distinguishing e a hermenêutica com perspectiva de gênero não são apenas ferramentas complementares, mas imperativos constitucionais e convencionais de justiça material.

A aplicação prática do protocolo para julgamento com perspectiva de gênero do CNJ se revela, assim, não como um adendo retórico, mas como instrumento metodológico capaz de promover julgamentos sensíveis à realidade social das partes. Isso inclui o reconhecimento do trabalho de cuidado como contribuição econômica invisibilizada, bem como a crítica à expectativa abstrata de reinserção no mercado de trabalho em condições de vulnerabilidade etária, educacional e familiar, cenário que, como demonstram os dados da OIT, afeta de maneira desproporcional as mulheres brasileiras.

Fixar alimentos por prazo determinado em tais condições equivale a ignorar o caminho que levou à dependência econômica, responsabilizando individualmente quem foi socialmente condicionado à renúncia. Portanto, a perspectiva de gênero, mais do que uma diretriz hermenêutica, se impõe como um critério de legitimidade das decisões judiciais no Direito das Famílias.

Cabe à magistratura brasileira assumir o compromisso de tornar efetivos os instrumentos já disponíveis para a promoção da equidade substancial. Julgar com perspectiva de gênero é romper com automatismos normativos, enxergar a história que pesa sobre o processo e decidir com responsabilidade transformadora. Diante de um sistema que ainda penaliza quem cuida, cabe ao Judiciário corrigir trajetórias de desigualdade com decisões reparadoras, sensíveis e justas.

___________________

1 DANTAS JÚNIOR, João Fabrício. O distinguishing: a adequada prestação jurisdicional como um direito à luz da Constituição Federal. Revista de Doutrina da 1ª Região, Brasília, DF, v. 16, n. 1, p. 01-17, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.37885/640228. Acesso em: 2 jul. 2025.

2 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no REsp 2.111.631/SP. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Brasília, DF, 13 maio 2024. Diário da Justiça Eletrônico, 15 maio 2024. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/2549313857/inteiro-teor-2549313860. Acesso em: 2 jul. 2025.

3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no REsp 1.951.351/MG. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Brasília, DF, 27 jun. 2022. Diário da Justiça Eletrônico, 1º jul. 2022. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1659993227/inteiro-teor-1659993241. Acesso em: 2 jul. 2025.

4 ACOSTA LÓPEZ, Juana I. The Cotton Field Case: gender perspective and feminist theories in the Inter-American Court of Human Rights jurisprudence. Revista Derecho Internacional, Bogotá, n. 21, p. 17-54, jul./dez. 2012. Disponível em: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1692-81562012000200002. Acesso em: 2 jul. 2025.

5 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Brasília: CNJ, 2022. p. 17. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-de-genero-cnj-24-03-2022.pdf. Acesso em: 2 jul. 2025.

6 MIGUEZ, Brunella Poltronieri. Justiça em uma perspectiva de gênero: o reconhecimento do trabalho de cuidado no direito das famílias. IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família, 6 maio 2025. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/2316/Justiça+em+uma+perspectiva+de+gênero:+o+reconhecimento+do+trabalho+de+cuidado+no+direito+das+famílias. Acesso em: 2 jul. 2025.

7 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Alcançar a igualdade de gênero nas taxas de emprego: alguns números do mercado de trabalho do Brasil. Brasília: OIT, 7 mar. 2025. Disponível em: https://www.ilo.org/pt-pt/resource/article/alcancar-igualdade-de-genero-nas-taxas-de-emprego-alguns-numeros-do-mercado. Acesso em: 2 jul. 2025.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Brasília: CNJ, 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/03/Protocolo_para_Julgamento_com_Perspectiva_de_Genero_CNJ.pdf. Acesso em: 2 jul. 2025.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no REsp 2.111.631/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 13 fev. 2024. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/2549313857/inteiro-teor-2549313860. Acesso em: 2 jul. 2025

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no REsp 1.951.351/MG, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 14 set. 2021. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1659993227/inteiro-teor-1659993241. Acesso em: 2 jul. 2025.

DANTAS JÚNIOR, Ivo. O distinguishing no sistema brasileiro de precedentes vinculantes. Revista de Processo, v. 46, n. 314, p. 317-339, 2021.

INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. Alcançar a igualdade de gênero nas taxas de emprego: alguns números do mercado de trabalho do Brasil. 2024. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_916982/lang--pt/index.htm. Acesso em: 2 jul. 2025.

MIGUEZ, Brunella Poltronieri. Justiça em uma perspectiva de gênero: o reconhecimento do trabalho de cuidado no direito das famílias. IBDFAM, 6 maio 2025. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/2316/Justiça+em+uma+perspectiva+de+gênero:+o+reconhecimento+do+trabalho+de+cuidado+no+direito+das+famílias. Acesso em: 2 jul. 2025.

Beatrice Merten

VIP Beatrice Merten

Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro. Pós Graduada e Mestranda em Direito.

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