Alienação parental e perspectiva de gênero: Desafios na aplicação
A falsa acusação de alienação parental é ato violento que distorce a lei para manipular o Judiciário, causando abuso psicológico na criança e no cuidador injustamente acusado.
quarta-feira, 9 de julho de 2025
Atualizado às 09:17
1. Introdução
A lei da alienação parental, ao contrário do que sugerem algumas vozes críticas, não foi criada para proteger alienadores dissimulados, mas sim para coibir práticas abusivas que atentam contra o desenvolvimento psicológico da criança e a dignidade dos genitores injustamente difamados. No contexto do Direito de Família é necessário compreender que a falsa acusação de alienação parental, quando instrumentalizada por um genitor que, por sua própria conduta disfuncional, afasta a criança do convívio saudável, constitui, por si só, um ato de alienação parental. Não há na legislação brasileira a exigência de que o filho efetivamente se afaste do genitor falsamente acusado para que a alienação seja configurada e reprimida; o foco está na prática do ato doloso de interferência na formação psicológica da criança.
Assim, aquele que acusa falsamente a mãe ou o pai de alienação parental, buscando desqualificá-lo injustamente perante o filho e o sistema de justiça, pratica ele mesmo a alienação parental e deve ser responsabilizado. Ao invés de sustentar a revogação da lei com base no mau uso de seus dispositivos, é preciso aprofundar sua correta aplicação, justamente para proteger as mulheres, frequentemente guardiãs e cuidadoras, de acusações infundadas que constituem violência psicológica e abuso moral, aspectos centrais que a lei visa coibir. Em pesquisa realizada com 225 genitores alienados de outros países, identificou-se que as mães experimentam uma gravidade maior de exposição à alienação parental do que os pais1, o que reforça a necessidade de atenção a este fenômeno no contexto da desigualdade de gênero vivida nas disputas familiares.
2. A alienação parental como violência psicológica e abuso moral: Elementos do conceito jurídico brasileiro
O conceito jurídico de alienação parental no Brasil foi construído com base na compreensão contemporânea das dinâmicas familiares e dos impactos psíquicos das disputas parentais sobre crianças e adolescentes. Diferentemente de interpretações reducionistas que vinculam a alienação apenas ao resultado prático de afastamento do convívio, a lei 12.318/10 estabeleceu como núcleo do ilícito a interferência na formação psicológica da criança ou adolescente, promovida ou induzida por um dos genitores ou por quem tenha autoridade sobre o filho, visando causar repúdio ou prejuízo ao vínculo com o outro genitor.
Conforme dispõe o art. 2º da lei de alienação parental, a prática se caracteriza como conduta dolosa, ou seja, deliberada e intencional, que afeta negativamente a constituição ou a manutenção do vínculo afetivo saudável entre a criança e um de seus genitores ou figuras de apego. A redação legal é clara ao não exigir como elemento do tipo o afastamento efetivo da criança do genitor alienado. O que se busca coibir é o ato abusivo em si que, independentemente do resultado concreto, já configura violência psicológica contra a criança e abuso moral contra o genitor atingido.
Essa compreensão está alinhada às classificações diagnósticas internacionais. O DSM-5® identifica essas situações como problemas de relacionamento entre pais e filhos (V61.20 [Z62.820]) e criança afetada por sofrimento na relação dos pais (V61.29 [Z62.898]), reconhecendo que conflitos e dinâmicas disfuncionais entre pais impactam significativamente a saúde emocional da criança. O manual descreve que o controle parental inadequado, a pressão parental excessiva e as discussões hostis constituem fatores que prejudicam os domínios afetivo, cognitivo e comportamental do desenvolvimento infantil. Tais circunstâncias não apenas geram sofrimento imediato, como também aumentam o risco de adoecimento mental, afetando o prognóstico e o tratamento de eventuais transtornos da criança.
No mesmo sentido, a CID-11 corrobora essa abordagem ao classificar como relevantes para a saúde mental infantil as seguintes categorias:
- QE52.0: Problema no relacionamento entre o cuidador e a criança;
- QE52.1: Perda de relação afetiva na infância;
- QE52.Y: Outro problema especificado associado às interações interpessoais na infância;
- QE52.Z: Problema associado às interações interpessoais na infância, não especificado;
- QE5Y: Outros problemas especificados associados a relacionamentos;
- QE5Z: Problemas associados a relacionamentos, não especificados.
Esses códigos enfatizam que interferências na relação afetiva da criança com um genitor ou cuidador principal não são meras questões familiares, mas representam problemas com potencial clínico relevante, afetando o desenvolvimento emocional e social saudável da criança.
Portanto, não há dúvida de que o ato de interferir no relacionamento da criança com um dos genitores ou figuras de apego configura abuso psicológico e violência emocional, com impactos potencialmente duradouros sobre o bem-estar e a saúde mental infantil.
A interpretação equivocada que condiciona o reconhecimento da alienação parental à constatação de prejuízo concreto no vínculo da criança com o genitor injustamente acusado contribui para a invisibilização de situações em que o próprio genitor acusador, por meio de sua conduta disfuncional, provoca voluntariamente seu afastamento. Em seguida, esse mesmo genitor instrumentaliza a lei 12.318/10, invertendo a narrativa e imputando falsamente o genitor cuidador de alienação parental.
Nessas situações, ao invés de se reconhecer que é o próprio genitor afastado quem, por sua conduta, rompe o vínculo com o filho, o sistema judicial pode se voltar contra o cuidador, que se vê forçado a adotar uma postura defensiva, provando que não pratica alienação parental. Com isso, a lei criada para proteger a criança da violência psicológica acaba sendo deturpada e transformada em instrumento de perpetuação do abuso moral, permitindo ao genitor disfuncional ocultar a sua responsabilidade pelo afastamento e manipular o processo judicial em seu favor.
Estudos realizados no Canadá apontam que, embora as mães sejam mais frequentemente acusadas de alienação parental, investigações demonstraram, na maioria dos casos, que o afastamento da criança do pai acusador decorreu da própria conduta dele, envolvendo abuso ou violência, práticas inadequadas de parentalidade ou ausência de vínculo afetivo genuíno, de modo que a criança estava desvinculada, mas não alienada do genitor rejeitado2.
Essa realidade evidencia a necessidade de um mínimo de capacidade hermenêutica por parte dos operadores do direito para que compreendam corretamente o alcance e os objetivos da lei 12.318/10. É indispensável romper, de uma vez por todas, com o equívoco histórico que tenta vincular a alienação parental prevista em lei à teoria da chamada SAP - "síndrome de alienação parental", uma construção teórica sem reconhecimento científico consolidado, que surgiu no contexto norte-americano, ao nosso entender, com finalidades preponderantemente estratégicas.
A SAP foi desenvolvida como uma ferramenta de fácil argumentação para ser utilizada por peritos que nos Estados Unidos atuam como testemunhas contratadas por uma das partes, e são sabatinados diretamente pelos advogados no tribunal perante o júri popular. Nesse cenário, a teoria da SAP foi concebida para oferecer respostas padronizadas e defensáveis durante os depoimentos judiciais, não tendo qualquer correlação com a estrutura processual brasileira, onde prevalece o modelo de perícia técnica imparcial, e o foco está na proteção integral da criança, e na repressão a atos concretos de violência psicológica, e não na rotulação clínica de um suposto distúrbio comportamental.
A alienação parental precisa ser compreendida no ordenamento jurídico brasileiro como uma modalidade de violência psicológica contra a criança3 e de abuso moral contra o genitor injustamente difamado, especialmente aquele que, ao tentar proteger e cuidar do filho, se torna alvo de falsas acusações de alienação parental. Trata-se de uma tática recorrente empregada por genitores disfuncionais para minar a credibilidade do cuidador perante o Judiciário, invertendo narrativas e desqualificando sua atuação protetiva como se fosse ilícita.
O acórdão prolatado pelo TJ/PR ilustra com precisão a interpretação distorcida da lei ora criticada, ao afirmar que "a verificação de alienação parental depende não apenas da prática de atos pelo genitor que visem à deturpação da imagem do outro, mas também da constatação de que o filho efetivamente passou a ter essa imagem distorcida do genitor supostamente alienado".4
Reproduzindo o mesmo equívoco hermenêutico, o acórdão prolatado pelo TJ/MG incorre em grave distorção da lei 12.318/10, ao restringir indevidamente a autoria da alienação parental ao genitor que detém a guarda da criança. Tal leitura ignora o texto legal, que não condiciona a prática do ato abusivo à guarda ou à residência da criança, mas sim à conduta dolosa que interfira negativamente em sua formação psicológica. Conforme consta no julgado: "Entende-se por alienação parental o ato do genitor que detém a guarda do menor que cause interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente, fomentando o repúdio ao outro genitor, com o propósito de redução ou mesmo afastamento do convívio, em prejuízo do menor (lei 12.318/10)". Trata-se de interpretação reducionista, que não apenas deturpa a finalidade protetiva da norma, mas também invisibiliza situações em que o genitor não guardião, durante períodos de convivência, pode praticar atos de alienação parental com igual ou maior gravidade5.
Ao reduzir o fenômeno da alienação parental apenas ao distanciamento físico ou emocional da criança em relação a um dos genitores, o julgador desconsidera a essência da violência, que reside precisamente na manipulação dolosa das percepções infantis e na corrosão injusta da imagem do genitor cuidador. Trata-se de um dano que não se restringe ao afastamento concreto, mas que opera no plano psicológico e simbólico, promovendo o sofrimento psíquico e a insegurança emocional tanto da criança quanto daquele que dela cuida com responsabilidade e afeto.
Além disso, restringir o sujeito ativo do ato alienador apenas ao guardião da criança representa grave deturpação do comando legal, ignorando que a alienação parental pode ser praticada por qualquer pessoa que exerça influência sobre a criança, inclusive o genitor não guardião, familiares ou terceiros, e não apenas por quem detém a guarda formal. Ao adotar tal interpretação limitadora, o julgador enfraquece a proteção integral da criança e inviabiliza a responsabilização adequada de quem instrumentaliza relações familiares para fins de dominação emocional e moral.
3. A falsa acusação de alienação parental como ato alienador: A inversão da narrativa e o uso distorcido da lei
Como mencionado, a alienação parental disciplinada pela lei 12.318/10 não se limita a ação de impedir fisicamente o convívio da criança com um dos genitores, mas abrange qualquer conduta dolosa que interfira negativamente na formação psicológica da criança, buscando desqualificar o outro genitor ou romper injustamente o vínculo afetivo entre eles. Nesse sentido, a falsa acusação de alienação parental representa uma das formas mais insidiosas desse comportamento, pois distorce o sistema jurídico e as relações familiares em benefício do alienador.
Quando o genitor que tem histórico de ausência, comportamento violento ou desinteresse afetivo, acusa falsamente o cuidador de alienação parental, ocorre uma clara inversão da narrativa protetiva. Ao invés de reconhecer sua própria responsabilidade no afastamento emocional do filho, esse genitor busca deslegitimar quem cuida, criando perante o Judiciário a imagem de um alienador. Trata-se de uma tática dolosa cujo objetivo não é a proteção da criança, mas a recuperação do controle afetivo e processual, através da manipulação da verdade dos fatos e da desconstrução da figura cuidadora.
Essa inversão é amplamente descrita pela doutrina especializada. Douglas Darnall6 dispõe sobre a difamação contra genitor cuidador como um dos comportamentos clássicos do alienador, ressaltando que essa conduta tem por finalidade minar a credibilidade do cuidador e afastar a criança da convivência saudável. O autor complementa, inclusive, que tais práticas tendem a acirrar o litígio entre as partes, criando um ambiente conflituoso que o próprio alienador utiliza em seu favor. Ao provocar o cuidador com falsas acusações e ataques morais, o genitor disfuncional busca intencionalmente uma reação, seja ela emocional, verbal ou processual, que possa ser manipulada e apresentada como mais uma evidência de alienação parental. Trata-se, portanto, de uma estratégia cíclica e perversa: o alienador cria o conflito, estimula a resposta, e depois instrumentaliza essa reação como argumento adicional para sustentar sua falsa narrativa de alienação, ampliando ainda mais o desgaste emocional do cuidador e da criança.
Paula Gomide7, ao abordar os critérios de identificação da alienação parental, alerta para o risco de se rotular injustamente como alienadora a conduta protetiva legítima do cuidador, quando a verdadeira alienação parte daquele que, sem fundamento, acusa e expõe o outro genitor ao sofrimento moral e à desmoralização perante o filho.
Portanto, a falsa acusação de alienação parental deve ser compreendida não apenas como defesa equivocada ou erro processual, mas como ato típico de alienação parental por seu caráter doloso e pelos danos que causa à integridade emocional da criança e do genitor injustamente acusado. A correta aplicação da lei 12.318/10 demanda o reconhecimento dessa dinâmica perversa, sob pena de perpetuar o ciclo de violência psicológica e abuso moral no ambiente familiar.
4. Inadequações na crítica à lei da alienação parental e sua correta aplicação com perspectiva de gênero
As críticas contemporâneas à lei 12.318/10 frequentemente partem de uma leitura superficial e distorcida do seu conteúdo. Muitos argumentam que a lei tem sido utilizada como instrumento de repressão contra mulheres que denunciam violência doméstica ou que assumem, sozinhas, o cuidado dos filhos após a dissolução conjugal8. A partir dessa crítica, se defende a revogação integral da norma, como se o problema estivesse no seu texto e não em sua aplicação inadequada.
Uma vez estabelecido que a falsa acusação é, em si, um ato de alienação parental, a estratégia de defesa deve se concentrar em demonstrar ao Judiciário a dinâmica subjacente a essa inversão. É preciso expor as verdadeiras motivações do acusador e provar que seu comportamento se encaixa perfeitamente na moldura legal da alienação.
O arcabouço protetivo da lei 12.318/10 deixa claro, em seu art. 2º, inciso I, que a campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da parentalidade configura ato típico de alienação parental. Dessa forma, a legislação não apenas reconhece a difamação como uma forma de interferência ilícita na formação psicológica da criança, mas também estabelece instrumentos jurídicos específicos para coibir tais condutas e assegurar a proteção do genitor injustamente atacado, preservando assim o ambiente afetivo saudável indispensável ao desenvolvimento infantil.
A falsa acusação de alienação parental raramente é um ato isolado ou fruto de uma preocupação genuína com o bem-estar da criança. Na vasta maioria dos casos, ela se insere em um padrão de comportamento pós-separação que visa fins espúrios: manter o controle sobre a vida da ex-parceira, intimidá-la, infligir sofrimento emocional, ou obter vantagens indevidas na disputa pela guarda ou por questões financeiras.
Frequentemente a acusação serve para desviar o foco das próprias falhas parentais do acusador. O genitor que tem uma convivência limitada a momentos de lazer, se ausentando das responsabilidades da rotina, do cuidado na doença, do acompanhamento escolar e da imposição de limites, pode usar a falsa acusação para mascarar sua própria negligência ou desinteresse. Em outros casos, a tática é uma resposta reativa a denúncias legítimas de violência doméstica ou abuso, funcionando como uma cortina de fumaça para minar a credibilidade da vítima.
A adequada hermenêutica da lei de alienação parental impõe ao Judiciário uma análise crítica e rigorosa do contexto em que a acusação é formulada, com o objetivo de identificar, com base em critérios técnicos e imparciais, quem de fato pratica o ato alienador, independentemente de seu gênero. Essa imparcialidade, contudo, não pode ignorar a realidade histórica e social, em que as mulheres cuidadoras têm sido frequentemente alvos de acusações infundadas, conforme destacamos no início deste trabalho.
Corroborando essa análise crítica, as pesquisas desenvolvidas por Paula Gomide demonstram que os argumentos impregnados de viés misógino, ao sugerirem que a alienação parental seria uma prática majoritariamente feminina, não encontram respaldo empírico. Segundo os resultados da EAP - Escala de Alienação Parental, comportamentos alienadores foram identificados em genitores de ambos os sexos, ocorrendo de forma indistinta, o que evidencia a necessidade de afastar preconceitos de gênero na análise judicial desses casos9.
O protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, aprovado pelo CNJ por meio da resolução 254/21 e tornado obrigatório pela resolução 492/23, estabelece diretrizes claras para que os magistrados superem esses vieses. O protocolo reconhece expressamente que a alegação de alienação parental tem sido utilizada como estratégia por homens acusados de violência para enfraquecer as denúncias e pleitear a guarda unilateral da criança, instrumentalizando o sistema de justiça em seu benefício10.
A falsa acusação de alienação parental transcende os limites do conflito familiar e adentra uma esfera mais sombria: a da violência de gênero perpetrada por meio do sistema de justiça. É fundamental enquadrar essa tática nos conceitos de violência processual e lawfare de gênero para que o Judiciário compreenda a gravidade e a dimensão sistêmica do abuso.
O termo, que une as palavras inglesas "law" (lei) e "warfare" (guerra), se refere à utilização do Direito e do sistema judicial como um campo de batalha para deslegitimar, desqualificar e silenciar mulheres. No Direito das Famílias, a alegação vaga e infundada de alienação parental é uma das principais armas desse tipo de "guerra".
O reconhecimento desse fenômeno é crescente no Brasil, como demonstra o PL 4830/2411, que visa incluir a violência processual no rol de violências domésticas e familiares da lei Maria da Penha. A proposta define a prática como "qualquer conduta abusiva ou de má-fé (...) com o intuito de prolongar, dificultar ou manipular o curso do processo, mediante distorção da verdade, incidentes infundados, resistência injustificada, recursos protelatórios ou outros meios que causem desgaste psicológico, moral e financeiro à mulher, com o objetivo de revitimizá-la ou limitar seu acesso à Justiça". A falsa acusação de alienação parental é um exemplo paradigmático dessa conduta.
A solução não está na revogação da lei, mas na sua correta e estratégica aplicação, com leitura sistêmica e perspectiva de gênero, de modo a proteger a criança e o genitor cuidador da violência psicológica e processual a que são submetidos. A eliminação da lei, ao contrário, privaria o sistema jurídico brasileiro do seu único instrumento legal específico para coibir a alienação parental e sancionar condutas dolosas como a falsa denúncia.
Nesse sentido, experiências internacionais como a do Canadá, oferecem importantes referências para o aprimoramento da interpretação jurídica no Brasil. O sistema canadense, a partir da reforma do Divorce Act em 2021, passou a reconhecer expressamente que comportamentos alienadores, incluindo a falsa imputação de alienação parental, constituem formas de violência familiar, especialmente quando inseridos em um padrão mais amplo de controle coercitivo e abuso psicológico. Como aponta a doutrina e os relatórios institucionais canadenses, a falsa acusação de alienação parental, quando utilizada para desqualificar o cuidador legítimo e minar seu vínculo com a criança, configura uma prática abusiva e violenta, que viola os direitos fundamentais do genitor e do filho.
As reformas fornecem uma definição ampla de "violência familiar" no art. 2º da lei do divórcio, afirmando que:
"Significa qualquer conduta, independentemente de constituir ou não uma infração criminal, de um membro da família em relação a outro membro da família, que seja violenta ou ameaçadora ou que constitua um padrão de comportamento coercitivo e controlador ou que faça com que o outro membro da família tema por sua própria segurança ou pela de outra pessoa - e no caso de uma criança, a exposição direta ou indireta a tal conduta" (tradução livre)
Os tribunais canadenses, embora estejam preocupados com o comportamento alienante, também reconhecem que há casos em que pais abusivos, especialmente homens, fazem alegações infundadas de alienação contra o outro genitor. Em Armstrong v. Coupland (2021 ONSC 8186) restou assentado:
"A definição de violência familiar reconhece especificamente que condutas que podem não constituir crime podem constituir violência familiar para fins de Direito de Família... A inclusão específica deste fator como consideração obrigatória na determinação do melhor interesse das crianças reconhece os profundos efeitos que todas as formas de violência familiar podem ter sobre as crianças. Essas consequências podem ser diretas, se uma criança for exposta à violência familiar, ou indiretas, se o bem-estar físico, emocional e psicológico do genitor vitimizado for comprometido, uma vez que essas consequências, por sua vez, frequentemente impactam negativamente a capacidade do genitor de atender às necessidades físicas e emocionais da criança"12. (tradução livre)
O Canadá, portanto, não apenas reconhece a gravidade dessa conduta, como recomenda que os tribunais atuem com extrema cautela na avaliação de alegações de alienação parental feitas por genitores historicamente abusivos ou ausentes, evitando que sejam instrumentalizadas como arma processual. A partir dessa ótica, a proteção da criança e do cuidador não está em revogar o conceito jurídico da alienação parental, mas sim em aplicá-lo corretamente contra quem realmente pratica a violência psicológica, independentemente de quem seja, rompendo com estereótipos de gênero e leituras simplistas da norma.
Essa perspectiva, aliás, encontra respaldo em diversos ordenamentos jurídicos estrangeiros que há décadas tratam a alienação parental com maior profundidade e maturidade conceitual. No Canadá, nos Estados Unidos, no Reino Unido e em várias jurisdições europeias, a alienação parental é reconhecida como um fenômeno complexo que demanda uma análise interdisciplinar rigorosa e não pode ser reduzida a disputas pela guarda ou a interpretações enviesadas por estereótipos de gênero. Nesses países, a identificação da alienação parental não se baseia unicamente nas narrativas processuais, mas exige a utilização de instrumentos técnicos confiáveis como avaliações psicológicas forenses, estudos psicossociais detalhados, escuta especializada da criança e entrevistas clínicas com todos os envolvidos.
É com base nesse conjunto de práticas científicas e jurídicas que a lei 12.318/10 se estruturou, adotando princípios e procedimentos amplamente reconhecidos internacionalmente como a exigência de prova pericial qualificada, a previsão de medidas pedagógicas e terapêuticas e a proteção do melhor interesse da criança como princípio orientador da interpretação e da aplicação da norma. A adequada implementação da lei exige a utilização de ferramentas essenciais à sua finalidade protetiva tais como avaliações psicológicas e sociais minuciosas conduzidas por profissionais especializados e imparciais, entrevistas protegidas e escutas especializadas da criança em conformidade com o art. 5º da própria lei e em harmonia com o Estatuto da Criança e do Adolescente e o protocolo do CNJ para julgamento com perspectiva de gênero, análise do histórico relacional e parental de ambos os genitores incluindo antecedentes de violência negligência ou abandono afetivo, exame atento do contexto de conflito conjugal e litigioso com o objetivo de diferenciar disputas legítimas de estratégias manipuladoras e a consideração da vontade autêntica da criança, respeitando seu estágio de desenvolvimento e sua capacidade progressiva de autonomia13.
Portanto, ao contrário do que sustentam interpretações reducionistas, o problema não reside na existência do conceito jurídico da alienação parental, mas sim em sua aplicação distorcida e precipitada sem o amparo das ferramentas técnicas previstas na própria lei e amplamente recomendadas pela prática internacional. Seguir o exemplo de países que amadureceram o enfrentamento desse tema significa aperfeiçoar a aplicação da lei 12.318/10 e não revogá-la, garantindo à criança proteção contra todas as formas de violência emocional independentemente de quem as pratique.
5. Responsabilização jurídica do genitor que pratica falsas acusações de alienação parental
Sob a ótica da responsabilização jurídica, a legislação brasileira prevê medidas específicas que podem ser aplicadas contra o genitor que, de forma dolosa, pratica atos de alienação parental. O art. 6º da lei 12.318/10 estabelece um rol de medidas judiciais que incluem: advertência ao alienador; modificação do regime de convivência familiar; alteração da guarda; multa; encaminhamento a acompanhamento psicológico ou psiquiátrico; e fixação de regime de convivência monitorada.
Essas medidas devem ser aplicadas contra quem pratica o ato alienador, e não contra quem é falsamente acusado. Logo, quando o genitor afastado se utiliza de difamação e falsas acusações, provoca desequilíbrio no ambiente familiar, cabendo ao Judiciário, amparado pela lei 12.318/10 e pela doutrina moderna da proteção integral da criança, aplicar as sanções cabíveis.
Além das medidas previstas na lei da alienação parental, a falsa acusação pode gerar responsabilidade civil por danos morais, por configurar abuso de direito (art. 187 do Código Civil) e ofensa à honra subjetiva do genitor injustamente acusado14. No âmbito penal, poderá configurar crime de calúnia ou denunciação caluniosa, nos termos dos arts. 138 e 339 do Código Penal, quando a acusação for formalizada de forma dolosa perante autoridades públicas (falsa imputação de descumprimento de decisão judicial ou desobediência, por exemplo).
No plano processual, essas condutas caracterizam violação as garantias estruturais do processo civil, consistentes nos deveres de boa-fé objetiva, lealdade e cooperação, previstos no art. 6º do CPC, bem como constituem litigância de má-fé, tipificada nos arts. 79 e 80 do mesmo diploma legal. O uso do processo judicial como instrumento de manipulação e violência institucional, não apenas atinge a parte contrária, mas também compromete a credibilidade e a integridade do próprio sistema de justiça, que passa a ser utilizado como ferramenta de perpetuação da violência psicológica.
Portanto, cabe ao Judiciário não apenas proteger a criança e o cuidador da violência psicológica e processual, mas também preservar sua própria função constitucional de garantia da proteção integral da criança e da paz familiar, repelindo com veemência a litigância abusiva e a má-fé processual nos litígios parentais.
6. Conclusão
A falsa acusação de alienação parental representa uma grave distorção do sistema de proteção previsto pela lei 12.318/10. Quando utilizada por genitores disfuncionais como arma processual para minar a credibilidade do cuidador legítimo e manipular o Judiciário, essa conduta não apenas viola o direito da criança à convivência saudável e protegida, mas também constitui um ato típico de alienação parental, capaz de produzir sofrimento psicológico e desgaste emocional profundo em toda a estrutura familiar.
Diante desse cenário, a solução não reside na revogação da lei, como sustentam algumas críticas apressadas, mas na sua correta aplicação, à luz de uma hermenêutica protetiva e de gênero, capaz de distinguir com clareza quem é o verdadeiro autor do ato alienador. A lei 12.318/10 não foi criada para proteger quem manipula ou abusa do processo judicial, mas sim para coibir qualquer forma de violência psicológica que afete a criança e seu cuidador, independentemente do gênero do agressor.
A experiência canadense demonstra que a falsa imputação de alienação parental integra o conceito de violência familiar, especialmente quando faz parte de um padrão de controle coercitivo e abuso psicológico. Trata-se de uma abordagem moderna, alinhada com a proteção integral da criança, e que deveria inspirar a aplicação da legislação brasileira.
Ao contrário do que afirmam seus detratores, a lei da alienação parental não é um instrumento de opressão contra mães ou cuidadores, mas sim uma ferramenta que, quando corretamente interpretada, protege quem cuida e reprime quem abusa. A perpetuação de interpretações distorcidas e superficiais não só prejudica as vítimas, mas também enfraquece a credibilidade do sistema de justiça, transformando-o em palco de estratégias abusivas e litígios manipulados.
É urgente, portanto, que magistrados, advogados, membros do Ministério Público e equipes técnicas sejam capacitados para aplicar a lei 12.318/10 com rigor jurídico e sensibilidade social, garantindo seu verdadeiro propósito de proteção da criança vítima de violência psicológica, preservando a dignidade e os vínculos familiares saudáveis.
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1 BALMER, S.; MATTHEWSON, M.; HAINES, J. Parental alienation: Targeted parent perspective. Australian Journal of Psychology, v. 70, p. 91-99, 2018, apud GOMIDE, P. I. C. Escala de Alienação Parental (EAP): Fundamentação teórica, Aplicação, Correção e Interpretação da EAP. Curitiba: Juruá, 2019. p. 46.
2 BOYD, John-Paul. Alienated Children in Family Law Disputes in British Columbia. Canadian Research Institute for Law and the Family, 2015.
3 Artigo 4º, inciso II, alinea "b" da Lei 13.341/2017.
4 TJ-PR 01177231920238160000 Irati, Relator.: Ivanise Maria Tratz Martins, Data de Julgamento: 19/06/2024, 12ª Câmara Cível, Data de Publicação: 16/07/2024. No mesmo sentido: "(...) A animosidade acirrada entre os pais não constitui prática de alienação parental, que só ocorre diante da comprovação de que tais atos tenham afetado de modo relevante o desenvolvimento e formação das crianças. (...)". TJ-DF 07016824920208070010 1641886, Relator.: DIAULAS COSTA RIBEIRO, Data de Julgamento: 24/11/2022, 8ª Turma Cível, Data de Publicação: 30/11/2022.
5 TJ-MG - Apelação Cível: 50061309520218130114, Relator.: Des.(a) Teresa Cristina da Cunha Peixoto, Data de Julgamento: 29/09/2024, Câmaras Especializadas Cíveis / 8ª Câmara Cível Especializada, Data de Publicação: 30/09/2024
6 DARNALL, Douglas. Divorce Casualties: Protecting Your Children From Parental Alienation. Dallas: Taylor Trade Publishing, 1998.
7 Gomide, Paula Inez Cunha. ESCALA DE ALIENAÇÃO PARENTAL - EAP. Fundamentação teórica, aplicação, correção e interpretação da EAP. Curitiba Juruá Editora 2024
8 Nota pública do CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), emitida em 30 de agosto de 2018, posicionando-se criticamente sobre a aplicação da Lei de Alienação Parental e seus impactos na proteção integral de crianças e adolescentes.
9 Gomide, Paula Inez Cunha. Escala de Alienação Parental - EAP. Fundamentação teórica, aplicação, correção e interpretação da EAP. Curitiba Juruá Editora 2024. P. 86.
10 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Brasília, DF: CNJ, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-de-genero-cnj-24-03-2022.pdf. Acesso em: 4 jul. 2025
11 Projeto inclui violência processual na Lei Maria da Penha - Câmara dos Deputados, acessado em julho 3, 2025, https://www.camara.leg.br/noticias/1137843-projeto-inclui-violencia-processual-na-lei-maria-da-penha/
12 CANADÁ. Department of Justice. Making appropriate parenting arrangements in family violence cases: Applying the literature to identify promising practices. Ottawa: Government of Canada, 2023. Disponível em: https://www.justice.gc.ca/eng/rp-pr/jr/mapafvc-cbapcvf/arrangements.html. Acesso em: 4 jul. 2025.
13 Ver sobre: KELLY, Joan B.; JOHNSTON, Janet R. The alienated child: a reformulation of parental alienation syndrome. Family Court Review, v. 39, n. 3, p. 249-266, 2001.
14 Nesse sentido: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. ALIENAÇÃO PARENTAL. DANOS MORAIS. Merece mantida a sentença que determina o pagamento de indenização por danos morais da apelante em relação ao autor, comprovada a prática de alienação parental. Manutenção do quantum indenizatório, uma vez que fixado em respeito aos critérios da razoabilidade e proporcionalidade. Apelação cível desprovida. (Apelação Cível Nº 70073665267, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luís Dall'Agnol, Julgado em 20/07/2017).
___________
BAKER, Amy J. L.; BEN-AMI, Naomi. To turn a child against a parent is to turn a child against himself: The direct and indirect effects of exposure to parental alienation strategies on self-esteem and well-being. Journal of Divorce & Remarriage, v. 52, n. 7, p. 472-489, 2011.
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