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Inconstitucionalidade do PDL 89/23

Proposta do Congresso tenta sustar norma do CNJ, mas esbarra na falta de competência legislativa e afronta a separação dos Poderes.

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Atualizado às 11:47

A proposta de decreto Legislativo 89/23 tem por finalidade sustar a resolução 492, de 17/3/23, norma que recebeu o nome de "Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero". O ato normativo foi desenvolvido e aprovado pelo CNJ, tendo como objetivo introduzir uma série de ações com vistas a fomentar a paridade de gênero no âmbito do Poder Judiciário.

A justificativa do PDL menciona uma suposta usurpação da competência do STF, estabelecida no art. 93, inc. IV1, da CF/88, que atribui ao Tribunal a prerrogativa de iniciativa de lei que vise alterar a lei orgânica da magistratura. Especificamente, a motivação da proposta aponta que cabe à LOMAN tratar sobre cursos direcionados aos membros da Magistratura. O Protocolo, em seu art. 2º2, prevê a necessidade de formação específica em relação a direitos humanos, gênero, raça e etnia. Segundo a argumentação trazida no PDL, esta seria hipoteticamente a pecha a ser apontada na resolução.

O argumento de mérito é frágil, mas não vamos nos debruçar a respeito dele. O objetivo deste artigo é debater uma questão que antecede essa discussão. O decreto Legislativo pode ser utilizado neste caso concreto?

Vamos elencar argumentos para buscar comprovar que a resposta a essa questão deve ser negativa.

Primeiramente, havemos de questionar qual é a finalidade do decreto Legislativo?

A resposta a essa questão está nos regimentos internos das Casas que compõem o Congresso Nacional, RICD, art. 109, inc. II3 e RISF, art. 213, inc. II4, e ambos as legislações apontam que o decreto Legislativo serve para regular matéria de competência exclusiva do Congresso Nacional.

Nesse sentido, a pergunta seguinte a ser feita é: o caso debatido no PDL se encaixa como matéria de competência exclusiva do Congresso Nacional?

A justificativa trazida no PDL para a intervenção do Congresso Nacional apresenta como fundamento o art. 49 "É da competência exclusiva do Congresso Nacional: (...) inc. XI - zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes;" da CF/88. Em uma leitura perfunctória, a resposta imediata poderia parecer positiva, contudo, faz-se necessário a realização de uma interpretação hermenêutica mais apurada, tomando como base os elementos do caso concreto para responder de forma acertada o questionamento proposto.

O dispositivo constitucional menciona: "zelar pela preservação de sua competência legislativa (...)". Aqui está um ponto que merece atenção. O texto constitucional não traz palavras vagas ou destituídas de sentido imperativo. Considerando que a competência para tratar sobre cursos, conforme apontado no próprio PDL, é da LOMAN, norma que só pode ser alterada através de lei complementar proposta pelo STF, a competência legislativa, sob o ponto de vista da prerrogativa de iniciativa, é do Poder Judiciário, não do Poder Legislativo.

Assumindo essa afirmação, nasce outra dúvida a ser respondida. A competência legislativa referida no inc. XI, do art. 49, da CF, define-se por quem tem a prerrogativa da iniciativa do projeto de lei ou ao mencionar "sua competência legislativa" o constituinte originário estaria oferecendo uma ferramenta ao Poder Legislativo para garantir que ele pudesse reclamar o seu direito de participar do processo Legislativo? Nestes termos, exsurge outra dúvida, esse reclamo seria cabível em face de um processo que ainda não existe?

Vamos responder a esses questionamentos. Mas há um ponto que precisa ser mencionado antes de trazermos essas respostas.

Qual é a interpretação teleológica do inc. XI, elencado no art. 49, da CF? Por que o constituinte originário incluiu esse dispositivo no texto constitucional? O inciso guarda similitude com o inc. V5, do mesmo artigo, que outorga ao Congresso Nacional poder para sustar atos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa. Ambos são instrumentos compõem o sistema de freios e contrapesos6.

Na definição que desenvolvemos, "o sistema de freios e contrapesos é composto pelos mecanismos disponíveis para corrigir as falhas inerentes ao exercício do poder e evitar erros por parte dos agentes que compõem os Poderes, contrabalanceando decisões e dividindo a responsabilidade entre os Poderes."7

O dispositivo foi incluído no texto constitucional com a finalidade de oferecer ao Poder Legislativo a capacidade de proteger a sua atuação definida constitucionalmente, evitando que outros Poderes ou mesmo instituições autônomas possam usurpar a sua competência. Portanto, é razoável afirmar que a competência que se pretendia proteger alcança dois aspectos: em relação aos demais entes federativos seria a competência privativa - vez que o texto fala em competência legislativa8 - logo, trata-se da que está elencada nos temas descritos no art. 22, da CF/88; e o dispositivo também visa proteger a competência do Poder Legislativo no âmbito da separação dos Poderes - a competência de legislar, de participar do processo legislativo, de realizar os debates e aprovar ou não o texto legislativo proposto.

A fim de corroborar essa afirmação, cabe também realizar uma interpretação hermenêutica histórica, trazendo a mens legislatoris. Nessa senda, apresentamos o discurso do senhor Jutahy Magalhães, constituinte originário, transcrito no Livro 17, pág. 328, dos Anais da Assembleia Nacional Constituinte:

As inovações em relação ao texto vigente, Sr. Presidente e Srs. Constituintes, formalizam de modo incisivo e inquestionável a grandiosidade do Legislativo e a consciência de que se revestirá, tão logo seja promulgada a nova Constituição.

No entanto, a par dessa nova feição, duas linhas simbólicas principais percorrem a recondução do Parlamento à sua efetiva destinação como permeador da vontade nacional.

A primeira delas diz respeito à ruptura com a ordem anteriormente predominante, ditada por um Legislativo submetido à hipertrofia de um Executivo autoritário e prepotente. Essa linha se identifica com o regime de governo até então preponderante e dissociado da Nação.

A outra se identifica com o retorno ao estado de direito sonhado pelo povo brasileiro há muitos anos, e que teve seu referencial mais significativo na memorável luta pelas eleições diretas para Presidente da República, e que somente agora estará garantida, graças à determinação desse mesmo Poder.

São duas linhas, em última instância, conformadoras da democracia que a futura Constituição fará implantar no País, orientada para a superação das diferenças, o que somente haverá de se exercitar pela convivência entre Poderes interdependentes e harmônicos, sem qualquer vestígio de hegemonia a retardar o encontro do Estado com a Nação.

O Legislativo é peça importantíssima nesse contexto, e somente por sua revalorização, conforme consta na Carta que estamos votando, o povo brasileiro terá condições de se conscientizar sobre seu papel decisivo na condução dos destinos do País. (grifos nossos).

A leitura da manifestação do membro da ANC, demonstra claramente o animus que ensejou a inclusão do inciso XI, no art. 49. A intenção foi a de oferecer recursos ao Poder Legislativo para resistir à interferência indevida de outros Poderes em suas atribuições constitucionalmente estabelecidas - as privativas; e o seu direito de participar do processo Legislativo, nos termos estabelecidos na CF.

Em outro trecho do discurso já qualificado acima, fica claro que a grave preocupação à época era tornar o Poder Legislativo uma instituição autônoma, desvencilhando-o do jugo do Poder Executivo:

Sr. Presidente, Srs. Constituintes, muito antes de se efetivarem as disposições constitucionais que atribuem ao Legislativo competência efetiva como poder Constituído independente - conforme exige a vontade popular -, os sinais de sua autonomia começam a se fazer sentir.

Como que movido pelas deliberações do Plenário da Assembléia Nacional Constituinte, ao concluir-se a votação em primeiro turno do Capítulo I do Título IV, o parlamento brasileiro parece ter-se libertado das amarras que o subjugavam à vontade do Executivo, e já passa a dar mostras de recuperação de forças, tomando, de fato, a dianteira das aspirações nacionais. (grifos nossos)

Diante desta afirmação, cabe analisar o cenário do caso concreto: o Poder Legislativo não tem a prerrogativa de iniciar o processo Legislativo, portanto, não há que se falar em violação à competência privativa do CN, apenas a sua competência própria, que é a de legislar. Mas cabe reclamar o direito de participar de um processo legislativo que não existe? O STF não propôs o projeto de lei. Apenas se ele propusesse, haveria a participação do Poder Legislativo.

Para que exista o processo Legislativo é indispensável que haja a propositura do projeto de lei. Enquanto o STF não decidir propor um PL, o Congresso não tem em relação a que atuar. Defendemos o entendimento de que o CN só teria a prerrogativa de reclamar uma invasão em sua competência, caso algo absolutamente esdrúxulo acontecesse como, por exemplo: o STF propusesse o PL para alterar a LOMAN, mas a deliberação e aprovação fosse realizada pelo CNJ, não pelo Congresso Nacional. Dispensável dizer que não foi o que ocorreu em relação à resolução objeto do PDL 89/23.

Não há nenhum instrumento capaz de compelir o STF a propor o projeto de lei. Se o Poder Legislativo não pode exigir que o PL seja criado, muito menos, considerar que foi lesado por não participar de algo que não existe. É irrazoável conceber que o Poder Legislativo possa considerar que foi usurpado em sua competência, em face de um processo Legislativo que sequer foi proposto. Só haveria lesão a sua competência legislativa, caso existisse um projeto de lei em curso, mas o Congresso Nacional fosse excluído do processo Legislativo.

Então, até aqui temos que: o decreto Legislativo tem como objetivo tratar sobre matéria exclusiva do Poder Legislativo; que o art. 49, inc. XI aponta como competência exclusiva do CN zelar pela sua competência legislativa; e defendemos que esta competência seria a competência privativa ou a possibilidade de atuação no âmbito dos processos Legislativos em geral, mas apenas naqueles que existem. Repisando o nosso entendimento: não é razoável entender que o Poder Legislativo possa reclamar a sua participação em relação a projetos de lei que não foram propostos ainda.

Portanto, analisando o caso concreto debatido no PDL 89/23, em que pese, o processo legislativo se desenvolva no âmbito do Poder Legislativo, que tem por incumbência deliberar e aprovar o projeto de lei, a competência para tratar sobre normas afetas à magistratura é constitucionalmente atribuída ao Poder Judiciário. Logo, não houve violação à competência privativa do CN, portanto, não cabe ao CN intervir em uma hipotética violação da competência que seria própria do STF, não de uma de suas Casas Legislativas; e, se ainda não existe o processo Legislativo, não há usurpação de sua competência legislativa. Não há como usurpar a participação em algo que não existe.

Há mais um argumento a apresentar que corrobora o posicionamento de que não cabe ao Congresso Nacional exarar decreto Legislativo em relação ao caso em testilha.

O STF já se debruçou a respeito da competência do Congresso Nacional para sustar atos oriundos do Poder Judiciário no âmbito do julgamento da ADC 33, proposta pela Mesa do Senado Federal. A ação requeria a declaração de constitucionalidade do decreto Legislativo 424/13. A medida havia sustado os efeitos da resolução do TSE que definiu o tamanho das bancadas dos Estados e do Distrito Federal na Câmara dos Deputados para as eleições de 2014.

O acórdão da Corte foi unânime pela improcedência da ADC, dentre outras motivações, indicando que inexiste previsão constitucional para edição de decretos legislativos que visem sustar atos do Poder Judiciário.

Vejamos o excerto do voto do eminente ministro Gilmar Mendes:

A esses fundamentos, acresço mais um: não há previsão constitucional para a edição desse tipo de decreto legislativo. O art. 49 da Constituição de 1988, que traz as matérias de competência exclusiva do Congresso Nacional, as quais, em sua maior parte, devem ser levadas a cabo por meio da edição de decretos legislativos, não traz a atribuição de sustar atos normativos emanados pelo Poder Judiciário, o que de resto seria absurdo.

O Congresso pode sustar atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos termos da delegação legislativa eventualmente recebida. A atribuição de controlar o Poder Executivo é certamente uma das principais outorgadas pelas constituições modernas ao Poder Legislativo. Tal competência, no entanto, não pode ser estendida ao Poder Judiciário por meio de mera interpretação extensiva.

Antes o que ocorre é o contrário, o Poder Judiciário é que fiscaliza o relacionamento entre os outros dois poderes. Admitir a higidez jurídica de decreto legislativo dessa espécie poderia nos levar a um quadro em que tal prática se tornasse comum, comprometendo a independência dos poderes.

Com a maxima venia, apresentamos uma ressalva ao posicionamento esposado no brilhante voto em destaque. Entendamos que ao mencionar "em face da atribuição normativa dos outros Poderes", (art. 49, inc. XI, CF), por "outros" forçosamente só podemos inferir que o Poder Judiciário esteja incluído, visto que o inciso V, do mesmo art. 49, menciona textualmente o Poder Executivo, então quando o constituinte quis especificar qual Poder estaria abrangido pela atuação do Legislativo e de qual forma, o fez.

Acerca disso, vale destacar que quando o constituinte quis outorgar o poder de sustar atos, ele também o fez expressamente. Ao optar pelo verbo zelar, está relacionado ao dever de cuidado. A forma de realizar esse cuidado poderia ser através de um decreto Legislativo, contudo, dentro dos moldes já delineados aqui, sob pena de violar a separação dos Poderes.

Assim, finalizamos afirmando que o PDL 89/23 é inconstitucional porque: 1) a fundamentação de que o art. 49, inc. XI, outorga a atribuição ao CN para discutir o tema está equivocada, pois, o tema não se encaixa como sendo de sua competência legislativa; 2) por "sua competência legislativa" devemos interpretar a possibilidade de participar de um processo Legislativo que exista, não um que hipoteticamente pode vir a ser proposto; 3) há jurisprudência do STF no sentido de declarar que inexiste previsão constitucional atribuindo poderes ao Poder Legislativo para sustar atos do Poder Judiciário (com as nossas ressalvas, mencionadas ao longo do artigo).

________

1 Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

(...)

IV previsão de cursos oficiais de preparação, aperfeiçoamento e promoção de magistrados, constituindo etapa obrigatória do processo de vitaliciamento a participação em curso oficial ou reconhecido por escola nacional de formação e aperfeiçoamento de magistrados; 

2 Art. 2º Os tribunais, em colaboração com as escolas da magistratura, promoverão cursos de formação inicial e formação continuada que incluam, obrigatoriamente, os conteúdos relativos aos direitos humanos, gênero, raça e etnia, conforme as diretrizes previstas no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, os quais deverão ser disponibilizados com periodicidade mínima anual.

3 Art. 109. Destinam-se os projetos: (...)

II - de decreto legislativo a regular as matérias de exclusiva competência do Poder Legislativo, sem a sanção do Presidente da República; - RICD

4 Art. 213. Os projetos compreendem: (...) II - projeto de decreto legislativo, referente à matéria da competência exclusiva do Congresso Nacional (Const., art. 49); - RISF

5 Art. 49, V - sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa;

6 Importante esclarecer que, na obra que publicamos sobre o tema havíamos nos posicionado no sentido de que o inc. XI, não faria parte do sistema de freios e contrapesos. Posicionamento que iremos rever por ocasião da publicação da segunda edição da obra.

7 CECILIO. Adriana. A Separação dos Poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos. Ed. Amanuense: São Paulo, pag. 83.

8 No âmbito doutrinário as competências definidas constitucionalmente são: competências exclusivas e comuns - administrativas e competências privativas e concorrentes - legislativas.

Adriana Cecilio Marco dos Santos

Adriana Cecilio Marco dos Santos

Advogada. Professora de Direito Constitucional da Universidade Nove de Julho. Especialista e Mestra em Direito Constitucional. Autora das obras: Advogando em Mandado de Segurança e A Separação dos Poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos. Diretora Nacional da Coalizão Nacional de Mulheres.

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