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Licença paternidade: Quando o carnaval dura mais que presença paterna

Congresso perde prazo do STF para regulamentar licença-paternidade. Inércia legislativa mantém pai com apenas 5 dias, menos que período carnavalesco.

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Atualizado às 15:26

O prazo venceu. Em 8/7/25, esgotaram-se os 18 meses concedidos pelo STF para que o Congresso Nacional cumprisse seu dever constitucional de regulamentar a licença-paternidade. A data marca não apenas o fim de uma expectativa, mas a consolidação de uma inércia que desnuda as prioridades de uma nação.

Enquanto isso, pais brasileiros continuam limitados aos mesmos cinco dias corridos estabelecidos pela regra transitória da CF/88 - um período que, como observou com argúcia o escritor Marcos Piangers em entrevista ao Podcast Flow, tem menos dias que o carnaval. A comparação, embora possa soar irônica, revela uma verdade desconfortável sobre nossos valores sociais: dedicamos mais tempo oficial à festa do que ao fundamental direito de um pai estar presente nos primeiros momentos da vida de seu filho.

A omissão que se tornou costume

A decisão do STF na ADO 20, proferida em dezembro de 2023, reconheceu o que já era evidente: existe omissão inconstitucional na ausência de norma específica para disciplinar a licença-paternidade. O ministro Luís Roberto Barroso, relator da ação, destacou que a diferença entre os prazos das licenças maternidade e paternidade revela desequilíbrio de gênero e impacto negativo sobre os direitos das crianças.

A tese firmada pela Corte foi cristalina: "Existe omissão inconstitucional relativamente à edição da lei regulamentadora da licença-paternidade prevista no art. 7º, XIX, da Constituição." Estabeleceu-se, então, prazo de 18 meses para que o Congresso sanasse a omissão, sob pena de o próprio STF fixar os parâmetros do direito.

O prazo não foi apenas uma sugestão ou recomendação judicial. Foi uma determinação que traduzia a urgência de um direito fundamental negligenciado por mais de três décadas. Tratava-se de uma última oportunidade para que o Poder Legislativo demonstrasse capacidade de resposta às demandas constitucionais mais elementares.

Projetos que dormem enquanto pais trabalham

A inércia do Congresso não decorre da ausência de propostas. Pelo contrário: as gavetas parlamentares acumulam dezenas de projetos sobre o tema. Na Câmara dos Deputados, há requerimento de urgência para apreciação de projeto aprovado pelo Senado ainda em 2008, de autoria da ex-senadora Patrícia Saboya, que propõe ampliar o período para 15 dias. O texto, apresentado há 17 anos, conta com mais de 100 propostas apensadas.

No Senado Federal, tramita projeto mais ambicioso do senador Jorge Kajuru, aprovado na Comissão de Direitos Humanos em 2024. O texto, relatado pela senadora Damares Alves, prevê licença-paternidade de até 75 dias e institui o chamado "salário-parentalidade". A proposta aguarda análise da CCJ, sob relatoria do senador Alessandro Vieira.

São iniciativas que, individualmente, representam avanços significativos. Coletivamente, porém, ilustram a fragmentação e a incapacidade de articulação política em torno de uma pauta que deveria ser consensual. Enquanto isso, a cada dia que passa, milhares de pais brasileiros são privados do direito fundamental de acompanhar os primeiros momentos de vida de seus filhos.

A dimensão constitucional da paternidade

A licença-paternidade não é uma concessão ou benesse estatal. É direito fundamental previsto no art. 7º, inciso XIX, da CF/88, inserido no capítulo dos direitos sociais dos trabalhadores urbanos e rurais. Sua fundamentação transcende a esfera individual, alcançando dimensões coletivas relacionadas à proteção da família, ao desenvolvimento integral da criança e à promoção da igualdade de gênero.

Quando a CF estabeleceu esse direito, o fez compreendendo que a presença paterna nos primeiros momentos de vida é essencial para a formação de vínculos afetivos duradouros. A neurociência contemporânea confirma essa intuição constitucional: os primeiros meses de vida são decisivos para o desenvolvimento cerebral e emocional da criança.

Reduzir a paternidade a cinco dias corridos não é apenas uma injustiça individual com o trabalhador pai. É uma violência simbólica contra a própria noção de família que a CF se propôs a proteger. É também uma forma disfarçada de perpetuar desigualdades de gênero, sobrecarregando as mães com responsabilidades que deveriam ser compartilhadas.

O custo social da omissão

A persistência dessa omissão constitucional produz efeitos que transcendem a esfera jurídica. Em primeiro lugar, alimenta a perpetuação de estereótipos de gênero que reservam à mulher o papel exclusivo de cuidadora, enquanto limitam o homem à função de provedor. Essa divisão artificial compromete tanto o desenvolvimento pleno da paternidade quanto a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho.

Em segundo lugar, a ausência de regulamentação adequada fragiliza os vínculos familiares justamente no momento em que eles mais precisam ser fortalecidos. A presença paterna nos primeiros meses de vida não é apenas desejável - é fundamental para o desenvolvimento saudável da criança e para a construção de relações familiares equilibradas.

Por fim, a omissão legislativa envolvendo direitos fundamentais alimenta um ciclo vicioso de descrédito institucional. Quando o Congresso Nacional se mostra incapaz de cumprir determinações constitucionais básicas, toda a arquitetura democrática é abalada.

Perspectivas e responsabilidades

Com o vencimento do prazo estabelecido pelo STF, a responsabilidade pela definição dos parâmetros da licença-paternidade pode ser assumida diretamente pela Corte. Essa perspectiva, embora constitucionalmente legítima, representa uma clara demonstração de fracasso do sistema de freios e contrapesos.

O ideal seria que o Congresso Nacional, ainda que tardiamente, assumisse sua responsabilidade constitucional. Os projetos em tramitação oferecem caminhos viáveis para essa regulamentação, desde que haja vontade política para transformá-los em realidade.

A sociedade civil, por sua vez, tem papel fundamental na pressão por essa regulamentação. Movimentos como a CoPai - Coalizão Licença Paternidade demonstram que existe mobilização social em torno do tema. Cabe intensificar essa pressão, transformando a licença-paternidade em pauta prioritária da agenda política nacional.

Uma escolha civilizatória

A regulamentação da licença-paternidade é, em última análise, uma escolha civilizatória. É a decisão entre perpetuar um modelo social que fragiliza vínculos familiares ou construir uma sociedade que valoriza efetivamente a presença paterna na formação das novas gerações.

Marcos Piangers, em sua lúcida observação sobre a licença paternidade ter menos dias que o carnaval, captou com precisão essa distorção de prioridades. Não se trata de diminuir a importância das manifestações culturais, mas de questionar uma sociedade que dedica mais tempo oficial à festa do que ao direito fundamental de um pai estar presente nos primeiros momentos de vida de seu filho.

O Direito é sempre uma escolha. E escolher garantir aos pais brasileiros o tempo necessário para o exercício pleno da paternidade é optar por uma leitura civilizatória da CF/88. É reconhecer que família não é apenas palavra bonita no texto constitucional, mas realidade que merece proteção efetiva.

O prazo do STF venceu, mas a responsabilidade constitucional permanece. Resta saber se o Congresso Nacional terá a grandeza de assumir, ainda que tardiamente, seu papel na construção de uma sociedade mais justa e equilibrada. O futuro de milhares de famílias brasileiras depende dessa escolha.

Marco Aurélio Valle Barbosa dos Anjos

Marco Aurélio Valle Barbosa dos Anjos

Advogado trabalhista. Sócio no Valfran dos Anjos Advogados. MBA em Direito Empresarial. Pós-graduação em Trabalho e Esporte. Curso em Cambridge. Atuação destacada em contencioso, gestão e Tribunais.

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