Tipificar o narcocídio é resposta legal necessária
Um projeto de lei que define o crime de narcocídio não é apenas uma proposta legislativa; é o reflexo de um colapso anunciado.
sexta-feira, 18 de julho de 2025
Atualizado às 10:03
Um projeto de lei que define o crime de narcocídio não é apenas uma proposta legislativa; é o reflexo de um colapso anunciado. O tráfico de drogas, sob o disfarce do mercado paralelo, sustenta uma ordem criminosa com sua própria jurisdição, sua dogmática de punições e seus vereditos fatais. Não se mata apenas por lucro; mata-se por controle, por medo, por disciplina. E a sociedade, silente, já não distingue o que é exceção do que virou norma.
O narcocídio, entendido como assassinato motivado por interesses do tráfico, escancara uma tragédia já instaurada. Executam-se adolescentes por não pagarem dívidas provenientes do consumo de droga, mulheres por amarem quem não deveriam, crianças por estarem no lugar errado. Trata-se de um poder paralelo que não se oculta mais: grava, transmite, aterroriza. O cadáver, nesse contexto, não é apenas consequência; é mensagem. É instrumento pedagógico de uma pedagogia do horror.
Vivendo na sociedade do espetáculo, o narcocídio adquire um protagonismo excepcional. Nele se entrelaçam os elementos centrais de nossa decadência: as fortunas milionárias oriundas do narcotráfico, o narcisismo de uma juventude seduzida pela estética da violência e a falência dos valores morais, substituídos pela lógica imediatista da cultura do prazer. Matar, nesse cenário, é também performar. O crime torna-se mise-en-scène, com execução, plateia e reprodução infindável em redes sociais, onde a morte já não choca, mas hipnotiza.
A sedução do bandido-herói, construída midiaticamente entre músicas, gestos e mitologias urbanas, é tão instigante que facilita a arquitetura de um Estado paralelo com todos os seus órgãos de poder, inclusive o famigerado "tribunal do crime". Ali se julga, se condena e se executa. Não há promotor, nem defensor, tampouco princípio da dignidade humana. Há o domínio da força bruta como critério de justiça e a morte como veredito cotidiano. Trata-se de uma réplica sombria do Estado de Direito, em que a ausência do Estado real legitima o terror organizado.
Nomear esse fenômeno é o primeiro passo para rompê-lo. Tipificá-lo penalmente é devolver ao Estado a titularidade da lei. Onde o Estado se ausenta, o tráfico legifera. E onde o tráfico julga, não há devido processo, não há contraditório, há apenas a certeza da execução. A figura do narcocídio reconhece que tais mortes não são meros homicídios comuns. São atos políticos, manifestações de um poder soberano ilegítimo que se impõe sobre territórios inteiros.
Sob a lente psicanalítica, o narcocídio é a materialização do recalque coletivo. É a eliminação do outro como tentativa de manter coeso um sistema já fraturado. É a necropolítica travestida de rotina, em que o sujeito não vale pelo que é, mas pelo que representa no xadrez das facções. Mata-se não por quem a vítima é, mas por aquilo que ela ameaça simbolicamente: a ordem, a hierarquia, o lucro. O narcoestado não apenas mata; ele define quem pode morrer.
A aprovação do projeto de lei que cria o crime de narcocídio representa, portanto, uma ruptura simbólica com a naturalização da barbárie. E esse passo já começou a se concretizar: a proposta legislativa foi recentemente aprovada pela CCJ - Comissão de Constituição e Justiça, o que reforça sua viabilidade política e institucional, bem como a urgência de sua inserção no ordenamento jurídico. Trata-se de uma recusa a aceitar que o Estado continue a assistir passivamente à formação de tribunais de exceção armados, que impõem pena capital sem culpa formada. É, também, um gesto de luto: ao reconhecer o crime, reconhece-se que há vítimas, há perda, há dor. E essa dor não pode mais ser indiferenciada, arquivada como mais um homicídio na planilha estatística.
A omissão legislativa até hoje é, em si, uma forma de cumplicidade. Ao não nomear, o Direito silencia. Ao silenciar, consente. E ao consentir, abandona. Romper esse ciclo é imperativo. O narcocídio precisa ser punido não apenas como homicídio, mas como expressão do domínio territorial armado, como imposição da morte como linguagem de comando. Criminalizá-lo é reerguer o Estado sobre as ruínas da omissão.


