Quando a senzala grita e a casa grande se fecha
Decisões judiciais equivocadas negam proteção efetiva a superendividados. Este artigo traz uma crítica a tais decisões e aponta estratégias que levam à solução dos problemas dos devedores bancários.
terça-feira, 22 de julho de 2025
Atualizado às 12:33
Recebi esta semana a seguinte pergunta de um aluno:
"Professor, sou aluno do seu programa vitalício, e entrei com uma ação de superendividamento. No caso concreto o cliente tem 9 empréstimos consignados, mais 2 com desconto em conta corrente, o que representa 66% do seu rendimento bruto. O juiz proferiu decisão afirmando que:
"O propósito da ação de repactuação de dívidas não é, unicamente, forçar os credores a aceitar o quanto a parte devedora está disposta a pagar. Ao revés, a repactuação das dívidas tem prazo de cumprimento de 60 (sessenta) meses, de forma que a parte devedora deve criar condições concretas para que os débitos sejam saldados neste período, apresentando plano de pagamento que tenha o propósito de cumprir com as obrigações contraídas, não podendo, simplesmente, perpetuar os contratos devidos sem qualquer perspectiva concreta de pagamento, sem adotar, outrossim, critérios objetivos para atualizar o montante devido, tampouco cabe redução indiscriminada do débito principal. Além disso, o decreto 11.150/22 que regulamentou a lei 14.181/21 exclui várias modalidades de contratos do rol das dívidas suscetíveis de repactuação em decorrência de superendividamento, dentre eles os empréstimos na modalidade consignada".
Diante do exposto, INTIME-SE a parte requerente para EMENDAR a inicial, no prazo de 15 (quinze) dias, a fim de excluir da ação os negócios jurídicos e instituições que o art. 4º do decreto 11.150/22 que regulamentou a lei 14.181/21 determina, sob pena de indeferimento da inicial. Em caso de exclusão de débitos deverá, no mesmo prazo, corrigir o valor da causa a fim de corresponder ao valor total da dívida que alcance o plano de pagamento apresentado, nos termos do art. 292, II do CPC.
Nesse caso qual seria o melhor caminho?"
Segue abaixo a resposta que encaminhei ao aluno, acrescida de mais algumas considerações. Eu gostaria muito de conhecer a opinião do leitor e da leitora a respeito, pois este é um tema que precisa ser discutido, debatido, em nome da qualificação da prestação jurisdicional, que, ao menos a partir de meu ponto de vista, tem sido bastante deficiente.
Decisões como esta infelizmente têm sido frequentes. O decreto em questão é flagrantemente inconstitucional, e na prática nega o acesso à justiça a um grande número de casos que estão efetivamente em situação de superendividamento. Vou além, os termos da decisão revelam uma visão que desconhece toda a construção sociológica que está por trás das situações de superendividamento. É uma visão distorcida, que presume a má-fé do superendividado, quando um dos princípios basilares do direito é a presunção de boa-fé, ao lado da presunção de inocência.
É quase como se o devedor, ao buscar o Poder Judiciário, estivesse praticando uma afronta. É como se estivesse ousando pedir auxílio para remediar algo produzido por sua indolência. É como se a senzala estivesse pedindo clemência à casa grande.
Sei que o comentário acima não te ajuda de forma pragmática no teu caso concreto. Mas considero importante compartilhar contigo este entendimento.
Especificamente sobre o que fazer, ou sobre qual o melhor caminho a seguir: Você informa que os descontos representam 66% dos vencimentos brutos do cliente. Imagino que os consignados representem algo em torno de 35% do líquido, e que o restante sejam os empréstimos com desconto em conta corrente.
Há dois caminhos possíveis a seguir: (I) continuar com a ação de superendividamento em relação aos empréstimos não consignados, atendendo à determinação de emendar a inicial ou (II) desistir da ação. Se optar por desistir da ação, eu incluiria uma consideração/justificação crítica na linha do que lhe ofereci acima. Nunca sabemos se vai ecoar, mas sou otimista, e sempre acredito que é possível salvar uma alma perdida.
O que eu consideraria para decidir: se as parcelas de consignado representam mais da metade dos descontos, desista da ação. Do contrário, ou seja, se a maior parte é de descontos na conta corrente, continue com a ação.
Em ambos os casos, é recomendável conversar com o cliente sobre a possibilidade de requerer administrativamente o cancelamento das parcelas de empréstimo na conta corrente. Lembre, porém, que esta decisão deve ser do cliente. A boa prática da advocacia determina que a função do advogado é informar. É assegurar que o cliente tome uma decisão com base em informação técnica precisa. Que o faça ciente dos riscos. Pois o cancelamento dos descontos, por óbvio, não libera o cliente da obrigação.
Este entendimento está expresso no corpo do acórdão do REsp 1.863.973/SP, que deu origem ao Tema 1.085. Lembrando o que diz o Tema 1.085:
"São lícitos os descontos de parcelas de empréstimos bancários comuns em conta-corrente, ainda que utilizada para recebimento de salários, desde que previamente autorizados pelo mutuário e enquanto esta autorização perdurar, não sendo aplicável, por analogia, a limitação prevista no § 1º do art. 1º da lei 10.820/03, que disciplina os empréstimos consignados em folha de pagamento.
O relator Marco Aurélio Bellizze deixa claro, em suas razões de decidir, o direito ao cancelamento dos descontos em conta corrente:
Ao mutuário é dada a faculdade de revogar, a qualquer tempo, o desconto em conta-corrente de mútuo comum, assumindo, naturalmente, as consequências contratuais daí advindas de sua opção.
O exercício do direito ao cancelamento do desconto é medida que está à disposição do cliente, e que remedia, ao menos em parte, a postura de incompreensão sobre o tratamento do superendividamento, que infelizmente temos testemunhado em tantos julgados.
O correto, se a lei fosse adequadamente aplicada, é que, configurada a situação de superendividamento (o que, a toda evidência, precisa levar em conta também os empréstimos consignados), se examinasse e deferisse a antecipação parcial dos efeitos da tutela, para o fim de determinar o cancelamento, com a suspensão da exigibilidade, de todos os descontos por dívidas de consumo que superassem 30% dos vencimentos líquidos do devedor.
A iniciativa do requerimento para o cancelamento dos descontos, em um primeiro momento na via administrativa, e se necessário na via judicial, é o caminho possível para lidar com estas situações de flagrante negativa de acesso à justiça.
Com isso, a pessoa ao menos recupera minimamente sua dignidade, e abrem-se possibilidades de composição destes débitos.
Abre-se o caminho para a prática do que já há muito temos denominado de gestão de passivo bancário. Em breves linhas, esta estratégia viabiliza a solução das dívidas bancárias com base no conhecimento da dinâmica da negociação bancária. Há muitas situações de dívidas de empréstimo pessoal, cartão de crédito, cheque especial, e também de capital de giro de empresas, em que se liquidam os débitos com descontos de mais de 90%.
A abordagem do gestão do passivo bancário requer uma atuação profissional, uma advocacia especializada, que leva em conta como os bancos pensam, como os bancos funcionam.
Em nossa prática profissional, temos observado que a via judicial funciona como um complemento à gestão do passivo bancário. E como temos ensinado a nossos alunos há mais de 10 anos, é a integração da atuação processual responsável com a atuação estratégica que gera os melhores resultados para nossos clientes. E por via de consequência também para o profissional que se dedica a esta importante área de atuação na prática da advocacia.
Em suma, o desconhecimento, ou o que é ainda pior, o conhecimento enviesado, pode e deve ser combatido. Com serenidade e com estratégia validada no dia a dia da advocacia. Porque enquanto houver uma prática jurídica que lembre uma casa grande distante e implacável, seguiremos ouvindo o eco dos gritos abafados de uma senzala que já deveria ter ficado no passado.


