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Mulher trans pode ser vítima do crime de feminicídio?

O embate existente entre sexo e gênero por vezes causa conflito aparente entre normas.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Atualizado às 09:56

Começo esse artigo com uma notícia assustadora: o Brasil não é o país com o maior PIB do mundo, nem é o país com o maior IDH do mundo, mas é o país com o maior número de pessoas trans assassinadas no planeta há 17 seguidos anos, segundo o "Dossiê: Registro Nacional de Mortes de Pessoas Trans no Brasil em 2024: da Expectativa de Morte a um Olhar para a Presença Viva de Estudantes Trans na Educação Básica Brasileira" e divulgado pela Agência Brasil, agência de notícias do governo Federal.

Para entendermos se mulheres trans podem ser vítimas do crime de feminicídio, primeiro precisamos entender se as mulheres trans podem ser protegidas pela lei Maria da Penha. Segundo o caput do art. 5º da lei Maria da Penha, a lei protegerá a mulher "contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero". A lei Maria da Penha é voltada para mulheres pelo fato de o art. 1º assim prever, já o art. 5º é claro quanto ao fato de o gênero feminino importar, não o sexo feminino. É importante apontar que o parágrafo único do art. 5º da lei Maria da Penha diz essa proteção se dá, independentemente da orientação sexual.

Segundo decisão do STJ pelo REsp no 1.977.124/SP, havendo inclusive decisão do STF através da ADIn - Ação Direta de Inconstitucionalidade no 4.275/DF e do RE no 670.422/RS 12 pela mudança de nome e gênero do registro civil masculino para o feminino, independentemente da comprovação cirúrgica de redesignação de sexo.

Neste ano o STF analisou o MI - Mandado de Injunção 7.452, sendo entendido pelo STF que a lei Maria da Penha se aplica a mulheres trans.

O grande problema se dá no fato de o art. 121-A do CP não fazer menção ao gênero feminino, mas sim ao sexo feminino, ou seja, se a pessoa é do gênero que escolheu ou do sexo por questões biológicas. O que diz o artigo 121-A do CP:

Feminicídio (Incluído pela lei 14.994, de 2024)

Art. 121-A. Matar mulher por razões da condição do sexo feminino: (Incluído pela lei 14.994, de 2024)

Pena - reclusão, de 20 a 40 anos. (Incluído pela lei 14.994, de 2024)

Percebam que a pena é muito maior do que o crime de homicídio, prevista no art. 121 do CP:

Art. 121. Matar alguém:

Pena - reclusão, de seis a vinte anos.

Mas em relação ao crime de feminicídio, cabe o fato de uma mulher trans ser o sujeito passivo, ou seja, a vítima? Primeiro vamos verificar como os tribunais tem julgado esses casos.

Em 2019 a 3ª turma do TJ/DF através do acórdão 1.184.804, 20180710019530RSE, cujo relator foi o douto desembargador Waldir Leôncio Lopes Júnior, sim, a mulher trans é considerada como vítima em caso de feminicídio de uma mulher trans. Processo: RSE 2018 07 1 001953-0.

Em 2021 um homem foi condenado pelo TJ/SC por feminicídio que havia sido praticado em 2019 cuja vítima era uma mulher trans.

A 5ª turma do STJ em 2020, em votação unânime, não reconheceram habeas corpus (HC 541.237) no qual um homem, acusado de feminicídio de uma mulher trans, solicitava a liberdade.

Já em 2023 a 6ª turma do STJ entendeu que a mulher trans pode sim ser vítima do crime de feminicídio.

Entretanto, mesmo diante de tais decisões inclinadas para que a mulher trans possa sim ser considerada como vítima do crime de feminicídio pesa o fato de que o CP prevê que o fato se dá diante do sexo feminino, não do gênero. Aqueles que defendem que "A violência foi praticada no âmbito doméstico ou familiar, logo se aplica a lei Maria da penha e por isso sim seria feminicídio" bem, o homem também pode ser vítima de violência doméstica ou familiar, o que define na lei Maria da penha que a mulher trans possa ser vítima de violência doméstica, familiar ou íntima de afeto é o gênero feminino, como foi explicado neste texto.

A interpretação de que "Sexo pode ser entendido como gênero" é totalmente equivocada e como analogia em malam partem, ou seja, que prejudica o réu, é proibida. O CP não admite a analogia em malam partem, somente em bonam partem, ou seja, que beneficie o réu.

Não há até o momento uma decisão do STF sobre o caso concreto, ou seja, se uma mulher trans poderia ser considerada como vítima do crime de feminicídio ou do crime de homicídio. Lembrando que caso futuramente o STF, através de súmula vinculante (Não por súmula comum) determinar que mulheres trans sejam consideradas vítimas de crime de feminicídio tal possível futura súmula vinculante irá ter efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública direta e indireta, nas esferas Federal, estadual e municipal, conforme prevê o parágrafo § 1º do art. 103-A da Constituição Federal da República Federativa do Brasil.

O fato de não haver uma súmula vinculante sobre o tema, mas sim jurisprudências de tribunais, faz com que qualquer magistrado possa hoje entender que uma mulher trans ser assassinada por questões de gênero não ser entendido o crime como feminicídio, mas sim como homicídio cuja pena é muito menor e que, por isso, beneficie o réu.

Outro caminho seria os legisladores Federais alterarem, com a sanção do presidente da República, o art. 121-A do CP a palavra" sexo" para "gênero". Há outros crimes que precisam de tal mudança, como ameaça, perseguição (Stalking), ou seja, a frase "sexo feminino" no código penal precisa ser alterada para "gênero feminino", de tal forma tipos penais e aumentos de pena alcançarão mulheres trans que são assassinadas pelo fato de a motivação criminosa se dar pelo gênero feminino.

Então respondendo a pergunta do título desse artigo, não, infelizmente uma mulher trans ser assassinada por questões de gênero ainda não está definido como sendo crime de feminicídio, mas sim homicídio.

Enquanto o STF não for provocado através de ADIM ou de outras formas que uma ação penal chegue ao Supremo, ou se não houver mudança legislativa, infelizmente condenados de assassinarem mulheres trans poderão ser condenados por homicídio e não por feminicídio e o Brasil continuará sendo o país com o maior número de trans sendo assassinadas no mundo.

Só sente a dor quem pode sofrer e quem está escrevendo esse texto não pode sofrer tal dor, já que sou um homem CIS gênero, casado e pai, mas que entende que todos devemos ter dignidade e tratar o próximo como Cristo nos ensinou. Espero que deputados Federais e senadores CIS reflitam sobre isso e mudem tudo o que estiver definido no CP de "sexo feminino" para "gênero feminino". Sim, mulheres trans estão pedindo socorro para quem talvez não queira ouvir.

Wagner Luís da Fonseca e Silva

Wagner Luís da Fonseca e Silva

Bacharel em Direito, aprovado na OAB. Pós-graduado em Direito Militar pelo Instituto Venturo. Pós-graduado em Gênero e Direito pela Emerj. MBA em Vioência Doméstica pela FACEC. Policial Militar.

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