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A ascensão dos catálogos musicais como ativos estratégicos

Guilherme Naoum Pertence Constante e Tairla Maria Aragão Pimentel

Cresce no Brasil o mercado de compra e venda de catálogos musicais, impulsionado por fundos e estruturas jurídicas cada vez mais sofisticadas.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Atualizado em 25 de julho de 2025 12:19

Quem acompanha as notícias da indústria musical provavelmente já se deparou com manchetes envolvendo artistas icônicos e os valores impressionantes obtidos com a venda de seus catálogos musicais. Embora pouco se fale do mercado local, a venda de catálogos musicais continua ganhando popularidade no Brasil e no mundo. O Digital Music News aponta que, apenas em 2024, os investimentos na indústria musical se aproximaram dos 5 bilhões de dólares, movimento fortemente impulsionado pela compra e venda de catálogos musicais.

Entre as transações que marcaram 2024, destacaram-se a aquisição histórica realizada pela Sony Music, que comprou 50% do catálogo de Michael Jackson por um valor estimado em US$ 600 milhões; a compra do Hipgnosis Songs Fund, listado na bolsa de valores de Londres e dono do catálogo de artistas como Shakira e Red Hot Chili Peppers, pela Blackstone, um dos maiores fundos de private equity do mundo; e a criação da joint venture entre WBD - Warner Bros. Discovery e Cutting Edge Group, criada com o intuito de maximizar o potencial de distribuição e geração de receita do portfólio musical da WBD, que contempla 400 mil composições e trilhas sonoras, dentre elas as das franquias Harry Potter e Senhor dos Anéis.

Do panorama global, percebe-se que essas operações se dão das mais diversas formas, seja por meio da celebração de contratos de cessão diretamente com o artista ou seus herdeiros, da aquisição de ações ordinárias de fundo listado em bolsa, ou da criação de joint ventures. Fato é que esse mercado tem se consolidado por meio de transações cada vez mais sofisticadas, impulsionadas especialmente pela atuação de agentes especializados, como fundos de investimento focados em ativos alternativos.

Diante desse contexto, surgem dois questionamentos: como se operacionaliza a venda de um "catálogo musical" e qual o nível de maturidade deste mercado no Brasil? Para entender em que consiste um catálogo e, portanto, o que está sendo transacionado em operações dessa natureza, é necessário revisitar alguns conceitos. Primeiro, é preciso diferenciar a obra musical do fonograma. Enquanto a obra musical consiste em qualquer canção que contenha letra e melodia, ou apenas melodia, o fonograma é a obra musical gravada.

Para facilitar a visualização, basta pensar que uma mesma obra pode ser gravada em diferentes versões: acústica, ao vivo ou em estúdio, por exemplo. Cada uma delas resultará em um fonograma diferente, de modo que, de uma única obra, poderão advir diversos fonogramas. Nas vendas de catálogos, esses direitos autorais e conexos podem ser negociados em conjunto ou isoladamente, a depender da situação concreta. Como, em regra, as editoras são as responsáveis pela gestão da obra musical e as gravadoras dos fonogramas, as negociações envolvendo os direitos autorais raramente são tratadas diretamente ou unicamente com os artistas participantes dessas músicas.

Outro objeto importante de análise é a precificação desses catálogos. O valuation pode se dar de várias formas e há milhares de variáveis a serem consideradas, mas o habitual é que as ofertas não superem a projeção do que aquele catálogo rentabilizaria pelos próximos cinco a dez anos. Claro que tudo depende do catálogo e do artista. Tratando-se de um artista de abrangência internacional ou de longa expectativa de sucesso do ativo, certamente o múltiplo será maior.

Contudo, por se tratar de um investimento de risco, a expectativa de retorno nunca será garantida. É possível, por exemplo, que o intérprete ou autor cometa um crime e o valor desse acervo seja contaminado, da mesma forma que também é possível que um lançamento futuro bem-sucedido daquele artista alavanque todo o seu catálogo antigo, maximizando os lucros do comprador ou investidor. O investimento nesse tipo de ativo é considerado de risco moderado a alto por especialistas, e sua rentabilidade está sujeita às mais diversas variáveis.

Mas, afinal, qual é a vantagem para cada lado dessa negociação? Do lado do vendedor, a operação faz sentido na medida em que, ao vender seu catálogo musical, ele pode eliminar a incerteza sobre os rendimentos futuros de royalties e as instabilidades do mercado, além de gerar caixa para continuar sua produção com tranquilidade. Para o comprador, a operação tem sentido financeiro de médio a longo prazo, pois ele paga imediatamente um valor com desconto e lucra com a exploração exclusiva das obras ou fonogramas adquiridos até o decurso do prazo legal de proteção, conferido pelo art. 43 da lei 9.610/1998. Após esse prazo, a obra ou fonograma cai em domínio público. Além disso, a venda não é a única opção de uso desses ativos; é possível antecipar recebíveis ou utilizar um catálogo como garantia em outras operações do mesmo segmento ou de outros.

No Brasil, embora o mercado ainda não seja maduro e tão aquecido quanto o estrangeiro, caminhamos para um cenário de grandes movimentações financeiras promovidas por fundos de investimento. Um exemplo é a oferta pública de CRs - Certificados de Recebíveis realizada pelo fundo Hurst, que possibilitou aos investidores brasileiros diversificar suas carteiras por meio do investimento em royalties decorrentes da exploração de catálogo internacional com canções interpretadas por nomes como Beyoncé e Justin Bieber. O aporte mínimo nesse fundo é de R$ 10 mil, com uma taxa de retorno estimada em 7%, e a rentabilidade do investimento depende do número de vezes que as músicas do catálogo são tocadas mundialmente, seja em plataformas de áudio ou vídeo.

Diante desse cenário, fica evidente que a compra e venda de catálogos musicais configura uma operação de ganho potencialmente mútuo, porém assimétrica em seus benefícios imediatos. Enquanto os vendedores obtêm liquidez presente e mitigação de riscos futuros, os compradores assumem uma posição estratégica de longo prazo, transformando fluxos criativos em ativos financeiros com horizonte temporal definido pelo marco legal do direito autoral.

A experiência internacional e os primeiros movimentos no mercado brasileiro, como o caso emblemático do fundo Hurst, demonstram que a sofisticação dessas operações tende a crescer paralelamente à profissionalização do setor. Seja por meio de CRs, joint ventures ou estruturas societárias especializadas, o modelo demandará sempre alinhamento preciso entre expectativas de retorno e prazos contratuais; mecanismos de governança que contemplem desde cláusulas de permanência artística até métricas transparentes de apuração de royalties; e assessoria jurídica especializada capaz de navegar tanto a complexidade regulatória quanto as nuances criativas inerentes ao ativo.

O equilíbrio dessa equação, onde criatividade e cálculo financeiro precisam coexistir, é o que determina o sucesso de operações que, mais do que transações comerciais, representam pontes entre o valor cultural da música e sua materialização como instrumento de investimento. Nesse sentido, o desenvolvimento do mercado brasileiro dependerá tanto da maturidade dos agentes financeiros quanto da capacitação dos criadores para negociar ativos cujo valor transcende planilhas, mas que nelas precisa encontrar parâmetros claros de mensuração.

Guilherme Naoum Pertence Constante

Guilherme Naoum Pertence Constante

Advogado inscrito na OAB/DF sob o nº 62.896. Sócio da Sociedade de Advogados Sepúlveda Pertence e Bacharel em Direito pelo UniCEUB. Cursos em Responsabilidade Civil e Propriedade Intelectual, atua predominantemente na advocacia contenciosa nos Tribunais Superiores, principalmente nas áreas de Direito Tributário, Cível e Direito Processual Civil.

Tairla Maria Aragão Pimentel

Tairla Maria Aragão Pimentel

Sócia do Vidal e Aragão Advocacia, mestranda em Direito Comercial pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP) e coordenadora do Núcleo de Estudos em Propriedade Intelectual da FD-USP (2024).

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