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Teoria crítica dos direitos humanos - Um brevíssimo resumo - Parte I

É imperioso se assumir o conflito, o dissenso, a luta permanente como parte da construção (e eterna reconstrução) do rol de direitos humanos.

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Atualizado às 14:41

Estimam-se 300 mil pessoas mortas na Independência do Haiti (1791-1804), mesmo número de mortos da Revolução Francesa (1789-1799), na qual 18 mil foram guilhotinados, inclusive membros da realeza e ex-insurgentes. 

Das revoluções burguesas do século XVIII à luta contra a escravidão; dos embates por direito ao voto das mulheres à greve de trabalhadores na Primavera dos Povos no Século XIX, a história das conquistas de direitos é permeada por violências e injustiças e forjada na luta, sangue, e suor de milhares de pessoas

Nenhuma Carta de Direitos, seja redigida na Constituição dos estados-nação seja nos TIDH - Tratados Internacionais de Direitos Humanos, é proveniente de uma mudança espontânea de consciência da classe dominante.

A criação de direitos humanos e a inclusão de novos sujeitos em seu arcabouço normativo faz parte de um embate constante - com avanços e retrocessos - e só pode ser apreendida a partir de uma análise sob o contexto sociopolítico de sua construção.

Com isso, não se nega a importância das construções filosóficas acerca da inquietude a respeito da liberdade, igualdade e justiça que tem fomentado a consciência humana. Apenas, se destaca que foram os embates sociais os responsáveis por agir diante desta consciência e reivindicá-las a partir de uma lógica de direitos humanos. 

A narrativa tradicional, subdivide de forma artificial as gerações (ou dimensões) de direitos humanos, criando uma ideia de continuidade com foco no contexto europeu, e, dele próprio, excluindo acontecimentos extremamente importantes.

Se no século XVIII, haitianos e franceses, cada uma em seu território, lutaram por liberdade, não foi também esta a luta travada por pessoas negras (escravizadas e libertas) contra a escravidão no Brasil e nos Estados Unidos durante o século XIX? Porque, então, a luta pela abolição é ignorada nesta narrativa? (FIGUEIREDO, 2023)

Quantos manuais de direito constitucional citam a Constituição Mexicana de 1917 como a primeira a conter direitos sociais, mas não exploram o fato dela ter sido fruto de uma Revolução, assim como a Constituição Russa do ano seguinte. E mais, quantos destes relatos tratam da Primavera dos Povos - um conjunto amplo de revoltas, insurgências e greves - que varreu a Europa no século XIX em busca de direitos para trabalhadores e trabalhadoras pauperizados?

É necessário, portanto, complexificar a narrativa, e entender que grandes teóricos conseguem absorver o espírito de seu tempo e, ao mesmo tempo, nele estão insertos. Quando Hobbes individualiza pela primeira vez os direitos de liberdade, ele, um monarquista, legitima sua tese indissociavelmente ao poder superior dos Reis (DOUZINAS, 2009)

Locke traz o debate para uma abordagem jusnaturalista na qual os homens possuem direitos de liberdade pela sua própria humanidade e estes seriam um limite a ser imposto contra o Estado. Respondia ao espírito dos burgueses que associavam o clero e a nobreza à corrupção e como empecilho aos seus interesses. Ao mesmo tempo, ele investia na escravidão e era a favor do trabalho de crianças e idosos. (GALLARDO, 2021)

Marx acompanhou ativamente a luta operária na Europa do Século XIX, o famoso Manifesto Comunista foi um produto encomendado pela Liga dos Comunistas, uma organização dos trabalhadores. Quando ele trata da luta de classes e das condições materiais de existência dos operários, estava acompanhando e vivenciando tais embates. Quando faz a crítica aos sujeitos dos direitos individuais, os burgueses, estava diante das precárias condições de vida dos trabalhadores e das abordagens violentas que geravam prisões e mortes dos que lutavam.

O quão leviano, portanto, é se extrair de um lema revolucionário do Século XVIII, supostas etapas de consolidação dos direitos humanos? As primeiras constituições a conterem direitos de liberdade foram Constituição dos Estados Unidos de 1787 e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão Francesa de 1789? E a Carta do Mandê (atual república do Mali) que em 1236 previa o direito à vida, e determinava que não se maltratassem nem as mulheres, nem as pessoas escravizadas? E os Editos de Ashoka, imperador indiano de 200 anos antes de Cristo, que previam um judiciário independente e justo e a necessidade de bem-estar social para idosos, pobres e prisioneiros? (PANNIKAR, 2004).

Importante, portanto, entender que sim há necessidade de se conhecer a história da independência dos Estados Unidos e da Revolução Francesa porque os documentos dali originados influenciaram inúmeras outras Constituições e Cartas de Direitos, inclusive a Constituição do Império do Brasil de 1824 e a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891. Mas não porque sejam as primeiras, ou os frutos de consciência superiores, ou sequer porque sejam odes à liberdade. Os Estados Unidos da América só aboliram a escravidão em seus territórios em 1864 e reconheceram o direito ao voto das mulheres em 1920. A França manteve escravidão em suas colônias até 1848 e só reconheceu o direito ao voto das mulheres em 1944 - 150 anos após ter guilhotinado Olympe de Gouges, revolucionária sufragista.

Avanços e retrocessos na seara dos direitos humanos são parte da história constitucional dos países e precisam de um olhar sobre eles para que se perceba a importância de cada agente na formação destes direitos. A formação de direitos humanos se utiliza de uma multiplicidade de agentes: ativistas, movimentos sociais, acadêmicos, opinião pública, setor cultural e também de servidores públicos capazes de explorar as fissuras do Sistema Jurídico-Político para efetivar direitos. 

Para tais agentes entenderem o poder e a responsabilidade em suas mãos é preciso uma mudança de narrativa nas faculdades de Direito, com a valorização do debate crítico. É imperioso se assumir o conflito, o dissenso, a luta permanente como parte da construção (e eterna reconstrução) do rol de direitos humanos.

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DOUZINAS, Costa. O fim dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009.

FIGUEIREDO, Ivanilda. Século XIX: cem anos de luta por liberdade esquecidos pelo direito constitucional brasileiro. In: BARBOZA, Heloisa; MELLO, Cleyson; SIQUEIRA, Gustavo; CUNHA, José Ricardo (org.). Teoria e fundamentos do direito - o futuro do direito. Rio de Janeiro: Processo, 2022, p. 265-284.

GALLARDO, Helio. Direitos humanos como movimento social: para uma compreensão popular das lutas por direitos humanos. Org.: Manuel Eugénio Gándara Carballido; Trad. Fredson Oliveira Carneiro [et al.]. Rio de Janeiro: Faculdade Nacional de Direito, 2019. p. 28-114.

MOYN, Samuel. The last utopia: human rights in history. New York: Harvard University, 2010.

PANIKKAR, Raimon. Seria a noção de direitos humanos um conceito ocidental? In: BALDI, Cesar Augusto. Direitos Humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

Ivanilda Figueiredo

Ivanilda Figueiredo

Professora Adjunta da Faculdade de Direito da UERJ. Diretora de Ensino, Articulação e Incidência Política da Tangará - Cultura em Direitos Humanos. É doutora em direito constitucional pela PUC-Rio.

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