Entre a cruz e a espada
Reflexões sobre a proibição de uso de farda em interrogatório no bojo de ação penal em curso no STF.
quarta-feira, 30 de julho de 2025
Atualizado às 12:35
Mais um capítulo foi escrito no âmbito dos processos que tramitam em desfavor de acusados da tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, ocorrida no ano de 2022. Para auxiliar a compreensão sobre o tema, cumpre esclarecer que, em razão do número de envolvidos, a denúncia foi dividida em núcleos, a fim de facilitar o processamento e o julgamento do caso. Assim, compete ao STF apreciar todos os processos, ainda que não haja o julgamento conjunto em um mesmo procedimento.
Nesta lógica, foram criados cinco núcleos: (a) núcleo 1, que compreende oito réus, considerados como o centro da articulação golpista, (b) núcleo 2, que abarca réus considerados responsáveis pela coordenação operacional das ações, (c) núcleo 3, que contempla réus acusados de ações coercitivas, (d) núcleo 4, composto por réus acusados de disseminar narrativas falsas com objetivos estratégicos, (e) núcleo 5, que inclui réu acusado de propagar desinformação. Assim, cada eixo encontra-se em fase processual distinta.
Especificamente em relação ao núcleo 3, os réus foram interrogados recentemente, no dia 28/7. Na oportunidade, por força de determinação do ministro Alexandre de Moraes, dois réus, ambos tenentes-coronéis, foram compelidos a retirar a farda que vestiam a fim de que fossem interrogados, sob a justificativa de que a acusação era contra militares e não em face do exército.
O veto ao uso da farda para interrogatório, por parte dos réus, gerou debates e dividiu opiniões. Se, por um lado, a medida visa dissociar a imagem dos acusados da instituição, a conclusão não é uníssona diante de outros argumentos jurídicos, que poderiam tutelar o uso da vestimenta.
No caso dos militares, o uso de uniformes é regulado pela lei 6.880/1980, que dispõe sobre o Estatuto dos Militares. Entre os seus dispositivos, o art. 50, inciso IV, alínea h) prevê que o fardamento é direito do militar, observadas as condições e limitações impostas por legislação e regulamentação específica. Por sua vez, o art. 73, parágrafo único, alínea a) dispõe que o uso de uniforme é prerrogativa do militar. Ainda, o art. 77, §1º, elenca os casos nos quais é proibido ao militar o uso do uniforme: (i) em manifestação de caráter político-partidária, (ii) em atividade não-militar no estrangeiro e (iii) na inatividade.
Outra normativa sobre o tema é a portaria - C Ex 2.428, de 20/2/25. Contudo, o ato normativo apenas aprova o Regulamento de Uniformes do Exército, sem mencionar hipóteses nas quais seria vedado o uso da farda.
Nesta lógica, torna-se tarefa hercúlea identificar no cenário jurídico contemporâneo embasamento legal para fundamentar a decisão. Inclusive, observa-se que não foram mencionados argumentos nesta seara, o que mitiga o princípio da legalidade, também corolário do Estado Democrático de Direito.
É certo que a ação penal 2.696 materializa o combate à tentativa de golpe de Estado, o que, por si, carrega um valor simbólico inestimável. Por mais este motivo, reforça-se a necessidade de observância ao devido processo legal, que contempla decisões fundamentadas no ordenamento jurídico pátrio.
A título ilustrativo do perigo de situações opressoras, é sempre válido lembrar o capítulo 68 da obra "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis. Nele, Brás Cubas narra a cena na qual encontra Prudêncio, antigo escravo de seu pai, que havia sido libertado, chicoteando seu escravo. Segundo o defunto narrador, "era um modo que Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas - transmitindo-as a outro". Observadas as devidas adaptações, a conclusão a que se chega é que não se deve falar a mesma língua de quem está à margem da lei.
Em todo caso, argumento relevante a fundamentar a proibição do uso da farda em interrogatório no Supremo perpassa pelo afastamento do militar do cargo. Assim, parece razoável distinguir a situação na qual o militar está privado do exercício de suas funções dos casos em que é apenas réu em processo penal, mas permanece no exercício de suas atribuições.
O fundamento da distinção traçada pode ser extraído do art. 44, §2º, da lei 6.880/1980, segundo o qual o militar afastado do cargo ficará privado do exercício de qualquer função militar até a solução do processo ou das providências legais cabíveis. Nesta medida, uma vez afastado do exercício do cargo revela-se razoável a proibição de uso de vestimenta a ele inerente.
Seja como for, é certo que a restrição a direito fundamental exige previsão em lei, além de decisão motivada, a demandar o ônus argumentativo do magistrado. A peculiaridade do caso concreto reforça a exigência, que, inobservada, situa os juristas e a sociedade na gíria popular - entre a cruz e a espada.


