A encruzilhada da dignidade humana: Entre a exploração e a busca pela caridade
Exploração sexual infantil, trabalho análogo à escravidão, por onde anda a caridade?
sexta-feira, 1 de agosto de 2025
Atualizado em 31 de julho de 2025 14:54
A Encíclica Rerum Novarum, publicada pelo Papa Leão XIII, em 1891, é um documento fundamental que aborda a questão do direito dos trabalhadores e da justiça social. A dignidade da pessoa humana e a caridade são temas centrais dessa Encíclica. A Rerum Novarum enfatiza a importância da dignidade da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus. Essa dignidade é inerente a todos os seres humanos, independentemente de sua condição social, econômica ou cultural. A Encíclica destaca que a dignidade do trabalhador é fundamental e deve ser respeitada e protegida.
A caridade é um tema central da encíclica. Ela enfatiza a importância da caridade como uma virtude que deve guiar as relações entre os seres humanos. A caridade é vista como uma forma de amor que se manifesta em ações concretas em favor dos outros, especialmente os desacolhidos. O legado de Leão XIII reverbera nos pontificados subsequentes, e figuras como o Papa Francisco continuaram a clamar por um compromisso autêntico com a justiça social e com a dignidade da pessoa humana, seguido hoje pelo Papa Leão XIV.
No entanto, um sentimento profundo de tristeza nos assola quando nos deparamos com a brutal realidade da exploração sexual infantil, uma chaga aberta que desafia nossa consciência e questiona os fundamentos de nossa sociedade. Este horror, que ganha contornos ainda mais dramáticos em locais como a Ilha de Marajó, no Pará, com os piores índices de abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes do Brasil, é um grito silenciado que precisa ecoar. A premiada cineasta Marianna Brennand, em seu filme, corajosamente lança luz sobre a violência sofrida e a exploração infantil, questionando o "Silêncio das Inocentes". (O Estado de São Paulo - C2 - 17/5/2025).
Os dados oficiais revelam uma epidemia de violência. Em 2022, o Brasil registrou uma média de 124 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes por dia. Em 68,7% dos casos, o abuso ocorreu na residência da vítima, transformando o lar, que deveria ser um refúgio, no palco de atrocidades. Na Ilha de Marajó, entre 2018 e 2022, foram registrados 1.094 casos de violência sexual, sendo 84,84% de estupro de vulnerável. As vítimas, em sua maioria meninas adolescentes com baixa escolaridade, são presas fáceis em um ciclo de vulnerabilidade social e ausência do Estado. O documentário "Manas", premiado em Veneza, ao abordar com sensibilidade este tema, nos força a confrontar a brutalidade e a perguntar: onde está a justiça social, por onde anda a dignidade humana e, acima de tudo, onde está a Caridade?
Esta mesma pergunta ressoa quando nos deparamos com a persistência do trabalho análogo à escravidão, uma exploração do homem pelo homem que, há séculos, mancha a nossa história. A escravidão, como nos ensina a historiadora e professora Emilia Viotti da Costa, deixou traços indeléveis na herança cultural e nas condições sociais do Brasil. A mentalidade escravocrata, infelizmente, ainda se manifesta de formas contemporâneas e cruéis. (Da Senzala à Colônia - Ed Unesp - 2010 - 5° Ed.)
De acordo com a SIT - Secretaria de Inspeção do Trabalho, os números do trabalho escravo contemporâneo são alarmantes. Em 2023, o Brasil resgatou 3.190 trabalhadores de condições análogas à escravidão, o maior número dos últimos 14 anos. Em agosto de 2024, em uma única operação, 593 pessoas foram libertadas, com mais de 70% delas na agropecuária. O perfil das vítimas evidencia a face da desigualdade: 83% dos resgatados em 2022 se autodeclararam negros e mais da metade são oriundos da região Nordeste, muitos com baixo ou nenhum grau de escolaridade.
O setor doméstico, como citado no texto original, é um capítulo particularmente perverso dessa história. A vulnerabilidade quanto à língua, cultura e ao território, como aponta Erika Sabrina F. Azevedo, aprisiona ainda mais a vítima ao seu algoz, restringindo suas possibilidades de contestação e pedido de ajuda. (Erika Sabrina F. Azevedo, Trabalho escravo contemporâneo. São Paulo - Ed. Dialética, 2022).
Diante deste cenário desolador, a pergunta "por onde anda a Caridade?" não é um lamento vazio, mas uma convocação à ação. A caridade, no sentido mais profundo evocado pela Rerum Novarum, não se limita à esmola, mas se traduz em um compromisso ativo com a justiça. E, felizmente, ela se manifesta. Vemos a caridade em ação no trabalho incansável de ONGs como a Repórter Brasil e o Impacto, que fiscalizam e promovem um pacto nacional pela erradicação do trabalho escravo. Ela está presente em programas governamentais como o "Plano Nacional de Enfrentamento da Violência contra Crianças e Adolescentes" e em iniciativas da sociedade civil como o projeto "Eu Me Protejo".
A caridade também se revela na atuação de organizações religiosas, como a Visão Mundial, que capacita igrejas para serem ambientes seguros para as crianças, e na dedicação de conselheiros tutelares, ativistas e cidadãos comuns que não se calam diante da injustiça.
Contudo, a dimensão do desafio exige mais. Exige que a indignação se converta em políticas públicas eficazes, em fiscalização rigorosa e em uma profunda transformação cultural que coloque a dignidade humana, especialmente a das crianças e dos mais vulneráveis, como valor inegociável. A verdadeira caridade, portanto, nos conclama a não apenas enxugar as lágrimas dos oprimidos, mas a lutar, com todas as nossas forças, para que as fontes dessa opressão sejam definitivamente extintas.
Concluindo, a caridade é aquela sempre pronta a sacrificar-se pelo próximo, é o antídoto contra orgulho e o egoísmo do século.
Desta virtude descreveu São Paulo as feições características com as seguintes palavras:
"A caridade é paciente, é benigna, não cuida do seu interesse; tudo sofre; a tudo se resigna" (15 de maio de 1981 - Rerum Novarum, pag. 46)
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AZEVEDO, Erika Sabrina F. Trabalho escravo contemporâneo. São Paulo: Dialética, 2022.
COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 5. ed. São Paulo: Ed. Unesp, 2010.
O ESTADO DE SÃO PAULO. Caderno 2 - C2, 17 maio 2025.
RERUM NOVARUM. Encíclica do Papa Leão XIII sobre a condição dos operários. Vaticano, 15 de maio de 1891.
Jussara Rita Rahal
Sócia de Rahal e Vinha Advocacia . Membro do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo. Vice-Presidente da comissão de prerrogativas, para relações com os Tribunais, na OAB/SP. Vice-Presidente da AATSP - Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo, biênio 2025/2026. Conselheira do CORT/FIESP.


