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Sintomas de um império em erosão

Ao punir o Brasil por fazer funcionar suas instituições, Trump revela a face autoritária de um império em declínio e ajuda a iluminar, sem querer, a democracia brasileira.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Atualizado às 11:03

Trump apertou o botão vermelho contra o Brasil. A partir de 6/8, todos os produtos brasileiros entrarão nos Estados Unidos com tarifa de 50%. Não há desequilíbrio comercial. Os EUA fecharam 2024 com superávit na balança bilateral. Não houve dumping, nem subsídios ilegais, nem barreiras tarifárias novas. A razão, segundo o próprio Trump, é a atuação da Justiça brasileira contra Jair Bolsonaro e decisões que teriam afetado plataformas digitais americanas. Ou seja, uma retaliação política, não comercial.

Do ponto de vista do direito interno norte-americano, a medida é extremamente frágil. O novo decreto, assinado em 30/7, invoca a IEEPA - International Emergency Economic Powers Act, mas não demonstra qualquer emergência real ou ameaça aos EUA. A IEEPA exige uma ameaça "incomum e extraordinária" à segurança, à política externa ou à economia nacional, algo que não se verifica no caso brasileiro. O decreto não aponta risco objetivo, tampouco descreve impacto direto à segurança nacional, como exigem os precedentes da Suprema Corte desde o caso Youngstown v. Sawyer. A medida, portanto, escancara o uso arbitrário da legislação de emergência como instrumento de coerção política.

Dentre todos os países que entraram na mira de Trump, o caso brasileiro é o mais grave, porque tem elementos singulares. Aqui, a motivação é declaradamente pessoal. A tarifa não mira setores específicos, mas o país inteiro (com exceções pensadas apenas para evitar prejuízos maiores aos próprios EUA), porque não se trata de comércio, e sim de coerção. O gesto também projeta um recado regional. Ao romper com a agenda bolsonarista e manter o curso institucional, o Brasil tornou-se, para o trumpismo, um obstáculo incômodo à sua ofensiva ideológica na América Latina. A punição é um alerta: democracias que insistem em funcionar não cabem na lógica de quem só tolera aliados submissos.

Há método na agressividade. O trumpismo opera com a lógica de que nenhuma democracia é aceitável se não estiver alinhada a seus interesses estratégicos e afetivos. A retórica da "reciprocidade" esconde um impulso imperial. A nova tarifa contra o Brasil não pode ser entendida como uma disputa técnica. Trata-se, em sua essência, de um instrumento de intimidação ideológica disfarçado de medida econômica. Uma forma de agressão de novo tipo.

O contraste recente com outros países também reforça a arbitrariedade. Nos últimos dias, os Estados Unidos fecharam acordos comerciais com o Japão e com a União Europeia, reduzindo tarifas para 15% em troca de compromissos bilionários de investimento, compras e abertura de mercados. Japão e UE foram tratados como parceiros com quem se negocia. Já o Brasil foi mantido sob a tarifa punitiva de 50%, sem diálogo, sem contrapartida. A diferença de tratamento, entre a diplomacia econômica e o castigo político, não poderia ser mais evidente.

Esse tipo de desvio já tem precedentes. Durante sua presidência anterior, Trump impôs sanções comerciais à China, ao México, ao Canadá e à própria União Europeia, muitas vezes por razões geopolíticas travestidas de "segurança nacional" ou "propriedade intelectual". Mas mesmo nesses casos, criticáveis como foram, os ritos legais foram respeitados. No caso da China, houve investigação e relatório técnico. No do México, as tarifas sobre o aço se apoiaram, ainda que controvertidamente, na Seção 232 do Trade Expansion Act. Com o Brasil, Trump foi além.

Pela primeira vez, um presidente americano impõe sanção tarifária total a um país aliado em reação direta a atos praticados por seu Poder Judiciário. A medida contraria a própria ideia de que o comércio possa coexistir com instituições soberanas e democráticas.

As consequências são múltiplas. E nenhuma irrelevante. No plano interno, a medida pode ser judicialmente questionada por empresas americanas afetadas, sobretudo aquelas que dependem de insumos ou produtos brasileiros em suas cadeias produtivas. Há precedentes robustos em cortes federais reconhecendo que tarifas impostas sem base legal violam o devido processo administrativo e extrapolam os limites constitucionais da autoridade executiva. A depender do impacto econômico e da reação do Congresso, o gesto pode se converter em mais um fator de erosão institucional nos próprios EUA, aprofundando a disputa entre um Executivo maximalista e os freios constitucionais que ainda restam.

Na esfera bilateral, o Brasil tem reagido com proporcionalidade, aplicando tarifas equivalentes com base em lei específica e no princípio da reciprocidade. Mas o gesto, ainda que legítimo, marca uma inflexão na relação entre os dois países. Fragiliza-se o pacto tácito de previsibilidade e respeito mútuo que, por décadas, ancorou a relação diplomática e econômica entre Brasília e Washington. Uma vez rompido, esse fio institucional é difícil de reatar.

No plano multilateral, a medida colide frontalmente com os compromissos dos EUA na OMC. Fere o princípio da nação mais favorecida e enfraquece a arquitetura de regras que os próprios Estados Unidos ajudaram a construir no pós-guerra. Ao agir unilateralmente, sem tentativa de conciliação ou apuração prévia, os EUA rebaixam o padrão do multilateralismo comercial e legitimam, por precedente, que outros países façam o mesmo. Abrem caminho para uma escalada de arbitrariedades mundo afora e, paradoxalmente, para um sistema que escapa cada vez mais ao controle de quem um dia se habituou a ditar as regras.

No fundo, o que está em jogo é também o papel que os Estados Unidos ainda aspiram desempenhar no mundo e o desconforto que sentem quando outros, mesmo em passos ainda vacilantes, ousam afirmar sua própria soberania. Ao punir o Brasil por fazer funcionar suas instituições, o governo Trump revela a fragilidade de um império que, já sem brilho, tenta impor-se pelo medo. O que deveria ser sinal de força vira gesto de ressentimento. Mas há ironia nesse esforço de intimidação: ao tentar dobrar a democracia alheia, Trump acaba por iluminá-la. Ainda em processo de consolidação, a democracia brasileira não está isenta de riscos, mas sobrevive, resiste e, no contraste com a brutalidade, resplandece.

Emmanuel Teófilo Furtado Filho

Emmanuel Teófilo Furtado Filho

Emmanuel Furtado Filho é Chefe do Departamento de Direito Público da Universidade Federal do Ceará, doutor em Direito pela Université Paris Cité onde atualmente é professor visitante em pós-doc.

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