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Confundir a aparência com a substância

A incitação por confundir a aparência com a substância, o acúmulo com o cuidado, a existência com a perpetuidade.

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Atualizado às 11:26

Quando se faz um pedido pelo aplicativo iFood e ele por exemplo, vem sem o refrigerante, cabe a cliente notificar o erro pelo aplicativo e dentre várias opções, existe uma inserida como "meu pedido veio faltando um item". Eis que quando o cliente clica nesta opção, o aplicativo requisita envio de fotografias provando que o pedido veio com um item a menos.

O cliente então pode suspirar e se lembrar que um advogado criminalista no Brasil é desafiado todos os dias a fazer provas de que o cliente não praticou o crime. Então, entrar no jogo do surrealismo jurídico: fotografar os itens que chegaram e enviar a "prova" para eles. O que irá acontecer é que rapidamente eles aceitarão a prova como válida e darão provimento a reclamação.

Puro surrealismo jurídico na vida cotidiana. Eis a dúvida: Será que é tão difícil assim perceber que é impossível provar que não se recebeu um item? A foto prova apenas que o cliente recebeu alguns itens, mas uma pessoa mal intencionada poderia receber o pedido completo e tirar o refrigerante na hora de fotografar. Então, esta fotografia não prova absolutamente nada e dá apenas trabalho ao consumidor.

Este raciocínio vale para qualquer prova processual. Não há como eu provar que um cliente de um advogado não cometeu um crime ou não tinha intenção de cometer o crime. Quem tem que comprovar que ele cometeu o crime dolosamente é a acusação, assim como quem tem que comprovar que o pedido foi entregue integralmente é a loja. Exigir a prova de ''não-algo'' é a famosa prova logicamente impossível, também conhecida como a questão da "prova diabólica"(a exigência de provar o que não existe) é um excelente exemplo de como perdemos o contato com princípios lógicos básicos.

Quando se inverte o ônus da prova, exigindo que a defesa prove que o cliente não cometeu o crime, o juiz está exigindo algo impossível. E isso acontece todo santo dia.

A mulher aponta o dedo para um homem e diz: "este sujeito me estuprou". O tribunal decide "a palavra da vítima nos crimes sexuais tem valor probatório relevante" e condena o sujeito. Aí eu pergunto: como o sujeito vai provar que não estuprou alguém? Vai bater uma foto da TV dele e falar que estava assistindo Netflix no dia?

Nos crimes econômicos é comum que se presuma o dolo (intenção) do acusado e se exija que ele prove que agiu sem dolo. Como que o CEO da empresa poderá provar que não tinha ciência dos crimes praticados por um de seus diretores? Vai tirar uma foto sozinho em sua sala com cara de que foi enganado?

Notem que isso não é um problema jurídico. É um problema elementar de lógica formal. O aluno do sistema de ensino brasileiro passa horas estudando o que é uma mitocôndria ou a fórmula do cloreto de sódio, mas é incapaz de entender juros compostos ou um raciocínio lógico elementar. Muito complexo uma sociedade assim dar certo. Faltam pré-requisitos muito elementares.

Ao transformarmos um caso cotidiano em um insight sobre lógica formal, podemos também refletir sobre uma lógica patrimonial da atualidade, que pode ser observada todos os dias: as pessoas acreditam que acumular patrimônio é o suficiente e não percebem que o mais importante é cuidar dele.

É como se o simples fato de "ter" já fosse garantia de segurança, proteção e continuidade.

O que também é grande falácia.

No fundo, tudo isso passa por uma mesma raiz: confundir a aparência com a substância, o acúmulo com o cuidado, a existência com a perpetuidade.

E, como já pontuado, sem esse raciocínio elementar, fica difícil fazer uma sociedade (ou um legado) dar certo, seja onde for.

Mariana Cotta

Mariana Cotta

Advogada OAB /DF 82358 Pós graduada em Penal e Processo Penal ,pela Escola Paulista de Direito (EPD)

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