A oneração do petróleo brasileiro exportado a partir da indevida cobrança do ICMS sobre o frete
A necessidade de proteção dos produtos brasileiros destinados ao mercado internacional deveria impedir, ao menos, a incidência dos nossos próprios tributos sobre as exportações - a indignação é seletiva?
quarta-feira, 6 de agosto de 2025
Atualizado às 14:21
Vivemos tempos sombrios. Com a soberania brasileira posta em xeque a partir das tensões políticas entre o Brasil e os Estados Unidos, o governo norte- americano de Donald Trump enfim oficializou a taxação de inúmeros produtos brasileiros, em patamar que pode chegar a expressivos 50%.
A implementação, por ato unilateral do governo norte-americano, do "tarifaço" sobre mercadorias brasileiras exportadas aos Estados Unidos gerou revolta e impactos econômicos relevantes no Brasil. Em meio às tensões, desde a ameaça de taxação, houve acentuada desvalorização do real frente ao dólar e sucessivos pregões em que a bolsa brasileira operou em queda, tudo por conta da instauração de um cenário nebuloso, de possível oneração dos produtos brasileiros e de insegurança e incerteza em relação ao que está por vir.
Não obstante a escalada verificada nas últimas semanas, fato é que, em relação ao petróleo bruto brasileiro destinado ao exterior, um sentimento de insegurança e de incerteza já havia se instalado internamente, antes mesmo do início dos embates políticos entre Brasil e Estados Unidos, a partir da tentativa de oneração do referido produto - a nosso ver, descabida -, mediante a cobrança de ICMS sobre o serviço de transporte do petróleo desde as plataformas de produção até os locais de embarque para o exterior.
Nos termos do art. 155, §2º, inciso X, alínea "a", da CF/88, o ICMS não incide sobre "operações que destinem mercadorias para o exterior, nem sobre serviços prestados a destinatários no exterior, assegurada a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores". A regra imunizante é clara e o seu objetivo mais ainda: exportação não se tributa, pois não se deve exportar tributo.
Apesar da nítida intenção do constituinte de desonerar a cadeia de exportação, a interpretação do referido dispositivo constitucional, como quase sempre se verifica, gerou embates entre Fisco e contribuintes. Ao apreciar o Tema 475 da repercussão geral1, com o objetivo de definir a "extensão da imunidade relativa ao ICMS para a comercialização de embalagens fabricadas para produtos destinados à exportação" o STF adotou interpretação restritiva, firmando a seguinte tese: "A imunidade a que se refere o art. 155, § 2º, X, "a", da CF não alcança operações ou prestações anteriores à operação de exportação.".
Ocorre que, ainda que superada a questão do alcance da regra de imunidade veiculada no art. 155, §2º, inciso X, alínea "a", da CF/88 - o que, adianta-se, em nada conflita com regras infraconstitucionais tendentes a garantir tal esfera desonerativa, mas apenas explicita que tais benefícios não têm sua gênese na Carta Magna -, a interpretação restritiva conferida pelo STF no julgamento do Tema 475 está longe de encerrar os debates quanto à possibilidade, ou não, de oneração da cadeia de exportação de produtos brasileiros.
Isso porque, desde 1996, com a edição da lei Kandir, existe regra de desoneração da cadeia de exportação, de maior amplitude do que aquela posta na CF/88 (isenção propriamente dita, segundo o STJ2 e o STF3). É o que se verifica no art. 3º, inc. II, da LC 87/96, segundo o qual ICMS não incide sobre "operações e prestações que destinem ao exterior mercadorias, inclusive produtos primários e produtos industrializados semi- elaborados, ou serviços".
O legislador ordinário foi ainda mais além ao estabelecer expressamente, no parágrafo único do referido art. 3º da lei Kandir, que a saída de mercadoria com o fim específico exportação é equiparada às operações de que trata o inciso II, desde que destinada a (i) empresa comercial exportadora, inclusive tradings ou outro estabelecimento da mesma empresa; ou (ii) armazém alfandegado ou entreposto aduaneiro. A lei Kandir, portanto, buscou esclarecer que a desoneração do ICMS se aplica tanto para as chamadas "exportações diretas" quanto para as "exportações indiretas", que envolvem ao menos uma "etapa" prévia no território nacional.
A partir da leitura do art. 3º, da lei Kandir, percebe-se, mais uma vez, a nítida pretensão do legislador de garantir que o produto brasileiro exportado não seja onerado pelo ICMS, afinal, repita-se, tributo não se exporta.
Dentre os temas que desde sempre ensejaram debates está, sem dúvidas, a questão da incidência do ICMS sobre o frete intermunicipal e interestadual de mercadorias destinadas à exportação, ou seja, a tributação ou não, do serviço de transporte que, embora nacional (entre dois pontos do território brasileiro), visa a entrega do produto no local de embarque para exterior, de modo a possibilitar o transpasse de fronteiras, e, portanto, a efetivação da exportação.
A condição do Brasil de um país de dimensões continentais, aliada à regra geral de Direito Aduaneiro no sentido de que o embarque e desembarque de mercadorias do exterior ou a ele destinadas devem ser dar em áreas alfandegadas, torna natural que os exportadores nem sempre estejam localizados próximos a essas áreas. Isso acaba por demandar a contratação de frete nacional (entre dois pontos do território nacional) para que as mercadorias a serem exportadas possam ser transportadas até os locais de embarque e, assim, efetivamente exportadas. Trata-se, portanto, de um serviço essencial, intrínseco e indissociável da própria exportação.
Na condição de órgão jurisdicional máximo para interpretação de normas infraconstitucionais, o STJ, há muito, pacificou entendimento sobre a matéria, quando, com base no disposto no art. 4º, inc. II, da lei Kandir, decidiu que o frete de mercadorias com destino ao local de embarque para o exterior é isento de ICMS. Após inúmeros acórdãos nesse sentido, e com o objetivo de encerrar qualquer insegurança que ainda poderia existir, no ano de 2021, o STJ aprovou a súmula 6494, segundo a qual "não incide ICMS sobre o serviço de transporte interestadual de mercadorias destinadas ao exterior".
O referido entendimento já veio a ser reafirmado pelo STJ5 mesmo após fixação da já mencionada tese de repercussão geral no Tema 475 pelo STF. Em síntese, segundo o STJ, o art. 3º, inc. II, da lei Kandir veicula norma de isenção, cuja aplicação, portanto, não pode ser afetada em razão da interpretação restritiva, conferida pela Suprema Corte, à norma de imunidade veiculada no art. 155, §2º, inciso X, alínea "a", da CF/88.
A reafirmação da histórica e já sumulada jurisprudência do STJ mesmo após o julgamento do Tema 475 pelo STF parecia ser o capítulo final da novela cujo enredo é a tributação do frete nacional de produtos destinados a exportação.
Mas só parecia. A realidade é que a novela está longe de um ponto final, ao menos no que diz respeito ao transporte do petróleo bruto brasileiro destinado ao exterior.
Ao longo dos últimos anos, no exercício da advocacia, temos nos deparado com novas e sucessivas autuações fiscais que visam a cobrança do ICMS sobre o serviço de transporte do petróleo destinado ao exterior, mais especificamente sobre o frete da mercadoria desde as plataformas de produção até os locais de embarque para o exterior.
Em linhas gerais, e sem adentrar em aspectos operacionais e técnicos que não são objeto do presente artigo, a logística de escoamento do petróleo bruto produzido em águas marítimas brasileiras (áreas do pré-sal, por exemplo) é, sem dúvidas, um dos principais desafios da indústria, tendo em vista, entre outras questões, o expressivo custo com as embarcações envolvidas e a limitação da oferta de tais navios utilizados para o escoamento e transporte da produção até os destinatários.
Por essa razão, na última década, os exportadores brasileiros passaram a adotar o modelo logístico de "exportação mediante transbordo" como método mais apropriado para garantir a otimização do escoamento da produção. Nesse modelo, o navio responsável pelo alívio da produção junto à plataforma de produção - navio de custo altíssimo - ao invés de rumar diretamente ao exterior, encurta seu deslocamento e se dirige a um outro ponto do território nacional, onde transborda a carga para um navio cargueiro, de capacidade mais elevada e custo comparativamente mais reduzido, que, por sua vez, fica responsável pela viagem de longo curso.
Essas operações de exportação mediante transbordo, com formação de lote no navio de transporte internacional, de tão recorrentes, passaram a ter regramento próprio para fins tributários e aduaneiros, mais precisamente pela IN RFB 1.381/13 e pelo protocolo ICMS 64/15.
Ocorre que, apesar da essencialidade desse deslocamento do navio aliviador até o local de realização do transbordo da carga para a embarcação que realiza a viagem de longo curso, as autoridades fiscais estaduais vêm manifestando entendimento no sentido de que tal "etapa" seria prévia à exportação, de modo que com ela não se confundiria, e, portanto, estaria sujeita à incidência do ICMS.
A posição do fisco estadual vem caminhando no sentido de que (i) conforme entendimento firmado pelo STF no Tema 475 da repercussão geral, as operações e prestações antecedentes à exportação não seriam alcançadas pela imunidade prevista no art. 155, §2º, inciso X, alínea "a", da CF/88;
(ii) por se tratar de etapa prévia à exportação, a remessa do petróleo bruto até o local de transbordo não se confundiria com a própria exportação, estando fora do escopo da norma isentiva prevista no art. 3º, inc. II, da lei Kandir; e (iii) equiparação das "remessas com fim específico de exportação" às exportações, prevista no art. 3º, inc. II, par. único da lei Kandir, seria restrita às "operações" (ICMS-Mercadoria), não alcançando as prestações de serviço (ICMS-Frete).
Algumas autoridades estaduais vêm buscando sustentar que, nessas operações de exportação com transbordo ocorrido no Brasil, o navio de transporte internacional para o qual a carga é transbordada funcionaria como espécie de "armazém alfandegado flutuante", o que, em tese, justificaria a classificação da remessa do petróleo até o local de transbordo como etapa prévia à exportação.
Esse posicionamento é, a nosso ver, totalmente equivocado e, caso acatado pelos tribunais, pode causar graves prejuízos concorrenciais ao produto brasileiro, afinal, o custo do ICMS sobre o transporte, uma vez mantido, passaria a onerar o petróleo aqui produzido.
Como mencionado, o transbordo não é realizado por conta de um interesse de armazenar o petróleo bruto destinado à exportação; ele ocorre em razão das dificuldades logísticas e operacionais que levam à necessidade de troca do navio para permitir a realização da exportação com otimização de custos.
Ao remeter o petróleo bruto até o local de transbordo, o exportador brasileiro possui um único interesse: garantir a exportação do produto a partir de um método eficiente e que não onere a operação a ponto de retirar a sua atratividade. Não há, nessas operações, interesse em armazenar o petróleo bruto como parte de uma estratégia logística para, então, decidir o seu destino.
Como se não bastasse, juridicamente, os argumentos que embasam as mais recentes autuações fiscais são frágeis, na medida em que (i) o navio de transporte internacional ser considerado como "armazém alfandegado flutuante" representa nítida tentativa de tributação por analogia; (ii) o STJ já sumulou entendimento de que o transporte interestadual que tenha por objetivo levar a mercadoria até o local de embarque para o exterior é isento de ICMS por força do art. 3º, inc. II, da lei Kandir, não havendo o que se distinguir em relação ao caso do transporte de petróleo até o local de embarque para o exterior; e (iii) a própria Receita Federal do Brasil, em suas normas aduaneiras, classifica o transbordo como modalidade de embarque do petróleo ao exterior, sendo evidente, portanto, que o frete em questão visa permitir a realização da exportação e nada além disso.
Essas são apenas algumas das razões jurídicas que impõem o reconhecimento de que a oneração do transporte em questão pelo ICMS é ilegal.
Além disso, sob o viés econômico, é evidente que a incidência de tributos sobre serviços absolutamente essenciais e intrínsecos à exportação acaba por repercutir no custo dos produtos brasileiros exportados, onerando-os e comprometendo a sua competitividade.
Com efeito, para além das questões jurídicas envolvidas neste tema em específico, o que causa maior espanto é que, se, por um lado, a oneração de produtos brasileiros em razão de ato unilateral determinado por outro Estado soberano causa revoltas e cria cenário de insegurança e de instabilidade econômica no Brasil, por outro, as próprias autoridades brasileiras não parecem efetivamente comprometidas em resguardar a desoneração do nosso petróleo bruto exportado. Ao contrário, parecem buscar, sempre que possível, exigir tributos sobre operações e prestações que, na prática, são indissociáveis da própria exportação, em franca colisão com o postulado de que o tributo não cruza fronteiras, ou seja, não se exporta.
Afinal, em relação à oneração dos produtos brasileiros exportados, não deveríamos voltar nosso olhar, antes de tudo, para dentro de casa? A indignação é seletiva?
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1 RE nº 754917, Plenário do Supremo Tribunal Federal, acórdão publicado em 05/08/2020.
2 Vide EREsp 710.260/RO, Rel. Ministra ELIANA CALMON, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 27/02/2008, DJe 14/04/2008.
3 Vide Ag. Reg. No RE nº 611.560/SC, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, 19 Turma, julgado em 07/05/2013, DJe 27/06/2013
4 Publicada em 03/05/2021.
5 Vide, por exemplo, AgInt no REsp nº 2.134.196/SC, 29 Turma do STJ, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe de 22/08/2024.


