O Tribunal de Ética como exemplo de boas práticas processuais
Reflexão sobre o processo ético-disciplinar na OAB, destacando sua estrutura legal, colegialidade, transparência e humanidade.
segunda-feira, 11 de agosto de 2025
Atualizado às 10:54
Nota introdutória
Atuo no Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP desde o ano de 2016, tendo acompanhado de forma ativa e comprometida sua trajetória de evolução institucional, passando por diversas fases, revisões regimentais, transformações estruturais e amadurecimento prático ao longo da última década.
Trata-se de uma vivência que me permitiu observar, com profundidade, os bastidores e os fundamentos da aplicação da ética profissional na advocacia, não apenas sob o prisma técnico-jurídico, mas também sob a perspectiva humana e institucional.
O julgamento ético-disciplinar carrega, invariavelmente, uma carga emocional intensa. Não estamos diante de autos frios, distantes ou impessoais: estamos diante da vida profissional de colegas de classe, com histórias, trajetórias, fragilidades e desafios que, em maior ou menor grau, refletem as angústias da própria profissão.
Em outro vértice, atuamos como guardiões da reputação da advocacia, um dos bens mais preciosos da nossa categoria, o que exige de cada julgador equilíbrio, prudência e elevado senso de responsabilidade.
É comum, nas sessões de julgamento, deparar-se com profissionais sob forte tensão emocional. São recorrentes os episódios de choro, desabafos sinceros, sentimentos de injustiça ou de arrependimento, gestos de humildade ou revolta. tudo isso compõe o universo sensível da ética profissional. Cada processo é, antes de mais nada, um espelho que reflete a complexidade do ser humano no exercício de uma profissão vocacionada à defesa da liberdade e dos direitos fundamentais.
Esse ambiente, ao mesmo tempo técnico e emocional, requer mais do que conhecimento jurídico: exige empatia, escuta ativa, discernimento e um profundo respeito pela função julgadora.
Foi com base nessa vivência que se estruturaram as reflexões que compartilho a seguir, com o propósito de contribuir para um debate institucional sincero, maduro e necessário sobre boas práticas processuais.
1. Julgamento sempre colegiado - Inclusive em primeira instância
Nos Tribunais de Ética, diferentemente da prática comum no Poder Judiciário, as decisões não são tomadas por um único julgador. Desde a instância inicial, os processos são apreciados por um órgão colegiado, garantindo pluralidade de olhares, mitigação de arbitrariedades e maior robustez argumentativa nos votos. Essa estrutura respeita a complexidade dos conflitos ético-profissionais e honra a premissa republicana de que o poder de julgar deve ser compartilhado, não personalista.
Trata-se de uma estrutura que valoriza o contraditório substancial e impede julgamentos apressados ou arbitrários. O relator instrui, mas não decide sozinho. Seu voto é apenas o ponto de partida para a deliberação colegiada, na qual cada julgador participa com igualdade de voz e de responsabilidade.
Essa dinâmica coletiva impede a "autoria emocional" da decisão e favorece o amadurecimento institucional das teses jurídicas. O relator pode ser vencido, votos podem ser reformulados em plenário, e prevalece o melhor argumento, não a autoridade do emissor.
Além disso, a composição das turmas julgadoras segue critérios rigorosos de reputação e idoneidade. A reputação ilibada é requisito absoluto. A ausência de máculas em sua vida profissional, moral e pessoal é elemento básico de elegibilidade.
Na prática, os membros das turmas julgadoras são pessoas públicas no meio jurídico, acima de qualquer suspeita, com longo histórico de dedicação à profissão e profundo senso de responsabilidade institucional. Seu compromisso não é com a punição, mas com a Justiça, com a valorização da advocacia e com a preservação da ética como fundamento da vida profissional.
2. Gravação integral das sessões de julgamento online
A totalidade das sessões online, inclusive aquelas de primeira instância, é registrada em áudio e vídeo, preservando fielmente o conteúdo dos debates, sustentações, votos e deliberações. É um padrão de transparência institucional que poucos tribunais judiciais conseguem replicar.
Essa prática impede deturpações, resgata a verdade dos autos e dá segurança tanto às partes quanto à instituição. Diferentemente do que se observa no processo judicial comum, onde ainda se lavram atas sintéticas, despachos orais ou decisões monocráticas, nos Tribunais de Ética tudo é documentado em sua integralidade.
Trata-se de um modelo que assegura possibilidade de revisão real das decisões, responsabilidade nos pronunciamentos e fidelidade absoluta à oralidade vivenciada. As gravações coíbem abusos, fortalecem a imparcialidade e demonstram respeito autêntico à boa-fé processual.
3. Direito à sustentação oral garantido na primeira instância
A sustentação oral, no processo ético, não é privilégio de instância recursal. Ela é facultada desde a primeira instância, permitindo que o advogado se dirija diretamente aos julgadores para apresentar, com clareza e convicção, os fundamentos da defesa.
Não se trata de um ato simbólico. Ao contrário, as sustentações são respeitadas, ouvidas com atenção e frequentemente influenciam a formação do convencimento dos julgadores.
Trata-se de um espaço vivo de defesa oral, raramente visto nas varas judiciais, onde muitas vezes sequer há possibilidade de interlocução direta com o julgador.
Essa prerrogativa, somada à qualidade técnica das turmas julgadoras, confere ao processo ético um valor democrático e deliberativo notável. O advogado é respeitado. A parte é ouvida. O julgamento não é um ato burocrático, mas um exercício genuíno de escuta e deliberação.
4. As amplas garantias fundamentais no processo ético-disciplinar
Embora o processo ético-disciplinar não tenha natureza criminal, suas consequências são gravíssimas, afetando diretamente a dignidade profissional do advogado. Por isso mesmo, aplica-se subsidiariamente, nos termos do próprio Estatuto da Advocacia, o processo penal, especialmente no que diz respeito às garantias fundamentais do representado.
Desde a intimação regular até o direito à produção probatória ampla, passando pela presunção de inocência, ampla defesa efetiva, defensor dativo e possibilidade de recurso, todas as salvaguardas são respeitadas com seriedade.
Não há espaço para o punitivismo apressado ou para decisões sumárias. O processo é técnico, justo e transparente. A sanção, se aplicada, decorre de convicção formada sobre base probatória robusta e sob julgamento regular.
A absolvição, quando reconhecida, é proclamada com igual firmeza e convicção, sem receios institucionais ou hesitações políticas. O devido processo legal é praticado, não apenas citado, e os seus princípios são respeitados e seguidos.
5. A instrumentalidade da forma
Entre os muitos aspectos que distinguem positivamente o processo ético-disciplinar em relação ao processo judicial comum, destaca-se a forma pela qual se compreende e se aplica o conceito de instrumentalidade da forma.
Nos Tribunais de Ética e Disciplina, a forma não é idolatrada; é respeitada em sua função auxiliar, nunca como obstáculo autônomo à busca pela verdade substancial. Vícios sanáveis são corrigidos. Intimações falhas são refeitas. Oportunidades de defesa são reabertas, se necessário.
Essa postura demonstra a compreensão elevada da natureza do processo: um instrumento a serviço da verdade e da justiça, e não um fim em si mesmo. Quando há possibilidade de saneamento, o advogado é intimado, quando há falha menor, corrige-se, quando há dúvida, busca-se esclarecimento.
Não se observa, nesse modelo, a paralisia ritualística que, infelizmente, ainda marca significativa parcela da jurisdição estatal. O foco é a verdade, o mérito e a prestação jurisdicional justa.
6. O perfil dos julgadores: Ética, reputação e excelência técnica
Um dos pilares que sustentam a credibilidade do processo ético-disciplinar é a idoneidade e a qualificação dos advogados que integram as turmas julgadoras dos Tribunais de Ética e Disciplina da OAB.
A seleção desses membros obedece a critérios rígidos: a reputação ilibada é requisito absoluto. Além disso, exige-se notório saber jurídico, experiência e conduta ética inatacável.
Na prática, os julgadores são advogados com longa trajetória profissional, vocação institucional e absoluto compromisso com a dignidade da classe.
São pessoas públicas no meio jurídico, acima de qualquer suspeita, com senso de Justiça e equilíbrio. Não raro, afastam-se espontaneamente de julgamentos quando percebem qualquer risco de parcialidade ou conflito ético, reforçando o valor institucional do julgamento imparcial.
7. O Tribunal de Ética e o contraste com outros tribunais
É inevitável, em uma análise madura sobre o funcionamento dos Tribunais de Ética e Disciplina da OAB, traçar um contraste com outras instâncias julgadoras do país, inclusive algumas da mais alta relevância institucional, cujos atos impactam diretamente a ordem constitucional e democrática.
Infelizmente, tais cortes, embora dotadas de poder e prestígio, nem sempre refletem os mesmos padrões de isenção, técnica e respeito às garantias processuais que se observa, com frequência admirável, no âmbito do processo ético-disciplinar.
Enquanto no processo ético toda decisão é colegiada, com ampla deliberação e voto motivado de cada julgador, em outras esferas multiplicam-se as decisões monocráticas, proferidas por um único magistrado, muitas vezes em matérias de alta complexidade ou de repercussão ampla.
Enquanto nos Tribunais de Ética a sustentação oral é garantida, inclusive em primeira instância, em outros tribunais as decisões são proferidas sem sequer oportunizar contraditório, por vezes contra pessoas que não integram formalmente o processo.
No Tribunal de Ética, o julgador não é parte. O relator não atua como inquisidor. A defesa tem vez, tem voz e é efetivamente escutada. A parte é formalmente integrada ao processo e jamais surpreendida por decisões que a envolvam sem ciência ou participação.
O contraditório é exercido em sua forma plena, e as garantias não são tratadas como obstáculos processuais, mas como pilares da própria legitimidade do julgamento.
8. Conclusão: Um farol de boas práticas processuais
Não se pretende, com as considerações aqui expostas, menosprezar o Poder Judiciário, tampouco ignorar suas dificuldades estruturais ou a complexidade das causas sob sua jurisdição. Há, sem dúvida, magistrados de altíssimo nível e ilhas de excelência espalhadas por todo o país.
Entretanto, é preciso reconhecer, com honestidade intelectual e espírito institucional que, no tocante às práticas processuais, os Tribunais de Ética da OAB vêm se consolidando como verdadeiros faróis de boas práticas.
Colegiados desde a origem, julgamentos gravados, sustentações orais asseguradas, garantias fundamentais respeitadas, conteúdo jurídico priorizado e forma instrumentalizada, todos esses elementos compõem um modelo que honra a advocacia e inspira o próprio sistema de Justiça.
O Tribunal de Ética aplica, todos os dias, verdadeiras lições silenciosas de que é possível julgar com rigor sem abrir mão da técnica, da escuta e da justiça substancial.
Que esse exemplo sirva de inspiração aos demais Tribunais, resultando em uma melhor prestação jurisdicional a todos os operadores do direito e sobretudo aos cidadãos comuns, destinatários finais de decisões que podem influir em suas vidas e que, por isso, não podem ser proferidas sem todo o rigor técnico e garantias constitucionais existentes, e, mais do que isso, conquistadas a duras penas por toda nossa sociedade.


