O mestre Paulo de Barros Carvalho
O texto relembra a trajetória de Paulo de Barros Carvalho no Direito Tributário, destacando sua contribuição teórica, acadêmica e institucional à área.
terça-feira, 19 de agosto de 2025
Atualizado em 18 de agosto de 2025 15:03
Proêmio
A convite dos professores Paulo Ayres Barreto, Maria Leonor Leite Vieira e Robson Maia Lins, tive a honra, em 21/6/23, de apresentar o professor Paulo de Barros Carvalho antes de sua tradicional conferência no Congresso do Instituto Geraldo Ataliba - Idepe, então em sua XXXVIII edição.
Para cumprir a missão, reli as principais obras do mestre, de modo a elaborar uma apresentação que permitisse enxergar o jurista e, por meio deste, vislumbrar o homem.
O ensaio que ora vem a lume é fruto daquela intervenção.
Este texto é especialmente dedicado, neste momento, aos familiares, colegas, amigos e discípulos do professor Paulo, que em todo o país - e além de suas fronteiras - hoje lamentam a ausência daquele que sempre ensinou com rara elegância, afabilidade e rigor lógico.
À memória do mestre, seguem, com reverência, as linhas que se seguem.
1. As origens
Nascido em São Paulo, filho do pernambucano Leonardo de Barros Carvalho e da gaúcha Dulce Rosa Cruz, Paulo de Barros Carvalho manteve, ao longo da vida, profunda relação de afeto e de intercâmbio intelectual com o Nordeste, em especial com Pernambuco, terra de seu pai e, também, de Lourival Vilanova.
Esse vínculo afetivo e acadêmico foi retribuído em múltiplas formas: Paulo recebeu, entre outras distinções, os títulos de Cidadão Pernambucano, Cidadão Paraibano, Cidadão Baiano, Cidadão do Recife, Cidadão Natalense, Cidadão Pessoense e Cidadão Honorário de Caicó - além do título de doutor Honoris Causa pela Universidade Potiguar.
Essas honrarias, somadas a outras, dentro e fora do Brasil - como o doutor Honoris Causa da Universidad Nacional Mayor de San Marcos, a mais antiga das Américas - refletem a estatura intelectual de Paulo de Barros Carvalho, cuja biografia se encontra visceralmente entrelaçada à história do Direito Tributário brasileiro.
É sobre ambas - em mútua implicação - que tratarei nas linhas seguintes.
2. O Direito Tributário e a vida de Paulo de Barros Carvalho
2.1 O cenário em meados da década de 1960
Quando Paulo de Barros Carvalho bacharelou-se em Direito, em 1965, o Direito Tributário ainda não se apresentava como disciplina autônoma. Suas questões eram absorvidas pela ciência das finanças, criticada pela ausência de rigor científico e pelo sincretismo com a economia e outras áreas.
Embora, desde o final do século XVIII, houvesse um núcleo de princípios sobre finanças públicas, sua natureza era mais econômica e política do que jurídica - característica que se manteve, ainda que em menor grau, até meados do século XX.
Havia, ademais, outro obstáculo ao florescimento do Direito Tributário no Brasil: a doutrina nacional da primeira metade do século XX o percebia como sub-ramo do Direito Administrativo. E este, por sua vez, era construído sobre bases italianas das décadas de 1920 e 1930, apoiadas, não raro, em reflexões de autores alemães do final do século XIX, como Paul Laband e Georg Jellinek. Não surpreende, portanto, que a relação tributária fosse concebida como vínculo de sujeição do contribuinte ao Estado - e não como autêntica relação jurídica, na qual Fisco e cidadão possuem direitos e deveres recíprocos.
Foi apenas em 1963 que surgiu a primeira obra brasileira dedicada, com rigor metodológico, ao estudo autônomo do Direito Tributário, rompendo paradigmas anteriores - condição indispensável aos verdadeiros avanços científicos, como nos ensinou Thomas Kuhn.
Refiro-me à "Teoria Geral do Direito Tributário", de Alfredo Augusto Becker, obra que viria a ser nacionalmente difundida, em larga medida, pelas mãos de Paulo de Barros Carvalho.
O jovem Paulo, com sua já aguda sagacidade jurídica, percebeu de imediato a originalidade daqueles escritos - que, no entanto, permaneciam pouco conhecidos, agravados pelo afastamento de Becker da vida acadêmica (da qual só retornaria, de modo breve, em 1989, com a publicação de seu célebre Carnaval Tributário).
2.2 A relevância da teoria geral do Direito Tributário
O papel de Becker no Direito Tributário brasileiro pode ser comparado ao de Jeremy Bentham para a ciência do Direito, até mesmo em seu estilo redacional, levemente irônico e provocador.
Bentham denunciava o sistema da Common Law britânica, a que denominava Dog Law - o "direito dos cães". À semelhança do adestramento canino do século XVIII, em que o animal aprendia mediante punição física, também o cidadão britânico só compreendia os limites de sua conduta quando surpreendido pela sanção judicial.
Nesse ambiente, Bentham formulou a célebre distinção entre teoria crítica do direito (censorial jurisprudence) e teoria descritiva (expository jurisprudence), buscando separar o que o direito efetivamente é daquilo que deveria ser. Sua perspectiva analítica segregava direito e moral, conferindo previsibilidade aos enunciados positivados.
De modo análogo, Becker pretendeu imprimir método ao Direito. Buscou tanto afastar o Direito Tributário das demais ciências quanto abordar temas dogmáticos a partir de uma teoria geral.
Assim, Bentham e Becker partilhavam a mesma saga intelectual: conferir cientificidade ao Direito, afastando considerações morais - subjetivas - da reconstrução da norma jurídica.
2.3 A busca pela originalidade e a criação da regra-matriz de incidência tributária
Vendo em Becker um interlocutor à altura, Paulo de Barros Carvalho, por sua indicação, debruçou-se sobre três obras fundamentais: "Curso de Linguística Geral", de Ferdinand de Saussure; "As relações entre a ciência da linguagem e as demais ciências", de Roman Jakobson; e "Semântica", de Stephen Ullmann.
Dessa imersão emergiu a convicção de que o direito é, essencialmente, um processo linguístico, devendo ser operado a partir dessa premissa para que se encontrem soluções adequadas aos problemas práticos.
Já havia lançado, em 1973, sua tese de doutorado, publicada em 1974 sob o título "Teoria da Norma Tributária", obra que, nas palavras de Geraldo Ataliba, representava "uma revisão completa dos próprios pontos de partida que a doutrina se habituou a desenvolver de modo convencional".
Sempre à cata de pensamentos originais, independentemente da origem geográfica, Paulo encontrou nas obras de Lourival Vilanova inspiração para o aprimoramento lógico e linguístico do Direito Tributário.
Em 1977, assumiu a presidência do Ibet - Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, transformando-o, de uma entidade embrionária, em um dos maiores centros de formação de pesquisadores em Direito Tributário do país, hoje presente em dezenas de capitais e cidades relevantes.
Em 1981, obteve o título de livre-docente com a tese "A regra-matriz do ICM". Quatro anos depois, tornou-se professor titular da PUC-SP, publicando, no mesmo ano, seu clássico curso de Direito Tributário, já em mais de trinta edições, no qual sistematizou a célebre regra-matriz de incidência tributária.
A robustez da proposta metodológica é atestada por números eloquentes: mais de 900 decisões do STF - entre acórdãos e decisões monocráticas - utilizaram a regra-matriz como instrumento analítico para a solução de casos complexos.
2.4 A cátedra da USP e a compreensão da incidência como fenômeno linguístico
Em 1997, Paulo de Barros Carvalho ascendeu à cátedra de Direito Tributário da USP, em concurso em que defendeu a tese posteriormente publicada como Direito Tributário - fundamentos jurídicos da incidência.
Tomando a linguagem como constitutiva da realidade, na linha de Heidegger - para quem "a palavra é a morada do ser" - Paulo deu novo passo em sua caminhada lógico-semântica. Em "Fundamentos Jurídicos da Incidência", sustentou que a incidência tributária não se perfaz automaticamente com a ocorrência do fato descrito no antecedente da regra-matriz.
Ao revés: a incidência somente se consuma mediante o relato, em linguagem competente, da ocorrência do evento jurígeno. O domínio da linguagem é, assim, o domínio do Direito.
Posteriormente, fundou a Editora Noeses, que se converteu em referência editorial de obras de Filosofia, Teoria Geral do Direito e, naturalmente, Direito Tributário.
Em 2008, publicou, pela Noeses, o monumental "Direito Tributário, Linguagem e Método", obra de mil páginas que condensa décadas de reflexões sobre filosofia, lógica e semiótica a serviço da hermenêutica jurídica.
3. À guisa de conclusão
Em 2010, Paulo de Barros Carvalho foi empossado como membro titular da Academia Brasileira de Filosofia, na cadeira antes ocupada por Roberto Campos.
Na mesma época, recebeu, simultaneamente, o título de professor emérito da USP e da PUC-SP - honraria raríssima, concedida a menos de cinquenta docentes em quase duzentos anos de história do Largo de São Francisco, e a apenas três professores da Faculdade de Direito da PUC-SP.
Não há dúvida, portanto, de que a história do Direito Tributário brasileiro se confunde, em larga medida, com a história de Paulo de Barros Carvalho.
Por isso, professor, posso afirmar com segurança: tal como o teu amado tricolor, também as tuas glórias vêm do passado, mas se projetam, com igual grandeza, para o futuro.



