O elo essencial: Medidas atípicas e a efetivação do direito tutelado
O direito reconhecido parece, às vezes, inalcançável, como se o cumprimento da ordem judicial estivesse apenas em Pasárgada - como dizia Manuel Bandeira.
quinta-feira, 21 de agosto de 2025
Atualizado às 10:50
Os instrumentos tradicionais de coerção não acompanham mais as complexidades e implicações que os processos apresentam no âmbito pragmático. Esse fenômeno tem gerado um quadro incerto e frustrante para o exequente, enquanto o sistema jurídico se torna inseguro e insuficiente para a sociedade.
O sistema não pode se restringir aos meios típicos de execução quando o devedor, não mais disposto a cumprir suas obrigações de forma honrosa, tenta esquivar-se de sua obrigação, acreditando que o sistema jurídico é falho.
O reflexo disso nos tribunais manifesta-se nos chamados gargalos da execução, em que o processo executório revela-se ineficaz para localizar bens ou compelir o devedor ao adimplemento, culminando no arquivamento de ações sem a efetiva entrega do direito reconhecido.
Nessas circunstâncias, a decisão judicial se revela um mero enunciado inócuo, ainda que revestida de autoridade formal. É um título que, sem efetividade, se esgota como um mau investimento, incapaz de gerar qualquer retorno diante do tempo, esforço e recursos consumidos por um Judiciário já sobrecarregado.
Nessa diapasão, em que é preciso mudar o que deve ser mudado - mutatis mutandis, o ordenamento jurídico se viu obrigado a substituir o formalismo por um sistema misto, que possibilita a aplicação de medidas típicas e atípicas para alcançar a satisfação do direito reconhecido.
O art. 139, inciso IV, do CPC é a tradução mais visceral dessa mudança de paradigma na execução, ao conferir ao juiz o poder discricionário para adotar medidas coercitivas além daquelas tradicionalmente previstas, desde que voltadas à efetividade da tutela jurisdicional.
O instrumento processual das medidas atípicas não é uma criação do CPC/15, mas sim um aperfeiçoamento de mecanismos já existentes na tutela cautelar. Na verdade, reformas setoriais anteriores à nova legislação já atribuíam ao juiz a competência para adotar as medidas necessárias, seja de ofício ou a requerimento da parte, com o objetivo de assegurar o resultado útil do processo.
O art. 139 do CPC, inciso IV, dispõe que a adoção de medidas coercitivas não se condiciona à provocação exclusiva das partes. Embora o juiz possa agir de ofício, na prática o requerimento costuma ser formulado pelo exequente, que deve apresentá-lo com fundamentação coerente, proporcional e adequada ao caso concreto.
A preocupação com a ampliação dos poderes do juiz é legítima, sobretudo diante do risco de abusos que possam comprometer os fundamentos da democracia. Contudo, o próprio ordenamento jurídico impõe freios à discricionariedade judicial, a fim de evitar excessos e assegurar o equilíbrio entre autoridade e garantias processuais. Trata-se de um poder-dever conferido ao juiz, que o habilita a adotar medidas capazes de efetivar as decisões no processo, respeitando as normas fundamentais previstas no art. 8º do CPC.
A decisão que impõe a medida atípica precisa ser amplamente fundamentada, em conformidade com os seguintes requisitos essenciais para a sua aplicação: (i) necessidade da medida; (ii) indícios de dificultação ou ocultação do patrimônio ou má-fé para esquivar-se do cumprimento da obrigação; (iii) adequação da medida ao caso concreto; (iv) razoabilidade e proporcionalidade; (v) equilíbrio entre a máxima eficácia e a menor onerosidade; (vi) respeito às garantias fundamentais; (vii) patrimônio disponível ou meios legais para garantir a obrigação; (viii) direito ao contraditório.
As medidas coercitivas atípicas não visam à ampliação ilimitada do poder judicial, mas ao fortalecimento da efetividade da jurisdição e da segurança jurídica. Seu uso deve estar sempre sujeito ao controle jurisdicional, sendo passível de impugnação por meio dos recursos cabíveis, caso se verifique abuso de prerrogativas ou desvio na fundamentação.
O sistema de meios atípicos de execução é bifacetado: de um lado, a necessidade de implementar o direito reconhecido (interesse do exequente), e, do outro, a importância de respeitar as garantias fundamentais do executado.
É preciso cautela para não fazer uma interpretação excessivamente ampla do princípio da dignidade da pessoa humana, sob pena de comprometer a efetividade da tutela executiva. As medidas atípicas podem atuar como estímulo psicológico capaz de despertar o animus do executado para o cumprimento da obrigação.
A controvérsia em torno da constitucionalidade do art. 139, IV, foi enfrentada pelo STF na ADIn 5.941, ocasião em que se firmou o entendimento de que sua aplicação deve assegurar o cumprimento da ordem judicial, desde que observados os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. A Corte ressaltou, ainda, a importância de respeitar os fundamentos previstos nos arts. 1º, 8º e 805 do CPC/15, reafirmando a necessidade de equilíbrio entre a efetividade da execução e a proteção dos direitos fundamentais.
A mudança de paradigma na execução, orientada pela busca da efetividade, exige uma releitura do art. 805 do CPC. Embora a norma determine a adoção do meio menos oneroso ao executado, esse critério não pode ser visto como absoluto, sob pena de esvaziar a própria razão da execução. A interpretação adequada deve, portanto, harmonizar a menor onerosidade com a máxima efetividade, garantindo o equilíbrio sem sacrificar o direito do credor.
As medidas atípicas não são aplicáveis ao executado que não possui patrimônio ou meios para cumprir a obrigação principal, pois sua finalidade não é a vingança. Sob uma perspectiva filosófica, o mal pelo mal não se justifica, e a razão subjacente à necessidade dessas medidas revela o fundamento de sua aplicação.
É belíssima a colocação de Cândido Rangel Dinamarco ao afirmar que: "é preciso distinguir entre o devedor infeliz e de boa-fé, que vai ao desastre patrimonial em razão de circunstâncias involuntárias da vida, e o caloteiro chicanista, que se vale das formas do processo executivo e da benevolência dos juízes como instrumentos a serviço de suas falcatruas"1
A leitura conjunta dos arts. 77, inciso IV, e 774 do CPC evidencia o dever das partes de cumprir as decisões judiciais e não criar obstáculos à sua efetivação. Observadas todas as balizas do instrumento, é difícil considerar a medida excessiva quando há, do outro lado, uma renitência injustificada do executado em atender à ordem judicial.
As medidas coercitivas atípicas têm sido alvo constante de debates que visam restringir sua aplicação, por vezes tornando-as quase inalcançáveis em um percurso jurídico tortuoso e exaustivo.
O limite temporal das medidas coercitivas atípicas, que já foi alvo de debate no STJ, diz respeito ao período de duração necessário para que uma medida coercitiva atípica permaneça em vigor. O pensamento revela-se incongruente, pois ao restringir o tempo de vigência da medida coercitiva, corre-se o risco de não gerar o desconforto necessário para compelir o devedor a cumprir a ordem judicial. A proposição de que deve haver um limite pré-estabelecido para a aplicação dessas medidas pode ser interpretada como uma tentativa de favorecer o executado.
Dessa forma, a função primordial da medida coercitiva é, justamente, vencer a resistência do devedor. Portanto, ela deve perdurar pelo tempo necessário para que o devedor seja convencido de que cumprir a obrigação é mais vantajoso do que persistir na recalcitrância.
Tal compreensão é reforçada pelo STJ, conforme expressado nas irretocáveis palavras de Nancy Andrighi: "devem ser deferidas e mantidas enquanto conseguirem operar, sobre o devedor, restrições pessoais capazes de incomodar e suficientes para tirá-lo da zona de conforto, especialmente no que se refere aos seus deleites, aos seus banquetes, aos seus prazeres e aos seus luxos, todos bancados pelos credores"2
A tese de que a aplicação das medidas atípicas é de caráter subsidiário, condicionada à prévia frustração dos meios típicos de execução, configura-se como uma das barreiras mais significativas do tema. Sustenta-se que, caso o juiz pudesse utilizá-las de forma primária, a sistemática processual da execução seria subvertida, resultando na obsolescência das medidas tradicionais e na potencial violação da menor onerosidade e dos direitos fundamentais do executado.
A despeito da tese de subsidiariedade, o verdadeiro critério para a aplicação das medidas coercitivas - sejam de natureza típica ou atípica - é a pertinência e a adequação ao caso concreto. O objetivo central é a máxima efetividade da execução, e a escolha do instrumento deve ser guiada por essa finalidade, e não por uma ordem hierárquica pré-estabelecida.
A controvérsia sobre os requisitos para a aplicação das medidas atípicas tem sido enfrentada pelo STJ, por meio do Tema 1.137, que busca consolidar um entendimento sobre o art. 139, inciso IV, do CPC. Embora a decisão final ainda seja aguardada, o entendimento predominante em julgados anteriores aponta para a provável manutenção da tese de subsidiariedade, exigindo que as medidas atípicas sejam aplicadas somente após a frustração dos meios tradicionais.
Tal posicionamento, contudo, esvazia a essência do instituto, que se assenta em princípios como economia processual, celeridade e segurança jurídica - valores que perdem força quando se impõe ao credor a obrigação de aguardar a ineficácia dos meios tradicionais para só então recorrer às medidas atípicas.
O sentimento que me acomete é o mesmo de Carlos Drummond de Andrade e a pedra que afligiu o seu caminho. 3
Na exaustiva interpretação do art. 139, inciso IV, do CPC, não se encontra prerrogativa que condicione a aplicação da medida atípica à ineficácia comprovada do procedimento típico. A condição para a adoção da medida é a existência de fundamento idôneo que a legitime, demonstrando sua adequação para assegurar o cumprimento da decisão judicial - em outras palavras, a busca pelo instrumento mais pertinente ao caso concreto.
A efetividade da tutela jurisdicional é um princípio fundamental, pois está intrinsecamente relacionada à garantia da proteção dos direitos e à realização concreta da justiça. O pleno funcionamento dos princípios da cooperação e da boa-fé, de maneira pragmática, constitui o caminho para que o direito discutido e reconhecido seja efetivamente cumprido em sua totalidade - o sistema deve ser estruturado de modo a ampliar a "sombra do futuro" e tornar a cooperação mais vantajosa do que a resistência, levando o devedor a considerar uma futura inversão de papéis, em que sua conduta de hoje poderá ser a sua fraqueza de amanhã.4
É necessário direcionar a atenção ao desfecho da ação judicial, pois, caso contrário, o processo estará comprometido e fadado ao fracasso. No apagar das luzes, não se trata apenas de uma ausência de segurança jurídica; é a própria essência do direito que se esvai.
É imprescindível recordar as lições de Couture: "conocimiento y declaración sin ejecución es academia y no justicia; ejecución sin conocimiento es despotismo y no justicia. Sólo un perfecto equilibrio entre las garantías del examen del caso y las posibilidades de hacer efectivo el resultado de ese examen, da a la jurisdicción su efectivo sentido de realizadora de la justicia"5
Ao fim e ao cabo, nada é mais atípico do que o cumprimento voluntário, quando já repousa o manto da coisa julgada sobre o direito tutelado.
"Conheço bem tuas promessas
Outras ouvi iguais a essa"6
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1 Instituições de direito processual civil, vol. IX, São Paulo, Malheiros, 2004, n. 1.338, p. 58. Marcelo Abelha Rodrigues cria interessante distinção entre devedor cafajeste (que pratica atos de fraude contra credores), executado cafajeste (que pratica atos de fraude à execução) e o executado decente, in O que fazer quando o executado é um "cafajeste"? Apreensão de passaporte? Da carteira de motorista?
2 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus Nº 711.194/SP. Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze. Julgado em 21/06/2022. DJe 27/06/2022.
3 ANDRADE, Carlos Drummond de. No Meio do Caminho. In: Alguma Poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1930.
4 Axelrod, Robert. The Evolution of Cooperation. New York: Basic Books, 1984.
5 COUTURE, Eduardo. Las garantías constitucionales del proceso civil. Estudios de derecho procesal civil. Buenos Aires: Depalma, 1998. t. I. p. 89.
6 GOUVEIA, Evaldo; AMORIM, Jair. Alguém Me Disse. Intérprete: Gal Costa. In: Plural. Rio de Janeiro: RCA Records, 1990. 1 disco sonoro. Faixa 9.
ARENHART, Sérgio Cruz. Tutela atípica de prestações pecuniárias: Por que ainda aceitar o "é ruim, mas eu gosto"??. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, n.1046.
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil, volume 3. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2023.
TALAMINI, Eduardo. Poder geral de adoção de medidas executivas e sua incidência nas diferentes modalidades de execução. In: CÂMARA, Alexandre Freitas et al. Medidas Executivas Atípicas. Salvador: Juspodivm, 2018.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Comentários ao código de processo civil - volume XVII (arts. 824 a 875) : da execução por quantia certa. São Paulo: Saraiva, 2018.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Medidas executivas coercitivas atípicas na execução de obrigação de pagar quantia certa - art. 139, IV, do novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. 265/2017, p. 107 - 150, mar / 2017.
OLIVEIRA NETO, Olavo de. Poder geral de coerção. Enciclopédia Jurídica Da Puc-Sp. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro De Azevedo Gonzaga E André Luiz Freire (Coords.). Tomo: Processo Civil. Cassio Scarpinella Bueno, Olavo De Oliveira Neto (Coord. De Tomo). 2. Ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica De São Paulo, 2021.


