Letramento digital e IA: Um desafio para o Direito contemporâneo
Letramento digital é o novo alicerce do Direito. Sem ele, a Justiça se fragiliza diante do avanço implacável da inteligência artificial.
quinta-feira, 21 de agosto de 2025
Atualizado às 11:36
A IA - inteligência artificial deixou de ser promessa tecnológica para se consolidar como ferramenta indispensável em diversos setores da vida social e econômica. No campo jurídico, seu uso cresce de forma acelerada.
Entretanto, essa adoção não é acompanhada, na mesma proporção, por uma formação crítica e consciente sobre seus usos e riscos. É nesse contexto que surge a noção de letramento digital, conceito que ultrapassa a mera habilidade técnica de operar máquinas ou softwares. Trata-se da capacidade crítica de compreender, interpretar e avaliar informações no ambiente digital, identificando limitações, vieses e impactos sociais das tecnologias.
No Direito, a ausência de letramento digital representa risco significativo. Se a atividade jurídica é mediada pelo discurso e pela interpretação, delegar parte desse trabalho a sistemas opacos, sem preparo adequado, pode comprometer a qualidade das decisões e, sobretudo, valores democráticos fundamentais.
Este artigo analisa a importância do letramento digital no campo jurídico, explorando seus fundamentos, os riscos de sua ausência e os caminhos possíveis para sua consolidação como competência essencial das carreiras jurídicas.
1. O conceito de letramento digital e sua aplicação ao Direito
O termo letramento digital (digital literacy) surgiu nos estudos de educação e comunicação e refere-se à competência de acessar, compreender, avaliar e criar informação em ambientes digitais. Dessa forma, não basta ter acesso às tecnologias: é necessário interpretá-las criticamente, distinguindo informação confiável da enganosa.
No campo jurídico, o letramento digital significa preparar o operador do Direito para:
- compreender os limites das tecnologias baseadas em IA;
- identificar potenciais vieses em dados e algoritmos;
- avaliar a confiabilidade das informações produzidas;
- e tomar decisões fundamentadas em valores éticos e jurídicos.
Assim, não se trata apenas de domínio técnico, mas de postura crítica voltada a preservar a racionalidade jurídica e a proteção de direitos fundamentais.
2. O avanço da IA no campo jurídico
A presença da inteligência artificial no Direito é multifacetada, abarcando desde tarefas rotineiras até funções que exigem maior complexidade interpretativa. Essa diversidade de usos, embora amplie a eficiência e a celeridade em diversos processos, traz consigo um ponto de atenção fundamental: a adoção dessas ferramentas, em muitos casos, ocorre de maneira acrítica, sem plena compreensão de suas limitações e riscos.
A confiança excessiva em sistemas de IA pode levar à naturalização de resultados automatizados, como se fossem neutros ou infalíveis, quando, na realidade, estão sujeitos a vieses, falhas de treinamento e distorções nos dados de origem. Além disso, a ausência de preparo crítico pode resultar no uso instrumental da tecnologia apenas pela promessa de produtividade, sem a devida reflexão sobre seus impactos éticos, jurídicos e sociais.
O desafio, portanto, não reside apenas na incorporação da inteligência artificial ao campo jurídico, mas principalmente em desenvolver condições para que seu uso seja consciente, responsável e alinhado à missão do Direito de assegurar justiça, igualdade e proteção de direitos fundamentais.
3. Os riscos da ausência de letramento digital
A falta de letramento digital entre profissionais do Direito não é uma questão meramente técnica: trata-se de um problema estrutural que ameaça a qualidade da prestação jurisdicional, a equidade no acesso à Justiça e a própria legitimidade das instituições jurídicas. A seguir, alguns dos principais riscos decorrentes dessa lacuna.
3.1 Desinformação jurídica
Um dos problemas mais graves associados ao uso de sistemas de IA generativa é o fenômeno da alucinação, no qual a tecnologia produz respostas aparentemente consistentes, mas factualmente incorretas. No campo jurídico, isso pode assumir formas particularmente perigosas: referências a jurisprudências inexistentes, citação de artigos de lei já revogados ou interpretação distorcida de princípios constitucionais.
Esses conteúdos, embora equivocados, são elaborados em linguagem convincente e bem estruturada, o que aumenta a probabilidade de aceitação acrítica por parte de operadores do direito ou mesmo cidadãos em busca de informação jurídica. O resultado é a propagação de desinformação jurídica, capaz de comprometer a confiabilidade do sistema de Justiça.
Sem letramento digital, o profissional pode não ter condições de identificar tais inconsistências, adotando-as inadvertidamente em sua rotina de trabalho. Esse risco não apenas fragiliza a prática jurídica, mas também mina a confiança pública nas instituições.
3.2 Deskilling profissional
O chamado deskilling - perda gradual de competências decorrente da dependência de tecnologias - é um perigo real no universo jurídico. A utilização constante de sistemas automatizados pode reduzir, ao longo do tempo, a capacidade crítica e interpretativa dos profissionais.
Argumentar, interpretar normas complexas e elaborar textos jurídicos claros são habilidades centrais aos operadores do direito. Quando essas tarefas passam a ser terceirizadas para máquinas, o risco é de que tais competências enfraqueçam, comprometendo a autonomia intelectual do profissional.
É preciso lembrar que a essência do Direito não reside apenas em aplicar normas, mas em interpretá-las, contextualizá-las e conciliá-las com valores constitucionais. A perda dessas habilidades, decorrente da confiança cega em sistemas automatizados, ameaça a própria função crítica e humanista do jurista.
3.3 Desigualdade de acesso
Outro risco relevante é a ampliação das desigualdades. Profissionais e instituições que dominam criticamente as ferramentas de IA terão condições de trabalhar com maior eficiência, reduzir custos e oferecer serviços mais céleres. Já aqueles sem preparo adequado tendem a perder competitividade, criando uma disparidade não apenas no mercado da advocacia, por exemplo, mas também no próprio acesso dos cidadãos à Justiça.
Esse fenômeno pode reproduzir e até agravar desigualdades já existentes no sistema jurídico brasileiro, marcado por assimetrias regionais e socioeconômicas. Escritórios de grande porte, com recursos para investir em capacitação digital, sairão à frente, enquanto advogados autônomos ou instituições com menos recursos enfrentarão barreiras ainda maiores.
Sem letramento digital amplamente disseminado, corre-se o risco de consolidar um cenário em que apenas parte dos profissionais tem condições de oferecer serviços de qualidade na era da inteligência artificial, aprofundando a exclusão jurídica.
3.4 Riscos éticos e regulatórios
Por fim, a ausência de letramento digital potencializa riscos éticos e regulatórios. Entre eles, destacam-se:
- Violação de privacidade e proteção de dados: o manuseio inadequado de informações em plataformas de IA pode expor dados sensíveis de clientes ou partes processuais, em desrespeito à LGPD.
- Decisões enviesadas: algoritmos treinados com dados históricos podem reproduzir ou intensificar preconceitos estruturais, levando a decisões discriminatórias. Sem preparo crítico, o profissional não será capaz de questionar ou mitigar esses vieses.
- Ausência de accountability: a tendência de atribuir responsabilidade à máquina pode obscurecer a responsabilidade humana, criando um vazio ético e jurídico.
- Fragilidade na aplicação da lei: operadores do Direito sem letramento digital podem aplicar normas regulatórias de IA de forma superficial, sem compreender plenamente seu alcance e limites.
Esses riscos revelam que o letramento digital não é apenas uma competência técnica, mas uma condição necessária para assegurar práticas jurídicas éticas, seguras e alinhadas aos princípios constitucionais.
4. O Direito e o desafio da governança da IA
O Brasil vive um momento decisivo no debate regulatório da inteligência artificial. Diversas iniciativas legislativas, estudos técnicos e discussões acadêmicas convergem para a necessidade de definir parâmetros de responsabilidade, transparência, proteção de dados e respeito a direitos fundamentais.
O desafio, no entanto, vai além da elaboração de normas. A experiência internacional demonstra que regulações, por mais sofisticadas que sejam, podem se tornar ineficazes se os responsáveis por aplicá-las não possuírem preparo adequado para compreender criticamente as ferramentas tecnológicas em questão.
Em outras palavras: a letra da lei não basta se faltar o letramento digital. Sem essa competência, há risco de que a regulação seja observada apenas em sua forma, sem atingir sua finalidade substancial de prevenir abusos, reduzir desigualdades e proteger direitos. A aplicação superficial das regras pode levar a uma governança meramente formal, incapaz de responder aos problemas concretos que emergem do uso da IA em larga escala.
A governança efetiva da inteligência artificial depende, portanto, de um tripé: normas claras, instituições estruturadas e aplicadores do Direito preparados digitalmente.É essa última dimensão que garante a efetividade normativa. O letramento digital confere a capacidade de interpretar a regulação de maneira crítica, identificar lacunas, contextualizar sua aplicação e, sobretudo, assegurar que a inovação tecnológica permaneça subordinada aos valores constitucionais e democráticos que orientam o sistema jurídico
Sem ele, qualquer marco regulatório corre o risco de se transformar em um conjunto de boas intenções; com ele, abre-se caminho para uma governança real, em que tecnologia e justiça caminham em equilíbrio.
5. Caminhos para promover o letramento digital no Direito
5.1 Reformulação da educação jurídica
Os cursos de Direito, em grande parte ainda presos a currículos tradicionais, precisam incorporar disciplinas sobre tecnologia, ética digital, fundamentos de ciência de dados e impactos da IA. O objetivo não é formar programadores, mas juristas capazes de dialogar com especialistas em tecnologia.
5.2 Capacitação continuada
O avanço da inteligência artificial é dinâmico, e a atualização deve acompanhar esse ritmo. Programas de capacitação permanentes, voltados ao letramento digital, são essenciais para evitar que o conhecimento adquirido se torne obsoleto em pouco tempo. A continuidade formativa garante maior solidez na compreensão dos novos desafios.
5.3 Parcerias multidisciplinares
A complexidade da inteligência artificial exige diálogo entre diferentes áreas do saber. O Direito, por si só, não dispõe de todos os instrumentos para enfrentar questões algorítmicas, técnicas ou éticas. A cooperação multidisciplinar permite que a governança seja construída de forma mais abrangente e equilibrada, integrando perspectivas jurídicas, tecnológicas e sociais.
5.4 Cultura crítica e ética
Mais do que o uso eficiente de ferramentas digitais, o letramento exige a formação de uma cultura crítica. Isso significa questionar a confiabilidade de sistemas, analisar os impactos de longo prazo e compreender as implicações éticas de cada escolha tecnológica. Sem essa dimensão reflexiva, o risco é reduzir o letramento a um treinamento técnico, insuficiente para lidar com os dilemas que a inteligência artificial impõe ao Direito.
6. O letramento digital como competência civilizatória
O letramento digital não deve ser tratado como habilidade complementar, mas como competência essencial do século XXI. Assim como a alfabetização foi, em seu tempo, condição para o exercício da cidadania, o letramento digital é hoje requisito para atuar criticamente em sociedades altamente tecnológicas.
No Direito, a urgência é ainda maior. Cabe garantir que a IA seja instrumento de promoção da justiça e não fator de opacidade ou exclusão. Juristas preparados são fundamentais para assegurar que as decisões permaneçam sob crivo humano e democrático.
Conclusão
A inteligência artificial não substituirá os juristas, mas exigirá deles novas competências. O letramento digital é o passaporte para essa nova era, em que a racionalidade jurídica deve dialogar com a racionalidade algorítmica sem submeter-se a ela.
A ausência desse preparo pode gerar desinformação, perda de habilidades críticas, aumento das desigualdades e violações éticas. Por outro lado, sua adoção consciente abre caminho para maior eficiência, fundamentações mais consistentes e um sistema de justiça mais acessível e equilibrado.
Investir em letramento digital não é opção: é uma necessidade civilizatória. Ao Direito cabe liderar esse movimento, mantendo-se fiel à sua missão de resguardar a justiça e a democracia.


