MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. A business judgement rule e a responsabilidade civil dos administradores de sociedades anônimas no Direito brasileiro

A business judgement rule e a responsabilidade civil dos administradores de sociedades anônimas no Direito brasileiro

Este artigo traz um breve panorama sobre o art. 159 da lei das S.A. e a aplicação da business judgement rule no Direito brasileiro.

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Atualizado em 19 de agosto de 2025 15:13

O art. 159 da lei das S.A. disciplina a ação de responsabilidade do administrador das sociedades anônimas por danos causados à companhia. Trata-se de mecanismo essencial para a proteção do patrimônio das companhias e para o desenvolvimento do mercado, com a dupla função de reparação do dano causado e de constituir meio de controle da atuação dos administradores, que concentram importante poder decisório na ocupação do órgão de gestão1. A exposição de motivos da lei das S.A. explicita a importância do tema, ao indicar que a seção dos arts. 154 a 161 da lei das S.A. "torna efetiva a imprescindível responsabilidade social do empresário".

Como pontua Nelson Eizirik, o sistema estabelecido pela lei das S.A. busca estabelecer um equilíbrio entre poder e responsabilidade2. Um dos meios empregados pelo legislador para a promoção desse equilíbrio foi a previsão, no §6º do art. 159, de que o juiz poderá reconhecer a exclusão da responsabilidade do administrador se demonstrado que ele agiu de boa-fé e visando ao interesse da companhia.

A norma inclui, no Direito brasileiro, aspectos da business judgement rule cunhada no Direito norte-americano, embora com algumas diferenças3. A business judgement rule do Direito norte-americano é apontada como uma das doutrinas fundamentais do Direito comercial, e tem o intuito de limitar a revisão do mérito da decisão negocial por juízes e árbitros.4

Os principais fundamentos para a aplicação da regra são que os julgadores podem não ter a capacidade de compreender totalmente o racional para a tomada de decisões negociais e a dinâmica da realidade da atividade empresarial, e que o receio de responsabilização posterior por eventual insucesso de decisões pode coibir os administradores de assumir riscos que são inerentes à atividade e afastar pessoas competentes do exercício desses cargos.5

No Brasil, a regra também é conhecida como "regra de liberdade da decisão negocial"6 ou "regra de decisão empresarial"7. A doutrina explica que essa regra decorre do reconhecimento de que a atuação do administrador ocorre a partir do cumprimento de uma obrigação de meio, não de resultado, de modo que o administrador não pode ser responsabilizado por eventuais resultados ruins ou decisões que tiveram impactos possivelmente negativos na companhia se tiverem procedido em observância às normas de diligência e lealdade, acreditando se tratar da melhor decisão a ser tomada na condução dos negócios.8

Embora exista um óbice à integral compreensão de como a legislação tem sido aplicada para dirimir conflitos societários, representado pela crescente utilização da arbitragem (que, via de regra, é sigilosa) para dirimir esse tipo de conflito, é possível identificar decisões da Comissão de Valores Mobiliários que fazem referência à business judgement rule. A título de exemplo, são destacados os julgamentos do PAS CVM RJ2016/7197, em 19 de novembro de 2019, e do RJ2005/1443, em 10 de maio de 2006.  

No primeiro (e mais recente), o colegiado da CVM decidiu, por unanimidade, pela absolvição dos acusados da imputação de descumprimento de seus deveres de diligência, na qualidade de membros do conselho de administração de uma companhia aberta. O diretor relator Carlos Alberto Rebello Sobrinho indicou a necessidade de análise da questão sob o prisma da business judgement rule em seu voto, e o então presidente da CVM, Marcelo Barbosa, apresentou manifestação de voto em que explicou que a análise da aderência da conduta dos administradores ao padrão de diligência previsto na lei deve ser feita com foco no aspecto procedimental - isto é, a observância ao dever de diligência e lealdade consiste na forma como o administrador atua, não no conteúdo final das suas decisões.

No segundo caso, alguns dos acusados foram absolvidos das imputações e outros tiveram aplicadas penas de multas e advertências. No voto do diretor relator Pedro Oliva Marcilio de Sousa, é feita referência à jurisprudência norte-americana e a sua recorrente recusa em adentrar no mérito de decisões da administração de companhias, em razão da avaliação da capacidade do Poder Judiciário de substituir a administração, sobretudo tendo em vista que a revisão leva em conta mais informações do que estavam disponíveis à administração no tempo de tomada das decisões e que a decisão negocial não pode ser analisada fora do contexto em que se insere. O diretor relator consignou que foi por esses aspectos que o Poder Judiciário norte-americano criou a business judgement rule, e concluiu que podem ser utilizados, no Brasil, os mesmos padrões de conduta aplicados nos Estados Unidos em relação ao dever de diligência.

A aplicação do art. 159, §6º, abre margem para interpretação e certa discricionariedade do julgador, por trazer elementos relativamente abertos, como boa-fé e o intuito de atuar no interesse da companhia. Assim, é necessária cautela na sua aplicação, para que a norma não sirva de justificativa genérica para exonerar o administrador de responsabilidade quando tal responsabilização é cabível - o que acabaria por minar o intuito do legislador de "tornar efetiva a imprescindível responsabilidade social do empresário".9

_______

1 EIZIRIK, Nelson. A Lei das S.A. Comentada. Volume II - Arts. 121 a 188. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 398/402.

2 EIZIRIK, Nelson. A Lei das S.A. Comentada. Volume II - Arts. 121 a 188. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 398/400.

3 Embora existam algumas diferenças entre o business judgement rule, cujas minúcias fogem ao escopo desta breve análise, expostas por Mariana Pargendler em trabalho sobre o tema: PARGENDLER, Mariana. Responsabilidade civil dos administradores e business judgement rule no direito brasileiro. Revista dos Tribunais, v. 953, 2015.

FISCHEL, Daniel R. The business judgement rule and the Trans Union case. The Business Lawyer, v. 40, n. 4, ago. 1985.

FISCHEL, Daniel R. The business judgement rule and the Trans Union case. The Business Lawyer, v. 40, n. 4, ago. 1985, p. 1439.

6 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas, 3º volume: artigos 138 a 205. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 323.

7 PARGENDLER, Mariana. Responsabilidade civil dos administradores e business judgement rule no direito brasileiro. Revista dos Tribunais, v. 953, 2015, p. 27.

8 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas, 3º volume: artigos 138 a 205. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 323/324.

9 Termos utilizados na Exposição de Motivos da Lei das S.A.

Carolina Telles

Carolina Telles

Mestranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Sócia de JCL Telles Advocacia e L. Telles Advogados.

Leonardo Telles

Leonardo Telles

Sócio-Fundador do escritório J.C.L. Telles Advocacia.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca