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Brasil ainda conta galpões enquanto o mundo valoriza marcas e know-how

O Brasil segue medindo estoques e tijolos, enquanto o mundo já precifica ideias, marcas e know-how. O invisível é o essencial.

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Atualizado às 11:07

A miopia nacional diante da revolução global

Enquanto o mundo desenvolvido já se deu conta de que o valor não está mais em armazéns de concreto, mas em algoritmos e marcas, o Brasil insiste em medir sua economia como se ainda estivéssemos nos anos 1970.

O relatório World Intangible Investment Highlights 2025, da WIPO - Organização Mundial da Propriedade Intelectual, recentemente publicado, não deixa margem a dúvidas:

Os ativos intangíveis superaram os tangíveis e hoje são o verdadeiro motor da riqueza global.

Entre 2008 e 2024, os intangíveis cresceram a um ritmo três vezes superior ao dos bens físicos. Chegaram a US$7,6 trilhões em 2024, representando 14% do PIB mundial.

Enquanto isso, seguimos celebrando investimentos em galpões, máquinas e estoques como se a economia pudesse ser explicada apenas pelo concreto e pelo aço. É o retrato perfeito da cegueira econômica brasileira que devemos lutar para reverter.

O exemplo norte-americano que deveria nos inspirar

Nos Estados Unidos, 90% do valor das empresas do S&P 500 está ancorado em intangíveis. Sim, praticamente todo o valor das empresas americanas atuais é decorrente de intangíveis.

Não é exagero: marcas, software, dados, inteligência artificial e capital humano representam a esmagadora maioria da riqueza corporativa.

O mercado de capitais norte-americano precifica ideias, não depósitos de mercadorias, que inclusive muitas vezes nem mesmo ficam em território americano logo sequer são contabilizados como riqueza do país em si.

Enquanto lá se entende que o valor de uma empresa está no que ela cria e não no que ela possui de físico, no Brasil ainda se discute somente a metragem do terreno e o maquinário instalado.

Não que tais itens não tenham seu valor, mas essa mentalidade fabril, de contabilizar tijolos e vigas, nos condena à obsolescência de vender barato o que temos de mais precioso: nossa criatividade, nosso design, nossa tecnologia, nossas marcas.

O atraso brasileiro poderia ser corrigido pelos próprios empresários

O déficit de mensuração dos ativos intangíveis no Brasil não é apenas um problema estatístico: é um problema de governança societária. Estudos do INPI indicam que até 70% dos investimentos em intangíveis não aparecem nos balanços das empresas.

Com isso, sociedades empresárias, sejam elas limitadas ou sociedades por ações, permanecem subavaliadas, investidores são induzidos a erros de percepção e decisões estratégicas são tomadas com base em números que não refletem a realidade.

Esse vácuo mina a transparência e a previsibilidade, pilares da boa governança. Diretores e conselheiros deliberam sem informações completas, assembleias decidem sobre dividendos sem considerar o valor econômico efetivo, e minoritários ficam privados de dados essenciais para avaliar a saúde e a competitividade da empresa.

Trata-se de um risco jurídico e econômico que, na prática, afeta o ambiente de negócios como um todo.

A) Como resolver o problema na prática societária

A superação dessa lacuna passa pela adoção de instrumentos contratuais e estatutários que imponham a consideração dos intangíveis como parte inseparável do valor da empresa.

Algumas soluções possíveis incluem:

Cláusula de valoração ampliada em acordo de acionistas:

"Na hipótese de avaliação da sociedade para efeitos de alienação, entrada ou saída de acionistas, ou apuração de haveres, deverá ser obrigatoriamente considerado, além do patrimônio líquido contábil, o valor econômico dos ativos intangíveis, tais como marcas, softwares, bases de dados, know-how, carteira de clientes e capital organizacional, aferidos por laudo independente."

Comentário: Idealmente, em realidade, tais ativos devem ser valorados anualmente, consensualmente pelos sócios ou acionistas.

Cláusula de apuração de haveres com intangíveis:

"A apuração de haveres decorrente de retirada, exclusão ou falecimento de sócio será realizada com base em balanço de determinação, devendo o perito avaliar e atribuir valor aos ativos intangíveis, inclusive caso não registrados contabilmente, de modo a refletir o valor econômico efetivo da sociedade."

Comentário: É preciso, sobretudo, inserir nos atos societários as formas de se aferir o valor econômico efetivo da sociedade. 

Cláusula de disclosure obrigatório: "A administração da companhia deverá, anualmente, elaborar relatório descritivo e avaliativo de seus ativos intangíveis relevantes, incluindo indicadores de capital intelectual, bases de clientes, softwares e marcas, para fins de apresentação aos acionistas e auditores independentes."

Comentário: Sempre que o valor é avaliado anteriormente a um evento societário relevante (venda, por exemplo) ele é muito mais sólido e defensável, inclusive para fins de valuation.   

B) Benefícios jurídicos e estratégicos

A adoção dessas cláusulas não apenas aproxima a empresa brasileira das melhores práticas de governança, mas também reduz litígios societários, fortalece a posição dos minoritários e assegura que a avaliação da empresa reflita sua verdadeira capacidade de geração de valor.

Além disso, protege o país contra a prática recorrente de exportar barato ativos intangíveis, muitas vezes mascarados sob alienações desvalorizadas.

C) Alinhamento com padrões internacionais

Mercados mais maduros já incorporam tais práticas de disclosure e avaliação. A ausência desses mecanismos no Brasil não é um detalhe, mas sim um fator que deprecia o valor de mercado das companhias nacionais e mantém nosso mercado de capitais em posição subalterna.

Não é à toa que muitas empresas têm deixado a B3 a transferido seus ativos societários para outros locais, sobretudo a bolsa norte-americana.

Exportamos commodities e ignoramos intangíveis

O discurso oficial repete à exaustão que o Brasil é um gigante do agronegócio e das commodities.

Mas o que não se diz é que até essas exportações carregam tecnologia, genética, know-how logístico e marcas.

Quando exportamos soja, não devemos exportar apenas o produto: exporta-se ciência agrícola. Não se vende apenas carne: Deveríamos vender reputação de qualidade e sustentabilidade.

Só que há um problema: não reconhecemos isso. Pior, permitimos que esse valor seja apropriado no exterior. Marcas brasileiras viram estrangeiras. Tecnologias desenvolvidas aqui são monetizadas lá fora. O país exporta apenas uma parte do que poderia, ou seja, o produto físico. O valor invisível que deveria ser seu maior diferencial sequer é contabilizado e muito menos representa faturamento.

Nossa carne, por exemplo, recebe outras marcas, outras embalagens e é vendida como se fosse objeto de outros fabricantes. Isso é um erro estratégico e perdemos esses valores, historicamente.

O direito ainda está preso a lajes e tijolos

A economia global está em revolução, mas o Direito brasileiro permanece refém de uma mentalidade arcaica, a de avaliar riqueza empresarial como se vivêssemos em pleno século XX.

Em disputas societárias, o foco permanece restrito a imóveis, estoques, máquinas e terrenos: símbolos visuais e palpáveis que, embora tradicionais, ignoram o valor essencial dos ativos intangíveis.

A) Jurisprudência estagnada: Balanço patrimonial e ausência de intangíveis

O TJ/SP, ao enfrentar casos de apuração de haveres de sócios retirantes, adota critérios que consagram essa visão conservadora.

A jurisprudência majoritária, alinhada ao entendimento do STJ, exige que o critério de apuração seja o do "balanço especialmente levantado", com base no patrimônio líquido contábil e no custo histórico, desprezando o valor econômico e futuro da empresa.

Ainda que em casos específicos, como sociedades digitais, se reconheça a relevância dos intangíveis, tal reconhecimento é exceção: recursos como marcas registradas podem ingressar no balanço patrimonial, mas são a rara exceção que confirma a regra TJ/SP. Ou seja: somente quando o ativo intangível já figura nos livros contábeis é que o Direito passa a considerá-lo, e não o contrário.

B) A cultura jurídica do "valor contábil"

Essa cultura jurídica do "valor contábil", fiel ao princípio do conservadorismo e à escriturização pelo custo (e sua depreciação), já foi superada pela economia global, mas permanece enraizada nas cortes brasileiras.

Ignora-se deliberadamente o valor econômico real, a reputação de marca, a base de clientes, os algoritmos, o software proprietário e o capital humano, ingredientes centrais da criação de riqueza moderna.

Esse atraso produz decisões que desvalorizam sociedades inteiras nas disputas judiciais, operam como antídotos à inovação e relegam a economia brasileira a um patamar inferior, no qual o invisível, e valorizado, simplesmente não existe.

Essa cultura jurídica do "valor contábil" é conservadora, anacrônica e nociva. Ela perpetua decisões judiciais que desvalorizam sociedades inteiras e, na prática, expulsa valor econômico para fora do país.

C) Um desserviço à advocacia empresarial

Advogados empresariais que não contestam essa visão, não preparam suas clientes para evitar isso e não demandam a inclusão expressa dos ativos intangíveis em cláusulas contratuais, pareceres ou due diligence, praticam, com sua omissão profissional, um desserviço grave.

Ao negligenciar valor econômico real, tais profissionais não apenas prejudicam seus clientes, mas compactuam com a manutenção de um sistema jurídico atrasado.

Isso precisa ser criado muito antes dos problemas surgirem. O bom advogado empresarial já deixa suas clientes no "ponto certo" para quando puderem ser vendidas ou receberem investimentos, agregando muito valor a suas clientes.

D) Clamor por modernização

É absolutamente urgente que a prática jurídica e os tribunais saiam dessa era pré-digital. Nas disputas societárias, os contratos de M&A, os pareceres de avaliação e os laudos de due diligence devem partir de um ponto claro: o valor de uma empresa não está nos seus depósitos, mas na sua capacidade de gerar valor futuro, na sua marca, na sua inovação.

A verdadeira riqueza não cabe em balanços históricos obsoletos. Ela reside no invisível, no que não está nos livros contábeis, mas na mente do consumidor, no código-fonte do software, no reconhecimento da marca.

O risco de uma economia colonizada

O Brasil corre o risco de se manter eternamente como um exportador de valor bruto e importador de valor agregado.

A diferença é que agora não falamos de café ou minério, mas de ideias, marcas e tecnologia. É a velha lógica colonial, reeditada sob novas vestes: vendemos barato aquilo que temos de mais precioso e recompramos caro quando reembalado lá fora.

O café e o chocolate são exemplos gritantes de tais práticas, todo brasileiro sabe que vendemos a preços módicos e recebemos após industrialização e nova "roupagem", pagando múltiplas vezes o valor da commodity original.

Se não despertarmos, seremos um país que gera inovação invisível para alimentar estatísticas de riqueza de outros países e empresas.

Conclusão: O invisível é o essencial e o Brasil insiste em desprezá-lo

O relatório da WIPO não deveria ser lido apenas como diagnóstico. É um grito de alerta. O Brasil precisa decidir se continuará refém de uma economia tangível, atrasada e mal medida, ou se terá coragem de assumir que sua verdadeira riqueza está no invisível.

Empresários precisam parar de negociar empresas como se estivessem comprando armazéns.

O Estado precisa abandonar a obsessão pelo tangível e reconhecer o peso dos intangíveis em suas estatísticas.

E nós, advogados, temos de assumir nossa responsabilidade: se não valorizarmos os intangíveis em contratos, litígios e operações, estaremos assinando, com nossa omissão, a sentença de irrelevância econômica do país.

O invisível é o essencial. E enquanto não enxergarmos isso, continuaremos ricos na teoria, mas pobres na prática.

Portanto, a provocação permanece: o Direito brasileiro continuará preso a lajes e tijolos, ou terá a coragem de admitir que o século XXI exige que se precifique o invisível?

O atraso institucional e doutrinário não é apenas desconexo mas também economicamente danoso, estrategicamente incapacita o país e juridicamente expõe seus atores ao erro.

Enquanto o Judiciário e os operadores jurídicos não romperem com essa miopia, o Brasil continuará registrando tijolos e exportando ideias. E no século XXI, quem exporta ideias sem valorizá-las, exporta também seu futuro, sem receber nada por isso.

Lucas Hernandez do Vale Martins

VIP Lucas Hernandez do Vale Martins

Pós-Graduado pela FGVLaw em Processo Civil. Especialista em Contract Law - Harvard Law School. Advogado Societário e Empresarial com projeção Internacional. Relator do Tribunal de Ética da OAB/SP

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