Variações do grafismo
Variações do grafismo vão além da caligrafia: doenças, emoções e até acidentes, como o de Osmar Santos, revelam desafios e surpresas na análise pericial das assinaturas, reforçando a importância do olhar técnico experiente.
quarta-feira, 27 de agosto de 2025
Atualizado em 26 de agosto de 2025 14:47
O grafismo ou a assinatura, em linhas gerais, é a representação gráfica do gesto individual, que determina a própria vontade. Assim, fácil perceber que o fator humano (gesto e vontade) é primordial nesses lançamentos. E com isso, as variações gráficas são praticamente inevitáveis, pois além das variações normais, há outras que podem ser artificiais ou ocasionais.
As variações gráficas normais são aquelas que acompanham o próprio desenvolvimento humano, sendo evolutivas e/ou involutivas, nos períodos abrangidos pela infância e adolescência, maturidade e velhice. No livro "Manual de Grafoscopia", tal questão é descrita com exemplos, como segue:
"A fase da infância caracteriza-se pelo aprendizado da escrita, evoluindo na fase da adolescência, com abandono de alguns modelos caligráficos e adoção de novos, em busca de fixação da própria personalidade. Na fase da maturidade, o escritor acha-se plenamente realizado, em virtude do automatismo adquirido, traçando os caracteres com firmeza e decisão, produzindo escrita livre e desembaraçada, exteriorizando a inteireza de sua personalidade gráfica. A fase da senectude caracteriza-se pela involução da escrita, com sensível enfraquecimento da pressão, surgindo os trêmulos senis inconfundíveis, que constituem elementos de excelente qualidade identificadora."1
Exemplos de variação do grafismo que acompanham o próprio desenvolvimento humano
As variações gráficas artificiais contemplam a intenção (vontade) de modificar o próprio gesto gráfico, visando posterior negativa de autoria ou de legitimidade. São conhecidas como anonimografia e autofalsificação.
A anonimografia é o grafismo disfarçado a fim de elaborar um documento com a ocultação de autoria. Pode ser do tipo colagens, pictográficos (texto feito por meio de desenho ou pinturas), impressos ou manuscritos.
No que se refere a autofalsificação, esta consiste no disfarce da assinatura, por meio de alterações realizadas no ato de seu lançamento, procurando dar-lhe aspecto de falsidade. A negativa de autoria, pelo próprio, complementa a trama. Mas, além dos confrontos e apurações das convergências e esdrúxulas divergências, o perito conhece os fatores básicos que configuram as autofalsificações, como por exemplo:
a) Repulsa a todos os tipos de falsificação;
b) Deformações morfológicas em pontos expressivos do traçado;
c) Artificialismos e variações de elementos técnicos, principalmente no calibre, inclinação axial, progressão e andamento gráfico;
d) Convergências na gênese (ataques, desenvolvimentos e remate).
Assinatura padrão
Assinatura disfarçada em cheque
Há de se considerar, ainda, as variações gráficas ocasionais, que são aquelas decorrentes de fatores físicos, patológicos, acidentais e psicológicos, ou seja, alheios a normalidade da escrita natural, tais como as alterações comportamentais devido a doenças, estados de forte emoção (medo, euforia, depressão etc.), medicamentos, interferências momentâneas (susto, ameaça, distração, posição incômoda), embriaguez ou uso de drogas, sonolência, clima (muito frio ou quente), além de instrumento escrevente defeituoso, suportes com deformações, má iluminação do ambiente e outros fatores intrínsecos e extrínsecos.
Exemplo de assinatura em suporte amassado (cheque), com as falhas sinalizadas
Exemplo da assinatura em suporte íntegro, sem falhas
As variações gráficas decorrentes de patologia também podem ser apuradas na boa perícia. Os trêmulos da Doença de Parkinson, os desalinhamentos decorrentes de dificuldades de visão e outras deformações gráficas decorrentes de doenças ou idade avançada, não impedem a determinação da origem do grafismo .
Exemplos típicos de relativa dificuldade em se determinar legitimidade ou falsidade são os casos de assinaturas em testamentos ou declarações de última vontade que possuem variações devido a doenças, pois requerem maiores observações e interpretações dos peritos. Além disso, em procurações, escrituras, testamentos e documentos cartoriais, as assinaturas normalmente sofrem variações dos seus autores pois, muitas vezes, os serventuários pedem para que, além da assinatura, ou ao invés da mesma, seja escrito o nome, e isso pode confundir o escritor, que mistura os grafismos resultando, muitas vezes, em uma assinatura bem variada.
Nesse sentido, reporta-se ao trecho do livro "Documentoscopia", de autoria de Lamartine Mendes, que aborda tal questão:
"As causas patológicas acarretam deformações na estrutura da escrita e podem ser passageiras ou irreversíveis, dependendo da natureza e da intensidade do morbo. [Há] dois tipos de alterações nas escritas em consequência de moléstias nervosas: as da função motriz, isto é, da mecânica muscular, cujos movimentos deformação a grafia e, dependendo do grau de intensidade, pode até ocorrer a impossibilidade de escrever; e as da função psíquica, ou seja, do cérebro, que configuram o esquecimento das imagens gráficas, a regressão da qualidade do grafismo e a morfologia extravagante."2
Caso emblemático de modificação gráfica foi aquele ocorrido com o locutor esportivo nacionalmente conhecido, Osmar Santos, que causou lesões em áreas de seu cérebro que estão relacionadas à motricidade, à expressão verbal e à compreensão.
Conforme relatado em matéria da revista VEJA (Editora Abril - edição 1471 de 20/11/1996), Osmar Santos sofreu um devastador acidente de automóvel na noite de 22 de dezembro de 1994, quando voltava da cidade de Marília em direção a São Paulo e foi levado incialmente para o centro cirúrgico da Santa Casa de Lins:
"Ele perdeu 3 litros [de sangue], metade do volume total de um homem adulto. A cabeça de Osmar era uma pasta informe, em que se misturavam massa encefálica, terra e pedaços de crânio esmigalhado. Feita uma rápida limpeza na área, os médicos localizaram a fonte de sangramento: a artéria cerebral média. Com os meios de que dispunham, era impossível reconstrui-la. A única saída era fechar a artéria. Assim foi feito.
Transferido de avião para São Paulo, ele deu entrada no hospital Albert Einsten. O sangramento não cessara por completo e do dreno ainda saiam pedações de cérebro. Estima-se que no total ele tenha perdido 4% a 5% de massa encefálica, mas é impossível calcular ao certo. Foi preciso abrir outra vez a cabeça do locutor, agora utilizando da microcirurgia. Ao longo de seis horas, a equipe do Einsten fez uma faxina, retirando coágulos e tecido necrosado. Para complicar o quadro, o locutor sofreria um edema pulmonar e uma trombose na perna direita. Osmar só teve alta dois meses depois do acidente."
Com a alta hospitalar, Osmar passou a realizar intensos tratamentos, tais como sessões de fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional e hidroterapia, apresentando avanços significativos. Entretanto, devido a paralisia de parte do lado direito, não pôde mais contar com a mão direita e passou a escrever com a esquerda. Porém, apresentando retomada da escrita com bom desenvolvimento gráfico e resgate parcial de seu grafismo original, através de fisioterapia, como se verifica na imagem ao lado da matéria da Revista Veja.
Em outra matéria, agora publicada pela Revista da Folha (Edição 197 de 28/1/1996), há uma comparação entre as assinaturas de Osmar Santos antes e depois do acidente, conforme reprodução a seguir:
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Imagem do autógrafo de Osmar Santos antes do acidente |
Imagem do autógrafo de Osmar Santos no dia 15/01/1996, tempos depois do acidente |
Há divergências verificadas na assinatura quanto a morfologia, no tocante aos espaçamentos, progressão e momentos gráficos, que podem ser justificadas pelos danos causados à motricidade de Osmar Santos e pela mudança da mão escritora, da direita para a esquerda.
Além disso, também se verifica a redução/abreviação da assinatura, que originalmente contemplava "Osmar Santos" e passou a ser lançada como "O Santos". Essa simplificação do gesto gráfico se encaixa na 4ª lei do grafismo3, pois "sempre que se torna penoso o ato de escrever, em circunstâncias desfavoráveis, prevalecerá a "lei do mínimo esforço", resultando em simplificações, abreviaturas, letras de forma ou esquemas pouco usuais, buscando abreviar os lançamentos"4.
Entretanto, apesar disso, há diversas identidades entre as assinaturas, consoante descrito abaixo e ilustrado a cores, a seguir:
- lançamentos em letra cursiva;
- comportamento longitudinal em relação a linha de base - sinalizado pela cor vermelha;
- valores angulares e curvilíneos similares;
- proporcionalidade gráfica de grande dimensão entre as maiúsculas e demais minúsculas;
- ataque em ponto e trajetória da maiúscula "O" - sinalizado pela cor verde;
- construção da maiúscula "S" - sinalizada pela cor azul;
- remate da maiúscula "S" com pequeno traço ascendente destrovolvente - sinalizado pela cor amarela;
- interligação da dupla "os" de Santos com remate sinistrovolvente e em ponto no "s" final - sinalizado pela cor lilás.
Assim, percebe-se que as variações no grafismo, especialmente em assinaturas, podem decorrer de uma série de fatores que vão além das simples variações naturais do gesto gráfico. Situações patológicas, emocionais ou acidentais - como exemplificado no caso de Osmar Santos - evidenciam como o fator humano é determinante e, por vezes, surpreendente na análise pericial da escrita.
Conclusão
Numa mescla de convergências e expressivas divergências, saberá o perito experiente, nos casos de variações gráficas ocasionais ou artificiais, interpretar algumas discordâncias como indícios de legitimidade, pois falsidades não buscam divergências. O perito experiente não se limita aos confrontos dos elementos técnicos de ordem geral e genéticos, indo buscar outros fundamentos técnicos nos princípios e casuísticas periciais, para concluir seu trabalho.
Sem qualquer dúvida, todos esses fatores revelam a complexidade e dificuldade de conclusão grafoscópica, para a determinação da origem do grafismo ou assinatura, nesses casos de expressivas variações gráficas. As modificações ocasionais dos grafismos podem confundir o leigo, ou o perito afoito, mas havendo padrões suficientes, bem como informes técnicos da peça questionada, os exames devem resultar corretos e bem fundamentados, aos verdadeiros experts.
Portanto, a boa perícia grafoscópica responde corretamente à questão das variações gráficas, mesmo nos casos de legitimidade com divergências expressivas nos elementos técnicos, desde que haja corretas informações do contexto documental, qualidade técnica da peça de exame e padrões de confronto suficientes e adequados.
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1 livro Manual de Grafoscopia. 4ª ed. Editora Leud, 2023, p.50
2 Lamartine Mendes - livro Documentoscopia. 2ª ed. Editora Millennium, 2003, p.60
3 Leis de Solange Pellat: 4ª Lei do Grafismo: "O escritor que age em circunstâncias em que o ato de escrever é particularmente difícil traça, instintivamente, ou formas de letras que lhe são mais costumeiras, ou formas de letras mais simples, de esquema fácil de ser construído." (livro Manual de Grafoscopia. 4ª ed. Editora Leud, 2023, p.44).
4 Livro Manual de Grafoscopia. 4ª ed. Editora Leud, 2023, p.45.
Tito Lívio Ferreira Gomide
Engenheiro civil e bacharel em Direito. Atua na atividade pericial desde 1978. É autor e coautor de livros técnicos de engenharia diagnóstica e grafoscopia. Foi perito do Instituto de Criminalística da Polícia Civil de São Paulo e presidente do IBAPE-SP, além de coordenador da Divisão de Patologia das Construções do Instituto de Engenharia. É membro da APEJESP e titular da Confederation Internationale des Associations D'Experts et de Conseils da ONU, nº d'0rdre 22-B. Sócio diretor do Gabinete de Perícias Gomide.
Stella Della Flora
Engenheira, pós-graduada e mestre em Engenharia Civil. Especialista em Engenharia Diagnóstica e coautora de livros técnicos. Atua como perita judicial e assistente técnica em processos no judiciário. Coordenadora da Divisão Técnica de Engenharia Diagnóstica do Instituto de Engenharia, associada ao Ibape/RS e sócia do Gabinete de Perícias Gomide.
Silvia Matsu Eguti
Engenheira civil e química. Especialista em Engenharia Diagnóstica, em Documentoscopia e Grafoscopia, e em perícias em áudio, imagens, assinaturas eletrônicas e documentos digitais. É membro da APEJESP e sócia do Gabinete de Perícias Gomide.




