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Cláusulas de não concorrência (non compete) em M&A

Do "caso da juta" à era digital, o artigo mostra como cláusulas de não concorrência evoluíram entre contrato, mercado e antitruste, revelando tensões e novos desafios.

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Atualizado às 09:23

Gostaria de começar esse artigo com um pouco de história, falando a respeito daquele que ficou conhecido como o "caso da juta", e que, mesmo atualmente, merece ter a memória recuperada, pois é emblemático para o assunto de hoje: cláusulas de não concorrência (non compete).

Embora o entendimento atual da jurisprudência e da doutrina caminhe em direção à aceitação de cláusulas de não concorrência como instrumentos legítimos de proteção do investimento, vale recuperar o enredo do "caso da juta" como ilustração provocadora para o nosso tema.

Em janeiro de 1908, foi constituída a Companhia Nacional de Tecidos de Juta. Seu fundador, o conde Álvares Penteado, transferiu o controle da companhia para terceiros - por meio de alienação do estabelecimento comercial, ou seja, trespasse. Cerca de um ano depois, o conde resolveu voltar ao mercado, construindo nova fábrica no mesmo bairro e retomando a mesma atividade. Os novos proprietários viram nisso uma violação implícita à obrigação de não concorrência, ainda que nada estivesse expresso no contrato de compra e venda firmado com o conde.

A discussão chegou ao STF, com Rui Barbosa na defesa do conde. Sua tese: a clientela não se presume cedida; não havendo cláusula expressa de não concorrência, não haveria como restringir a reentrada do alienante no mercado. O Supremo reconheceu que, sem previsão contratual clara, não se poderia exigir do vendedor o dever de se manter afastado da atividade. Fixou-se ali, num tempo em que tais discussões poderiam até soar exóticas, o entendimento de que cláusulas de não concorrência devem ser expressas, deixando clara sua delimitação e finalidade.

No decorrer dos últimos anos, especificamente sobre não concorrência, a doutrina gastou muita tinta na tentativa de encontrar pontos de conexão entre a alienação onerosa de estabelecimento (trespasse) e a alienação de controle. Em que medida podemos tratá-los como similares quando o assunto é cláusula de não concorrência? A discussão segue sem pacificação.

De fato, o que era entendido como exceção contratual passou a ser, em certos contextos, interpretado à luz da boa-fé objetiva como uma obrigação implícita. Isso nos coloca diante de um problema teórico nada trivial: como conciliar a ideia de uma cláusula de não concorrência implícita com os princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência? O risco, aqui, é transformar um princípio de proteção da confiança em um instrumento de restrição de mercado.

A saída convencional tem sido apelar à "razoabilidade": desde que a cláusula seja limitada no tempo, no espaço e no objeto, e esteja voltada à proteção de uma legítima expectativa contratual, ela será válida.

A verdade é que esse critério é, ele próprio, profundamente elástico. Seu conteúdo depende do setor econômico, da posição dos agentes, da interpretação do julgador e do momento histórico. O que é razoável em uma transação envolvendo know-how sensível - cuja replicação pode comprometer o valor do ativo adquirido - pode não ser em uma operação puramente societária, que carregue consigo menos ativos intangíveis ou conhecimento técnico relevante. Sem parâmetros objetivos, corremos o risco de normalizar restrições privadas à concorrência com base em percepções subjetivas de legitimidade.

A situação se torna ainda mais complexa quando nos deslocamos do plano contratual para o plano concorrencial. Uma cláusula de non compete que, sob a ótica civil, seja válida e eficaz, pode ser considerada ilícita sob a ótica do antitruste, e vice-versa. O Direito da Concorrência impõe uma filtragem adicional: mesmo que a cláusula tenha suporte contratual, ela só será lícita se não comprometer a estrutura competitiva do mercado.

O CADE, por exemplo, tem aceitado cláusulas de não concorrência com duração de até cinco anos, desde que estejam devidamente justificadas pela proteção do fundo de comércio e da operação como um todo. Esse entendimento está consolidado na súmula 5/09 do próprio Conselho, segundo a qual "é lícita a estipulação de cláusula de não-concorrência com prazo de até cinco anos da alienação de estabelecimento, desde que vinculada à proteção do fundo de comércio". Ainda assim, esse parâmetro decorre menos de uma fundamentação teórica rígida e mais de um consenso pragmático construído ao longo da prática decisória.

Mas não basta que haja consentimento entre as partes: é preciso que a restrição seja instrumental à transação, e não um subterfúgio para blindar o mercado.

A análise também é política, e não apenas jurídica: considera o grau de concentração do setor, os riscos de abuso e o potencial de fechamento do mercado a novos entrantes. Um caso emblemático ocorreu na União Europeia, envolvendo a Telefónica e a Portugal Telecom, no contexto do acordo de aquisição da Vivo no Brasil, em 2010. As partes haviam incluído uma cláusula de não concorrência que vedava a competição entre elas nos seus respectivos mercados natais: Espanha e Portugal.

Em 2013, a Comissão Europeia concluiu que a cláusula constituía uma restrição por objeto, equivalente a um acordo de partilha de mercado, proibido pelo art. 101 do TFEU - Treaty on the Functioning of the European Union. Aplicou-se multa de ?66,9 milhões à Telefónica e 12,3 milhões de euros à Portugal Telecom1. O non compete foi considerado intrinsecamente anticoncorrencial, e portanto ilegal.

O caso serviu de alerta: mesmo em operações consensuais, cláusulas de não concorrência podem ser consideradas ilícitas não apenas por seus efeitos, mas por sua própria natureza, caso se afastem de sua função acessória legítima e passem a operar como instrumento de partilha de mercado.

Esse embate entre a boa-fé contratual e os limites da ordem econômica é o verdadeiro eixo do problema. E, como via de regra acontece em todo bom problema, não há resposta simples. Há que se tentar equilibrar essas forças para que o resultado seja minimamente harmônico, e portanto mais próximo da validade e eficácia.

Para apimentar, que tal falarmos de uma segunda camada de complexidade? Como se define, por exemplo, concorrência em um mundo no qual a clientela já não entra pela porta de uma loja física, mas por um clique? A lógica espacial da cláusula - que em tese delimita a área de atuação - perde sentido quando o produto é digital ou o alcance é global. Uma cláusula que proíbe atuação em um município é inócua se o cliente está em qualquer lugar do país, ou fora dele, no mundo todo.

Da mesma forma, delimitar o objeto em termos tradicionais pode ser insuficiente quando se trata de ecossistemas digitais e cadeias integradas de valor. Talvez o desafio não esteja apenas em redefinir os limites tradicionais (espaço, tempo, objeto), mas em substituí-los por métricas funcionais, como acesso a bases de dados sensíveis, reconversão de audiência, uso de algoritmos personalizados ou alavancagem de plataformas com vantagem competitiva.

É por isso que as cláusulas de não concorrência precisam ser repensadas não só nos seus elementos tradicionais (tempo, espaço, objeto, partes), mas também nas suas formas de mensuração e enforcement. Como se mede desvio de clientela em plataformas digitais? Como se identifica concorrência em marketplaces ou em modelos direct-to-consumer? E como proteger um ativo intangível - como uma base de dados ou um algoritmo - sem transformar a cláusula em um escudo de monopólio?

Iniciei com o "caso da juta" para mostrar como esse tema se move com o tempo. Em 1908, discutia-se se a alienação da fábrica implicava ou não a transferência de clientela. Hoje, discute-se se o algoritmo implica ou não vantagem concorrencial. Com a modernidade, a questão de fundo ganhou sofisticação e, por conseguinte, complexidade.

E o que mais? Bem, uma cláusula de não concorrência nunca é apenas uma cláusula: ela é um microcosmo das tensões entre contrato e mercado.

As cláusulas de não concorrência também encontram uso em outras áreas do direito, como o trabalhista. Mas seu tratamento em M&A demanda uma abordagem distinta: mais estratégica, mais regulada e, sobretudo, mais consciente do risco concorrencial embutido.

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Farley Menezes

VIP Farley Menezes

Sócio fundador da M2 LAW. Atuação em Mercado de Capitais, M&A | Financiamentos Estruturados, Fundos de Investimento, Reestruturações de Dívida e Contratos Empresariais | Transações Imobiliárias

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