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Visibilidade lésbica: Entre o apagamento e o direito à cidadania plena

Agosto marca a luta por visibilidade lésbica, expondo desafios e avanços na conquista de direitos fundamentais sob a ótica dos direitos humanos.

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Atualizado em 28 de agosto de 2025 14:54

O mês de agosto demarca, no calendário da luta por direitos da população LGBTQIAPN+, duas datas de fundamental importância: o Dia do Orgulho Lésbico (19) e o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica (29). Ambas as efemérides nasceram da necessidade de conferir visibilidade a mulheres historicamente submetidas a um duplo apagamento: na sociedade em geral e, não raro, dentro da própria comunidade LGBTQIAPN+. Elas seguem enfrentando a lesbofobia, a invisibilização e a sistemática negação de direitos.

O dia 19/8 remete a uma data que, em 1983, representou um marco na articulação política das lésbicas no Brasil. O curta-metragem documental Ferros Bar reconstrói esse momento decisivo, ocorrido quando, em plena ditadura militar, um grupo de mulheres ocupou o espaço para resistir à repressão e à censura. O episódio, por vezes referido como o "Stonewall brasileiro", foi fundamental no processo de desconstrução da lógica do silenciamento e contribuiu para a transição das lésbicas do espaço privado para a cena pública, em uma constante (e ainda atual) reivindicação do direito à existência plena.

Treze anos após esse levante, em 29/8/1996, ocorreu o 1º SENALE - Seminário Nacional de Lésbicas, consolidando a organização política do movimento em âmbito nacional. A data foi escolhida, posteriormente, para simbolizar o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, em reconhecimento à importância de criar espaços autônomos de formulação política e reivindicação de direitos, fortalecendo as pautas específicas das mulheres lésbicas na agenda dos direitos humanos no país.

A partir dessa movimentação política e da contínua resistência, houve avanços. No entanto, a invisibilização das mulheres lésbicas ainda persiste e não é um fenômeno isolado. Está intrinsecamente ligada a uma estrutura social patriarcal e cis-heteronormativa que sistematicamente nega a autonomia e a legitimidade das relações entre mulheres, relegando-as a uma condição de subalternidade e negando-lhes possibilidades de existir, construir famílias e viver de forma livre e sem medo.

Os desafios no campo do Direito:

No campo jurídico, essa invisibilidade se traduz na violação e na negação de direitos. Embora a formação de famílias por casais homoafetivos tenha sido reconhecida pelo STF em 2011 (ADPF 132 e ADIn 4.277), sua concretização ainda encontra inúmeros obstáculos.

Um exemplo concreto dessa realidade são as barreiras impostas pelo provimento 63/17 do CNJ, que restringe o reconhecimento extrajudicial da dupla maternidade em casos de inseminação caseira. A norma aprofunda o abismo entre os direitos formalmente reconhecidos e a realidade - principalmente daquelas mulheres em situação de acentuada vulnerabilidade social, que recorrem a este método por não terem acesso aos onerosos serviços privados de reprodução assistida. Na prática, a norma acaba por afastar, para estes casais, a aplicação da presunção de filiação prevista no CC para concepções ocorridas na constância do casamento (art. 1.597), gerando um tratamento desigual.

Essa desconexão entre a norma e a vida nos recorda da importância de balizas internacionais de direitos humanos, como a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Atala Riffo e Filhas vs. Chile (2012), que estabeleceu que a orientação sexual não pode ser utilizada como critério para restringir direitos parentais. A decisão reafirma que as famílias formadas por pessoas LGBTQIAPN+ merecem igual respeito, proteção e reconhecimento.

A atuação da Defensoria Pública na garantia de direitos

É nesse contexto de lacunas e barreiras que a atuação de instituições como a Defensoria Pública se torna central. Ao lado da sociedade civil, temos trabalhado para garantir o reconhecimento de direitos fundamentais nos campos judicial e extrajudicial, bem como na construção e fiscalização de políticas públicas em favor de mulheres lésbicas, incluindo o direito à dupla maternidade.

As Defensorias Públicas acompanham de perto a materialização dessas precariedades na vida de mulheres lésbicas em situações de acentuada vulnerabilidade: mães; periféricas; negras; vítimas de violência institucional e familiar; em contextos de privação de liberdade; desfeminilizadas; em situação de rua, dentre outras.

Essas realidades, muitas vezes negligenciadas, demonstram que datas que enfatizam o orgulho e a visibilidade lésbicas são mais do que comemorativas; devem ser um chamado contínuo à ação. Precisamos avançar no reconhecimento de direitos, na formação continuada de agentes públicos e na transversalidade das políticas públicas de saúde, educação, assistência social e segurança, para que contemplem as especificidades lésbicas.

Afinal, visibilidade, sob a ótica dos direitos humanos, é mais do que ser notada. É ser considerada na formulação das leis, nas decisões judiciais e nas políticas públicas. É a garantia de que nenhuma mulher terá sua existência ou seus direitos questionados.

Vanessa Alves Vieira

Vanessa Alves Vieira

Defensora Pública do Estado de São Paulo. Coordenadora do Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade Sexual e de Gênero da Defensoria Pública de São Paulo. Coordenadora da Comissão da Diversidade Sexual da ANADEP.

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