Violência vicária e violência doméstica: A dupla vitimização
Nem sempre a violência acaba quando o relacionamento termina. Em muitos casos, o fim da relação marca apenas o início de uma nova forma de agressão.
segunda-feira, 1 de setembro de 2025
Atualizado às 15:28
Nem sempre a violência acaba quando o relacionamento termina. Em muitos casos, o fim da relação marca apenas o início de uma nova forma de agressão: mais velada, mais perversa e igualmente destrutiva. A violência vicária, termo cunhado pela psicóloga argentina Sonia Vaccaro, descreve essa continuidade da violência por meio da instrumentalização de terceiros, como filhos, familiares ou até animais de estimação para atingir a vítima principal, quase sempre uma mulher.
Ainda que separadas fisicamente, muitas mulheres seguem sendo agredidas emocionalmente quando seus agressores utilizam aquilo que lhes é mais precioso: os filhos (forma mais comum da violência vicária presente nas demandas de violência doméstica e familiar contra a mulher).
Trata-se de um mecanismo de controle e sofrimento que transcende a relação conjugal, perpetuando-se através de ameaças, manipulação, maus-tratos e até abuso psicológico das crianças. O agressor sabe exatamente como ferir.
Essa modalidade de violência evidencia que o agressor não se transforma após a separação. Ao contrário, ele adapta sua forma de ferir. A violência vicária mostra que o comportamento violento não é episódico ou impulsivo, mas estrutural. E, muitas vezes, quando as agressões físicas cessam, o sofrimento continua por meio de ameaças veladas, falsas acusações, disputa abusiva pela guarda dos filhos e isolamento da vítima de sua rede de apoio.
Esse isolamento social é uma das principais consequências da violência vicária: afasta-se a vítima de tudo e de todos que poderiam lhe oferecer suporte, mergulhando-a ainda mais na dependência emocional e no ciclo de violência.
O impacto dessa violência nos filhos é profundo e muitas vezes invisibilizado. Crianças que testemunham ou sofrem esse tipo de abuso podem desenvolver transtornos emocionais, dificuldades comportamentais, ansiedade, depressão e uma percepção distorcida das relações afetivas. Trata-se de uma violência silenciosa, que agride em camadas, deixando marcas que muitas vezes só se revelam anos depois.
No Brasil, a violência vicária ainda carece de um reconhecimento legal explícito. A ausência de uma tipificação própria faz com que os casos sejam frequentemente negligenciados ou tratados de forma fragmentada. No entanto, o PL 3880/24 surge como um fôlego importante nesse cenário, ao propor a inclusão expressa da violência vicária no rol das violências previstas pela lei Maria da Penha.
Assim conceitua o projeto: "VI - a violência vicária, entendida como qualquer forma de violência praticada contra filho, dependente ou mesmo outro parente ou pessoa da rede de apoio da mulher visando atingi-la".
Essa alteração normativa representa não apenas um avanço jurídico, mas também um marco simbólico de reconhecimento e validação da dor de milhares de mulheres e crianças que hoje vivem essa realidade sem nome e sem amparo.
Mesmo sem tipificação específica, a prática pode - e deve - ser enfrentada, inclusive superando as polêmicas em torno da lei de alienação parental, lançando mão de outros instrumentos legais já existentes, como as medidas protetivas de urgência, os crimes de maus-tratos (art. 136 do CP), ameaça (art. 147 do CP), violência psicológica contra a mulher (art. 147-B do CP) e a própria legislação que tutela crianças e adolescentes. Mas a ausência de um nome claro, de um conceito específico, ainda dificulta a conscientização social e a atuação do sistema de justiça.
Na prática da advocacia criminal, o desconhecimento desse tipo de violência ainda é gritante. A análise dos casos frequentemente ignora as nuances emocionais e psicológicas que permeiam essas relações, privilegiando uma visão estritamente legalista que não dá conta da gravidade dos danos causados. Por outro lado, na advocacia familiarista, o desafio está em desvelar essas violências ocultas nos litígios de guarda e convivência, nos quais o agressor, muitas vezes, utiliza o próprio sistema judicial como meio de continuar a exercer seu poder e controle.
Ambas as esferas precisam caminhar para um olhar mais sensível e comprometido com a proteção integral das vítimas - não apenas da mulher, mas também das crianças e adolescentes que se tornam peões nesse jogo cruel. A ausência de um reconhecimento claro e de uma atuação firme só fortalece a impunidade e perpetua a cultura de violência.
Reconhecer, nomear e enfrentar a violência vicária é uma urgência social. Não basta esperar que o sistema penal atue quando o dano já se concretizou. É preciso pensar em prevenção, educação e conscientização para quebrar o ciclo de violência que segue se perpetuando sob novas formas, cada vez mais sutis e igualmente devastadoras.



