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É possível ser legal e imoral? O pregoeiro no espelho da ética

Entre lei e justiça, o pregoeiro enfrenta dilemas éticos que vão além da formalidade: Cumprir normas ou servir ao verdadeiro interesse público?

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Atualizado às 09:37

O pregoeiro e o dilema de Antígona: Responsabilidade além da formalidade

No clássico grego de Sófocles - "O dilema de Antígona", trata-se de uma obra de ficção baseada na mitologia grega para criar uma narrativa que explora temas como a lei, moralidade, família e justiça. De um lado, a lei (conhecida como lei de Creonte) condenava o sepultamento do irmão de Antígona, de outro, estava a própria Antígona, que desafiou a lei escolhendo o que era justo, mesmo que isso custasse a morte.

No mundo jurídico contemporâneo, assim como o conflito entre o direito positivo e o direito natural, o pregoeiro também enfrenta dilemas - não tão trágicos, talvez, mas igualmente éticos.

Cumprir a letra da lei é suficiente quando a finalidade pública está comprometida? É possível ser legal, mas imoral?

Em tempos de governança, integridade e controle social, a figura do pregoeiro deixa de ser um mero executor de ritos para se tornar um agente de legitimidade institucional.

A função pública como imperativo ético

Kant já nos ensinava que o dever moral deve ser exercido por respeito à lei, mas não qualquer lei, e sim aquela que resiste ao crivo da razão e da universalidade. Nesse sentido, quem conduz um certame licitatório não deve apenas obedecer normas, mas compreender o espírito delas. Quando um edital é mal conduzido, um prazo é ignorado, uma entrega é negligenciada, não falha apenas o processo, falha o ideal republicano que o justifica.

O pregoeiro que atua sem essa consciência não é imparcial: é indiferente. E a indiferença "é mais perigosa que a ira e o ódio."

Licitação não é um rito - é um pacto social

A licitação pública é o espaço institucional onde se realiza o encontro entre a eficiência administrativa e a ética do dever público. Mas nem todas as licitações obedecem ao mesmo regime. As entidades do Sistema S e outras organizações sem fins lucrativos operam sob regulamentos próprios, ainda que o fato de não seguirem, formalmente, a lei 14.133/21, não as exime dos princípios constitucionais que regem a Administração Pública.

Afinal, quem lida com dinheiro público ou parafiscal tem o poder-dever de agir segundo o interesse coletivo, não segundo conveniências internas.

Compliance, accountability e governança: não são modismos.

A ética pública moderna repousa sobre três pilares:

  • Accountability: Prestar contas de forma ativa e clara;
  • Compliance: Agir conforme as regras, internas e externas;
  • Governança: Conduzir com visão de futuro e legitimidade.

Esses conceitos não são cosméticos: são instrumentos de coerência moral em estruturas complexas. E onde há recursos públicos, há obrigação de governança - e não apenas mera gestão.

A responsabilidade do pregoeiro (e dos que se calam)

A responsabilidade civil do pregoeiro não é uma abstração - é um dado jurídico concreto. Omissões, tolerância a vícios, aceitação de entregas incompatíveis, ou mesmo a ausência de fiscalização adequada podem gerar responsabilização pessoal. Mas mais do que temer a responsabilização, o pregoeiro, além de qualquer agente público, deve compreender a dimensão existencial de sua função.

Não somos apenas operadores de normas. Somos "nós mesmos e as nossas circunstâncias". E, portanto, agir conforme a lei não basta. É preciso agir conforme o princípio.

Conhecer para transformar

Nietzsche dizia que a ignorância protege, entretanto, apenas até o momento em que a realidade cobra a conta. No serviço público, não conhecer o processo é negligência. Dominar o processo é um dever. E zelar pela integridade dele, uma obrigação constitucional.

Conclusão

Ser pregoeiro é ser um elo entre a legalidade e a legitimidade. E servir a sociedade através do procedimento licitatório, é ser um intérprete vivo dos princípios constitucionais. Quem participa de uma licitação não apenas aplica regras, mas de fato realiza um projeto de sociedade. E, por isso, a maior falha não é errar no rito, e sim esquecer o porquê ele existe.

Antonio Filipe de Araújo Monteiro

Antonio Filipe de Araújo Monteiro

Advogado especialista em Direito Civil, tecnologia e conformidade. Integro hermenêutica crítica à prática jurídica, unindo inovação, rigor técnico e visão interdisciplinar.

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