Há a necessidade de crime para serem concedidas medidas protetivas?
A redação dúbia das leis pode levar a interpretações distintas da que o legislador pretendia.
terça-feira, 2 de setembro de 2025
Atualizado às 15:11
Antes de tudo, deixo claro que esse artigo não é uma crítica a magistrados ou decisões judiciais, mas sim expresso a minha opinião de forma respeitosa sobre fatos que precisam ser mudados.
Em 2023, a lei Maria da Penha foi alterada com a finalidade de que as mulheres, mesmo que não realizem a notícia crime, possam solicitar medidas protetivas de urgência.
Em alguns casos, o crime até existe; entretanto, algumas mulheres preferem não realizar a notícia em sede policial, em especial quando se trata de crimes de ação penal pública condicionada e em crimes de ação penal privada.
Outras mulheres, mesmo não sendo vítimas de qualquer crime, entendem que há a necessidade de medidas protetivas de urgência ao final de um relacionamento, pois temem que o ex possa repetir atitudes que supostamente teve em relacionamentos com outras mulheres. Ainda sobre casos em que não tenha ocorrido qualquer crime, muitas mulheres solicitam medidas protetivas de urgência pelo fato de o ex ser alguém perigoso para a sociedade, como um narcotraficante.
Entretanto, infelizmente, alguns magistrados não estão concedendo medidas protetivas de urgência por alegarem que não há crime contra determinadas mulheres. Seria tal decisão correta em relação ao nosso ordenamento jurídico?
Vejamos o que diz o parágrafo quinto do artigo dezenove da lei 11.340/06 (lei Maria da Penha):
"Art. 19. As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida.
§ 5º As medidas protetivas de urgência serão concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência. (incluído pela lei 14.550, de 2023)"
Em primeiro lugar, há a necessidade de o juiz ser provocado pela suposta vítima ou pelo Ministério Público, não podendo tais medidas protetivas de urgência serem concedidas de ofício.
Ao realizar uma rápida leitura do parágrafo quinto do art. 19 da lei Maria da Penha, dá a entender que o texto diz que não há a necessidade de um crime para que a mulher possa ter medidas protetivas de urgência, entretanto, com a leitura mais apurada, vemos que não é bem assim.
Diz o parágrafo quinto do art. 19 da lei Maria da Penha:
"As medidas protetivas de urgência serão concedidas independentemente da tipificação penal da violência (...)"
Tipificação é o tipo de crime, ou seja, não quer dizer se há crime ou não, mas sim qual o tipo de crime, o chamado "fato típico" no tripé do que é um crime (fato típico, ilícito ou antijurídico e culpável).
Vamos à continuação do texto:
"(...) do ajuizamento de ação penal ou cível (...)"
Nessa parte do texto, percebemos que não há a necessidade de haver um processo anterior para que a mulher em situação de violência possua medidas protetivas de urgência.
Continuando:
"(...) da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência."
A parte final do parágrafo quinto do art. 19 da lei Maria da Penha nos diz que não há a necessidade de uma notícia crime ou de inquérito policial, ou seja, independentemente de a Polícia Civil ou o Ministério Público tomarem qualquer providência investigativa, sim, a mulher possui o direito de ser protegida por medidas protetivas de urgência.
Percebam que, em nenhum momento, o parágrafo quinto do artigo dezenove da lei Maria da Penha diz que não há a necessidade de que exista um crime para que a mulher seja protegida pela lei Maria da Penha, mas sim que não importa qual o crime, repito o texto da lei: "independentemente da tipificação penal".
Se não fosse o suficiente, o parágrafo quarto do art. 19 da lei Maria da Penha diz que as medidas protetivas de urgência "poderão ser indeferidas no caso de avaliação pela autoridade de inexistência de risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes." Ou seja, o fato de não haver um crime pode inclinar a decisão de um juiz a não conceder medidas protetivas de urgência por não haver aparente risco, mesmo quando uma mulher diz se sentir vulnerável diante da periculosidade do ex.
Sobre o fato de a vítima dizer que está em risco, a palavra dela tem valor especial, conforme o art. 45 do FONAVID, além da decisão do STJ AgRg no AREsp 1236017/ES.
Enunciado 45 do FONAVID:
"As medidas protetivas de urgência previstas na lei 11.340/06 podem ser
deferidas de forma autônoma, apenas com base na palavra da vítima, quando ausentes
outros elementos probantes nos autos". (Aprovado no IX FONAVID - Natal (RN)).
O FONAVID inclusive emitiu o enunciado 37, no qual deixou clara a não necessidade de um crime para que medidas protetivas de urgência sejam concedidas:
Enunciado 37: A concessão da medida protetiva de urgência não está condicionada à
Existência de fato que configure, em tese, ilícito penal. (Aprovado no VIII FONAVID-BH. Revogado o enunciado 5 em razão da aprovação deste enunciado)"
Como os enunciados do FONAVID não possuem valor de lei, há a clara necessidade de alteração no parágrafo quinto do art. 19 da lei Maria da Penha, para que não haja qualquer interpretação que não seja a de que, mesmo que não haja a prática de um crime, a mulher que se sinta vulnerável ter o direito a ser protegida por medidas protetivas de urgência. Do contrário, mulheres que não foram vítimas de qualquer crime, mas que sabem o que pode ocorrer em caso do fim de um relacionamento, diante do temperamento do companheiro, estarão reféns da própria sorte caso não consigam medidas protetivas de urgência.


