Direito aduaneiro - Evolução dos títulos warrant
Do decreto 1.102/1903 à era digital e à reforma tributária de 1903/2025.
segunda-feira, 8 de setembro de 2025
Atualizado às 10:04
1. Introdução
A promulgação do decreto Federal 1.102, de 21/11/1903, estabeleceu as bases jurídicas para a disciplina dos armazéns gerais e, sobretudo, para a criação de dois títulos especiais de crédito: o conhecimento de depósito e o warrant.
O decreto foi concebido em um contexto de modernização do comércio e da indústria brasileira, quando a economia buscava instrumentos que permitissem maior segurança às operações mercantis e acesso facilitado ao crédito. O sistema de armazéns gerais passou a ser dotado de fé pública e vinculado ao controle das Juntas Comerciais, que passaram a registrar os títulos emitidos e garantir a sua publicidade e eficácia contra terceiros (decreto 1.102/1903, arts. 6º e 38).
Esses títulos tiveram papel decisivo no desenvolvimento da economia brasileira, funcionando como instrumentos de fomento:
- O conhecimento de depósito comprova a guarda da mercadoria;
- O warrant permite sua utilização como garantia de operações de crédito.
Durante mais de um século, esses instrumentos mantiveram relevância, adaptando-se às transformações jurídicas e econômicas: do papel físico registrado em livros manuais até os sistemas digitais contemporâneos, que utilizam certificação digital e blockchain.
A presente análise propõe-se a examinar a trajetória jurídica e pericial desses títulos, desde 1903 até 2025, considerando:
- Sua fundamentação legal e evolução histórica;
- Procedimentos de emissão, circulação, endosso e extinção;
- Responsabilidades das partes (depositante, depositário, endossatário);
- Critérios de aceitação por instituições financeiras;
- Modelos jurídicos de warrant e conhecimento de depósito.
2. Fundamentos jurídicos iniciais (1903 - 1940)
2.1. O decreto 1.102/1903
O diploma legal de 1903 estabeleceu os seguintes pontos centrais:
- Instituição do armazém geral como estabelecimento autorizado a receber mercadorias em depósito, com fé pública e responsabilidade pela guarda e conservação (art. 1º).
- Obrigatoriedade de emissão do conhecimento de depósito como documento comprobatório do ingresso da mercadoria (arts. 7º a 13).
- Possibilidade de emissão do warrant, título complementar que confere ao portador o direito de penhor sobre as mercadorias, vinculado ao conhecimento (arts. 14 a 20).
- Obrigação de manter livros de registro internos e externos, anotando todas as operações (art. 6º).
- Necessidade de registro dos títulos junto às Juntas Comerciais, assegurando publicidade e validade contra terceiros (art. 38).
2.2. Natureza jurídica
O conhecimento de depósito configura título representativo de mercadoria, enquanto o warrant constitui título de crédito e de garantia real, permitindo ao depositante levantar empréstimos bancários, dando em penhor as mercadorias depositadas.
2.3. Importância econômica inicial
Na economia agrícola e mercantil do início do século XX, esses títulos possibilitaram que o pequeno produtor obtivesse crédito a partir de mercadorias estocadas. Assim, milho, café e açúcar passaram a ser lastro para operações financeiras, facilitando o giro de capital.
3. A consolidação no Direito Comercial e Civil (1940 - 1970)
A partir da década de 1940, com o advento do CP de 1940 (decreto-lei 2.848/1940), tipificaram-se crimes contra a fé pública, abrangendo falsificações de documentos e títulos de crédito, reforçando a proteção penal dos warrants e conhecimentos de depósito.
Durante o período, consolidou-se também a prática de endosso como forma de circulação dos títulos. O endosso poderia ser:
- Em branco, transferindo a titularidade sem identificação do endossatário;
- Em preto, com indicação expressa do endossatário;
- Mandato, para representação;
- Caução, como garantia de dívida.
Os bancos passaram a aceitar amplamente esses títulos, principalmente em regiões de produção agrícola, fortalecendo o crédito rural.
4. Evolução normativa e econômica (1970 - 1990)
Com a edição do CTN (lei 5.172/1966) e da lei das sociedades anônimas (lei 6.404/1976), novos contornos foram dados aos títulos:
O CTN disciplinou a incidência de tributos sobre operações com mercadorias em depósito (arts. 12 e 13).
A lei das S.A. determinou que operações com títulos de crédito deveriam ser registradas nos balanços.
Jurisprudência consolidou a responsabilidade do armazém pelos danos ou perdas em caso de divergência entre mercadoria física e título emitido.
5. A ordem constitucional e os reflexos (1990 - 2002)
CF/88: Competência privativa da União para legislar sobre títulos de crédito (art. 22, I, CF/88).
CDC (lei 8.078/1990): Incidência excepcional em hipóteses onde o depositante possa ser considerado consumidor final do serviço de armazenagem.
Lei 8.245/1991 (inquilinato): Repercussão indireta sobre os armazéns gerais quando estes funcionam em imóveis locados, garantindo estabilidade operacional.
Nota explicativa:
O CDC não regula diretamente os títulos especiais (warrant e conhecimento de depósito). Todavia, parte da doutrina e jurisprudência admite sua aplicação subsidiária em casos específicos, quando o depositante é equiparado a consumidor final, ampliando a responsabilidade objetiva do armazém (art. 14, CDC).
Já a lei do inquilinato também não se aplica diretamente aos títulos, mas influencia de modo reflexo: a continuidade da posse do imóvel locado pode impactar a segurança jurídica do depósito e, indiretamente, a confiança nos títulos emitidos.
6. O marco civil e empresarial (2002 - 2010)
O CC/02 (lei 10.406/02) consolidou os institutos do depósito (arts. 627 a 652) e do penhor mercantil (arts. 1.431 e seguintes).
Os warrants foram reconhecidos como títulos de crédito com eficácia executiva, representando garantia real sobre mercadoria fungível ou infungível.
O período consolidou a jurisprudência do STJ sobre a responsabilidade dos depositários, além de decisões do TIT/SP que regulamentaram a emissão de notas fiscais simbólicas em operações de retorno de mercadorias depositadas.
7. Novas tecnologias e digitalização (2010 - 2020)
Com a MP 2.200-2/01, instituiu-se a ICP-Brasil, permitindo a certificação digital dos títulos.
No setor privado, surgiram registros eletrônicos em plataformas como CETIP e B3, ampliando a segurança e a rastreabilidade das operações.
Nesse período, surgiram também estudos sobre uso de blockchain para garantir inviolabilidade, transparência e rastreabilidade dos warrants e conhecimentos de depósito.
8. Era da convergência digital e da reforma tributária (2020 - 2025)
A LC 214/23 (reforma tributária) alterou profundamente a sistemática tributária, substituindo o ICMS e o ISS pelo IBS - Imposto sobre Bens e Serviços e pela CBS - Contribuição sobre Bens e Serviços.
Os armazéns passaram a integrar sistemas digitais conectados às SEFAZ estaduais, com NF-e, SPED e registros eletrônicos automatizados.
As instituições financeiras passaram a exigir compliance digital, seguros e auditorias independentes como condições para aceitar warrants como garantia.
9. Procedimentos detalhados dos títulos
9.1. Solicitação de emissão
Depositante apresenta mercadorias acompanhadas de documentos fiscais. O armazém confere qualidade, quantidade e valor, registrando em livro próprio e em sistema digital.
9.2. Emissão
São emitidos simultaneamente o conhecimento de depósito e o warrant, assinados e registrados.
9.3. Circulação
Os títulos circulam por endosso: em branco, em preto, mandato, caução ou translativo.
9.4. Transferência de titularidade
A transferência deve ser registrada no armazém e na junta comercial.
9.5. Extinção
O título é extinto com a restituição da mercadoria ao depositante ou endossatário final.
9.6. Critérios de aceitação pelas instituições financeiras
As instituições financeiras, ao aceitarem mercadorias garantidas por warrants, avaliam:
- Liquidez da mercadoria - bens com mercado ativo (açúcar, soja, café).
- Conservação e qualidade - necessidade de certificação técnica ou laudo pericial.
- Seguro - cobertura contra incêndio, roubo e avarias.
- Auditoria independente - verificação da correspondência entre títulos e mercadorias.
- Condições fiscais - inexistência de débitos fiscais impeditivos.
- Compliance ambiental e sanitário - observância de normas da Anvisa, MAPA e órgãos ambientais.
Esses critérios são indispensáveis para reduzir riscos de inadimplência e garantir liquidez dos créditos lastreados em mercadorias.
10. Modelos jurídicos
Modelo de warrant
ARMAZÉM GERAL XYZ LTDA
CNPJ nº XX.XXX.XXX/0001-XX
WARRANT Nº XXXX
Depositante: ..........................................................
Mercadoria: ..........................................................
Quantidade: ..........................................................
Valor da Mercadoria (R$): .............................................
Local de Guarda: .......................................................
Prazo de Depósito: .....................................................
Este título confere ao portador o direito de penhor sobre as mercadorias acima descritas, nos termos do decreto Federal 1.102/1903, arts. 14 a 20.
Endossos:
1º Endossatário: ................................ Data: ___/___/____
2º Endossatário: ................................ Data: ___/___/____
3º Endossatário: ................................ Data: ___/___/____
Emitente: ..............................................................
Data: ___/___/____
Assinatura e carimbo do armazém geral
Modelo de conhecimento de depósito
ARMAZÉM GERAL XYZ LTDA
CNPJ nº XX.XXX.XXX/0001-XX
CONHECIMENTO DE DEPÓSITO Nº XXXX
Depositante: ..........................................................
Descrição da Mercadoria: ...............................................
Quantidade: ..........................................................
Valor da Mercadoria (R$): .............................................
Local de Guarda: .......................................................
Prazo de Depósito: .....................................................
Este título comprova a existência do depósito da mercadoria, nos termos do decreto Federal 1.102/1903, arts. 7º a 13.
Emitente: ..............................................................
Data: ___/___/____
Assinatura e carimbo do armazém geral
11. Linha do tempo evolutiva (1903 - 2025)
1903 - Decreto 1.102/1903 cria armazéns gerais, conhecimento de depósito e warrant.
1940 - CP reforça proteção contra falsificações.
1966 - CTN disciplina incidência fiscal.
1976 - Lei das S.A. regula impactos contábeis.
1988 - Constituição Federal reafirma competência da União.
2002 - CC consolida depósito e penhor mercantil.
2010 - Certificação digital e registros eletrônicos.
2023 - LC 214/23: Reforma tributária.
12. Conclusão
A análise histórica e jurídica dos títulos conhecimento de depósito e warrant demonstra sua importância estratégica para a economia nacional, servindo como instrumentos de crédito e circulação mercantil desde 1903 até a era digital de 2025.
A conjugação entre segurança jurídica, inovação tecnológica e critérios financeiros de aceitação reforça o papel dos armazéns gerais como intermediários confiáveis entre o setor produtivo e o sistema de crédito.
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Decreto nº 1.102/1903 - Planalto
Código Tributário Nacional - Lei nº 5.172/1966 - Planalto
Constituição Federal de 1988 - Planalto
Código Civil - Lei nº 10.406/2002 - Planalto
Lei Complementar nº 214/2023 (Reforma Tributária).
Jurisprudência do STJ e TIT/SP sobre armazéns gerais e títulos de crédito.


